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Leandro Vilar

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Ragnar Lothbrok: entre a lenda e a história

Devido a série Vikings escrita por Michael Hirst e produzida pelo History Channel desde 2013, o nome Ragnar Lothbrok tornou-se bastante popular no meio pop e geek da atualidade. Esse intrépido guerreiro que eventualmente acabou se tornando rei da Noruega, cativou uma legião de fãs. Porém, algumas indagações surgiram nestes últimos anos: a série seria baseada em acontecimentos verídicos? Houve realmente um rei viking chamado Ragnar? Se sim, onde sua história foi escrita? Em que época ele teria vivido? O seriado realmente é fiel ao material histórico ou é romanceado? Essas perguntas foram respondidas neste breve artigo, que inclusive também procurou esclarecer algumas dúvidas relacionadas a outros personagens da série como Lagertha, Bjorn, Ivar e os demais filhos do Ragnar. 

Ragnar Lothbrok de acordo com o ator Travis Fimmel, da série Vikings

O que se sabe sobre Ragnar Lothbrok?

É evidente que a série Vikings traz uma visão própria de Ragnar Lothbrok, então não se pode basear totalmente naquela trama escrita por Hirst. Mas em geral o que se sabe de Ragnar é que ele foi um guerreiro famoso, tendo ganhado fama heroica, e supostamente teria sido um antigo rei viking da Dinamarca ou Noruega, tendo vivido em data incerta no século IX, participando de ataques na França, como no cerco de Paris no ano de 845, e tendo invadido a Inglaterra algumas vezes, talvez nas décadas de 850 e 860. Não obstante, Ragnar teria sido morto no reino saxão da Nortúmbria pelo rei Aella II, e sua morte foi usada como fator de vingança pelos seus filhos para invadirem a Inglaterra no ano de 866, na época da chamada invasão do "Grande Exército Pagão" (mycel heaten here). 

Porém, isso é o que normalmente é informado na internet, em sites, blogs ou até mesmo em alguns livros de conteúdo breve. Mas se Ragnar foi um personagem real, quais seriam as obras que contam a sua história? Neste caso, as obras que relatam a vida de Ragnar são escassas, sendo que apenas três delas melhor narram a respeito de seus feitos. A primeira consiste na História Danesa (Gesta Danorum), escrita por um clérigo dinamarquês, o qual assinou com o pseudônimo de Saxo Grammaticus (c. 1150 - c. 1220).  Neste caso o Gesta Danorum consiste no maior trabalho conhecido de Saxo, tratando-se de uma coletânea histórica de vários volumes, apesar que apenas nove volumes foram achados em boas condições de preservação. 

Os demais volumes somente são conhecidos fragmentos. Todavia, nesta coletânea, Saxo tratou de contar os feitos de seu povo, narrando histórias de aventura, poder e conquista. Sabe-se que alguns dos relatos de sua obra realmente são verídicos, mas outros ainda geram dúvidas aos historiadores, por se apresentarem mais como narrativas lendárias ou semilendárias. Neste livro, Saxo aborda a história de Ragnar Lothbrok no nono volume do Gesta Danorum, onde narra a ascensão de Ragnar como rei da Noruega, seu reinado e sua morte. 

A segunda fonte que aborda a vida de Ragnar, trata-se de uma saga preservada em manuscrito, a qual é intitulada Saga dos Filhos de Ragnar (Ragnarsson þáttr). Narrativa de autoria desconhecida e datada do século XIII, conta a história de Ragnar tendo como foco sua morte e a vingança promovida pelos seus filhos. Já a terceira fonte diz respeito a Saga de Ragnar Lothbrok (Ragnars saga Loðbrókar), manuscrito de autoria desconhecida, também publicado por volta do século XIII. Nessa narrativa se encontra mais informações sobre o reinado de Ragnar, seus casamentos, filhos, feitos e morte. Por fim, a uma quarta fonte, embora seja bem breve, tratando-se de um poema intitulado Krakumál, o qual em poucas estrofes narra a morte de Ragnar. No caso, o Krakumál é um poema de autoria desconhecida e datado do século XII ou XIII. 

A partir dessas fontes, em especial o relato de Saxo na História Danesa, e as duas sagas, podemos extrair algumas informações sobre Ragnar Lothbrok, as quais se os leitores prestarem atenção, notarão divergências e incoerências quanto as tais informações. 

Como mencionado, na História Danesa é informado que Ragnar era neto de Sigurd Hring (as vezes referido como Sigurd, o Anel), rei da Noruega, o qual teve seu reino invadido por Fro, rei da Suécia, tendo sido assassinado. Com a morte do rei Sigurd, Ragnar reuniu uma tropa e partiu para libertar o reino de seu avô. A crônica em si não informa detalhes, logo, não se sabe se Ragnar seria herdeiro do trono, se os pais dele já estavam mortos, onde ele vivia etc. Na Saga dos Filhos de Ragnar é mencionado que ele era filho de Sigurd Hring, tendo sucedido o pai como senhor da Dinamarca. Posteriormente, Ragnar conquistou territórios na Suécia, lhe rendendo o título de rei daquele país. Já a Saga de Ragnar Lothbrok diz que ele era filho de Sigurd, tendo se tornado rei da Dinamarca após a morte do pai. 

Na História Danesa é informado que durante a batalha contra o rei Fro, Ragnar e seus homens foram ajudados por uma bela donzela de escudo (skyaldmö) chamada Lagertha. Brava guerreira que ajudou Ragnar a recuperar seu reino, e posteriormente foi pedida em casamento. Do matrimônio eles tiveram duas filhas (cujos nomes não são citados) e um filho chamado Fridleif


Lagertha. Morris Meredith Williams, 1913. 

Porém, Saxo informa que alguns anos depois, Ragnar se separou de Lagertha para que assim pudesse disputar a mão em casamento de Thora Borgarhjört, filha de Herraudr da ilha de Gotland (hoje território da Suécia).  Por sua vez, as duas sagas não mencionam nada a respeito de Lagertha, e se limitam a dizer que Thora teria sido a primeira esposa de Ragnar. Todavia, nesse ponto, entra o caráter lendário das duas obras. 

Para poder conquistar o direito de se casar com Thora, Ragnar teria que completar um desafio proposto pelo pai da noiva, Herraudr, o qual em algumas fontes é mencionado como jarl, outras dizem que ele teria sido rei de Gotland. Apesar dessa divergência se Herraudr foi um jarl ou rei, o que se sabe que ele pertencia a nobreza e era homem de riquezas e influência, alguns fatores pelos quais atraiu Ragnar a tentar casar-se com sua filha. Porém, Herraudr havia estipulado como condição de casamento que o pretendente matasse uma serpente gigante que guardava um tesouro, o qual era herança de sua filha. Pretendentes anteriores haviam desistido do casamento devido a tal desafio e outros morreram ao tentar vencer a grande cobra, porém, Ragnar fez uma roupa resistente e acolchoada para evitar que a picada da serpente lhe perfurasse a pele, assim, ao trajar calças peludas, algo que lhe rendeu o epíteto de Lothbrok, ele venceu terrível animal, vindo a desposar Thora, com quem teve dois filhos, Erik e Agnar


Thora Townhart. Jenny Nyström, 1890. Nessa pintura, vemos Ragnar erguendo sua espada triunfantemente, após ter matado a serpente gigante, desafio imposto como condição para se casar com Thora. 

Mas prosseguindo com os fatos sobre a vida desse rei, após a morte de Thora, Ragnar voltou a casar-se novamente, dessa vez tomando como esposa Aslaug, tida como nobre, as vezes referida como princesa, e que supostamente seria filha do herói Sigurd (aquele que matou o dragão Fafnir) e da valquíria Brunhilde. A presença de Aslaug ou Kraka como também é conhecida, nas duas sagas sobre Ragnar é problemática, pois a mesma é mencionada em outras narrativas, além de ser referida como filha de um lendário herói e de uma valquíria, lembrando que valquírias eram entidades mitológicas.Com Aslaug, Ragnar teria tido vários filhos como informam as duas sagas, embora, ambos os relatos não sejam unânimes quanto a identidade dos mesmos. A Saga de Ragnar Lothbrok diz que com Aslaug ele teve quatro filhos: Ivar, Ubba, Hvitserk e Sigurd. Por sua vez, a Saga dos Filhos de Ragnar informa que os filhos eram Ivar, Bjorn, Hvitserk e Sigurd. Neste caso, percebe-se que a diferença se encontra entre Ubba e Bjorn, já que os outros três são assegurados como filhos de Ragnar. 

Ragnar e Aslaug. August Malmström, 1880. A pintura se baseia em um dos relatos o qual narra que Aslaug encontrou Ragnar, estando vestida com uma rede de pesca e acompanhada de um cachorro. 

Mas além desses relatos sobre a família e casamentos de Ragnar, as três fontes também narram seus feitos. Além de vingar a morte do avô, matar uma serpente gigante, Ragnar teria comandado campanhas na Suécia, no Mar Báltico e na Nortúmbria (no norte da atual Inglaterra), como apontam as duas sagas. Por sua vez, a História Danesa diz que o rei comandou e ordenou incursões pela Escandinávia, Finlândia, Itália, Constantinopla e na Nortúmbria. Embora não haja detalhes sobre tais acontecimentos, apenas breve informações, ainda assim, revela o quão poderoso Ragnar Lothbrok era considerado de acordo com estes relatos. 

Todavia, um último dado a ser comentado com base nessas fontes, diz respeito a morte deste rei e herói. A História Danesa, a Saga de Ragnar, a Saga dos Filhos de Ragnar e o poema Krakumál, todos dizem que o rei foi executado na Nortúmbria, enquanto combatia o rei Aella II. Após ser capturado em batalha, Aella II ordenou que Ragnar fosse executado num poço de cobras. Após sua morte, seus filhos juraram vingança, então reuniram um exército e decidiram invadir os reinos saxões, no que ficou conhecido como a "grande invasão viking da Inglaterra". Tal acontecimento inclusive é mencionado em outras fontes históricas e literárias. No entanto, antes de chegarmos a essa problemática histórica, se faz necessário comentar algumas incertezas e dúvidas referentes as informações contidas na obra de Saxo Grammaticus e nas duas sagas mencionadas. 


Ragnar Lothbrok atirado num poço de cobras. Hugo Hamilton, 1830. Nessa imagem, vemos acima o rei Aella II e seus homens, observando o indefeso Ragnar acorrentado e cercado por cobras. 

Incertezas sobre a vida e feitos de Ragnar: 

Apesar de ter sido apresentado alguns aspectos de forma resumida sobre Ragnar Lothbrok com base na História Danesa, a Saga dos Filhos de Ragnar e a Saga de Ragnar Lothbrok, passemos para uma breve análise de algumas informações citadas nessas obras. Comecemos pela questão da família e da herança.

Nota-se que essas três fontes falam que o avô ou pai de Ragnar era o rei Sigurd Hring, porém, as fontes não concordam entre si quanto ao reino que Ragnar teria governado. Em uma ele é dito ser rei da Noruega, nas outras duas ele aparece como rei da Dinamarca, mas na saga sobre seus filhos, ele é mencionado como tendo sido também rei da Suécia. Além da dúvida quanto a paternidade de Ragnar, surge também a dúvida de onde ele teria sido rei. Isso prejudica saber com precisão se Ragnar teria sido realmente um rei como alegam as fontes, ou ele teria apenas sido um jarl famoso, que séculos depois ganhou status de rei?

Outro ponto questionável a respeito dos familiares dele, diz respeito aos seus filhos. Apesar da História Danesa ser a única fonte onde menciona que a primeira esposa de Ragnar, foi Lagertha, e com ela ele teve duas filhas e um filho chamado Fridleif, as outras duas fontes citam apenas Thora e Aslaug como cônjuges dele, com as quais teve vários filhos. No caso de Thora, Ragnar teve dois filhos com ela, os quais foram mortos em combate, já com Aslaug foram quatro filhos. Entretanto, a identidade desses filhos varia mesmo dentro das fontes, e até mesmo a História Danesa cita uns filhos adotivos. Novamente encontramos incertezas quanto a prole do herói, algo que será comentado novamente quando analisarmos historicamente essas informações. 

Por outro lado, as três fontes são unânimes em dizer que de fato Ragnar confrontou uma serpente gigante para poder desposar Thora. Todavia é preciso salientar que primeiramente tal história parece demasiadamente mirabolante: uma donzela protegida por uma serpente gigante? Isso se torna mais óbvio quando passamos a saber que o dragão nórdico era descrito como uma grande serpente. (LANGER, 2007). Ou seja, Ragnar neste caso enfrentou um dragão para obter uma donzela. A questão que assinalo aqui é o fato que existem várias histórias europeias e até mesmo em outros continentes, de lendas nas quais heróis enfrentam serpentes ou dragões para salvar uma princesa, donzela, santa etc. No caso da literatura germano-escandinava a presença de heróis enfrentando dragões era bem comum. Encontramos várias narrativas escritas entre os séculos XII e XV (ANDRADE, 2017). Provavelmente os autores das histórias sobre Ragnar tenham se baseado nesse elemento literário e o acrescentado em sua história, de forma que a narrativa sobre Ragnar torna-se mais poderosa e fascinante aos leitores, lembrando que as narrativas escritas conhecidas, datam de versões descobertas no século XIII. Se desconhece manuscritos antes daquele século. 

Mas além da presença de uma serpente gigante, um tesouro e uma princesa (ou donzela), outro elemento lendário que se destaca nas histórias sobre Ragnar, e sua terceira esposa, Aslaug, a qual era supostamente dita ser filha do herói Sigurd e da valquíria Brunhilde. Nesse ponto, novamente motivos lendários voltam a permear a obra de Ragnar, apesar de que é preciso comentar que naquele tempo, a ideia de alguém se dizer ser descendente de um herói não era incomum, mas era um meio para obter prestígio social. É preciso informar que entre distintos povos havia a crença de pessoas e famílias alegarem ter uma ancestralidade ilustre, sobrenatural ou divina. Os monarcas egípcios, sumérios, chineses e incas alegavam ser descendentes de deuses ou encarnação destes; famílias nobres e aristocráticas greco-romanas diziam descender de heróis. 

E entre os dinamarqueses, noruegueses e suecos tal pensamento também parece ter existido. Inclusive existem obras como a Saga dos Ynglingos e a Heimskringla, cujos manuscritos mais antigos são datados do século XIII, e creditados a Snorri Sturluson, poeta islandês, as quais apresentam genealogias de reis e famílias nórdicas que supostamente seriam descendentes de deuses. Assim, a presença de Aslaug como descendente de um herói e uma valquíria não seria algo tão fantasioso neste contexto, pois a literatura da época considerava isso um elemento comum, mas não significa que estivesse concordando que Sigurd e Brunhilde tivessem sido reais. 

Um terceiro elemento lendário identificado nos relatos de Ragnar, diz respeito a forma como ele morreu: atirado num poço de cobras venenosas a mando do rei Aella II. Tal flagelo é peculiar. Aðalheiður Gudmundsdóttir (2012) estudando a execução do rei mítico Gunnar num poço de cobras, começou a perceber que na literatura germano-escandinava havia outros exemplos de homens que foram executados dessa forma. Para a autora, o poço de cobras não teria sido uma punição real, mas uma invenção lendária, a qual aparece em algumas narrativas, consistindo numa forma diferente de alguém ser executado, além de ser uma forma sinistra, pois a vítima era atirada num buraco cheio de cobras venenosas. 

No que se refere as viagens de Ragnar, suas ordens e campanhas em outras terras, nota-se que excetuando-se o caso da Dinamarca, Noruega, Suécia e da Nortúmbria, onde as fontes concordam entre si, os demais lugares que ele teria visitado ou enviado homens varia. Provavelmente trate-se de um problema de acréscimo de narrativa. É preciso comentar que naquela época não havia o conceito de livro fechado como hoje conhecemos. Os manuscritos eram em muitos casos escritos por mais de um autor, e as vezes reunidos em coletâneas que necessariamente não possuíam algo em comum. Além disso, sublinha-se que naquele tempo não havia teoria da história para se pensar como escrever a história, logo, as próprias obras históricas são basicamente narrativas parecidas com a literatura, mas que narram acontecimentos reais ou que supostamente eram considerados reais. Tais características são comentadas por McTurk (1991) como sendo um dos problemas de se estudar narrativas medievais que dizem abordar sobre acontecimentos e pessoas reais. 

Imprecisões históricas: 


No tópico anterior comentei de forma sucinta incertezas que as narrativas sobre Ragnar apresentam, aqui essa incertezas voltam a ser abordadas, mas agora se acrescentando dados históricos. As fontes aqui consultadas foram escritas no século XIII em datas incertas, porém, em nenhuma delas informa quando Ragnar teria vivido. Porém dispomos de algumas pistas que sugerem a data na qual tais acontecimentos teriam se passado. O rei Aella II que é creditado como o algoz da morte de Ragnar, historicamente existiu e é mencionado por uma fonte histórica, as Crônicas Anglo-saxãs (IX-X), a qual informa que este monarca faleceu no ano de 867. Por sua vez, Bjorn, Costas de Ferro que teria atacado Paris antes da sua expedição ao Mediterrâneo, sabe-se que no ano de 851 houve um ataque a capital franca, e que supostamente ele teria participado, como sugere o Gesta Normannroum Ducum (XI). 

Não obstante, as fontes comentam que após a morte do Ragnar no poço de cobras, seus filhos teriam organizado um plano de vingança que incluiu a invasão da Inglaterra. Essa invasão é associada com a chegada do Grande Exército Pagão a ilha no ano de 866, como mencionado nas Crônicas Anglo-saxãs. A qual informa que um exército de nórdicos invadiu o Reino da Anglia Oriental e de lá permaneceu vários anos na ilha, tentando conquistá-la. Logo, com base nestas três datas, os historiadores tendem a situar que Ragnar e sua história teria transcorrido dentro do século IX, sendo que Ragnar teria morrido antes do ano de 866. Porém, isso não soluciona o problema da imprecisão histórica. 

Ryan Hall Kacani (2015) em sua tese de história sobre Ragnar Lothbrok, ao tentar procurar através de documentos históricos, dados que apontassem para a existência do reinado deste suposto rei viking, concluiu que não há fontes que assegurem seu governo, mas, existem crônicas saxãs, francas e germânicas que comentam o reinado de outros reis na Noruega e Dinamarca ao longo do século IX. Macani destaca a existência de quatro reis dinamarqueses Reginfrid (812-813), Horik I (827-854), Horik II (854-860) e Godofredo (880-885), os quais se destacaram em seus reinados, especialmente Horik I por ter promovido campanhas na Germânia e supostamente enviado tropas para Paris. 

Neste caso, para Kacani (2015), Ragnar Lothbrok não teria sido uma pessoa real, mas uma lenda baseada nos feitos de alguns monarcas dinamarqueses. Não obstante, ele menciona que o nome Reginfrid também era gravado como Ragnafrid, que apresenta semelhança com o nome Ragnar. Além disso, o autor também cita o caso de um dos irmãos do rei Haroldo, Cabelo Belo da Noruega, cujo um dos irmãos se chamava Ragnavald, o qual ajudou o irmão na unificação da Noruega, anteriormente dividida politicamente em pequenos reinos. 

Além destes dois casos mencionados por Kacani, mais de um século antes Allen Mawer (1909) já apontava a falta de documentação histórica datada do século IX e X que informasse a existência de Ragnar Lothbrok. Todavia, ele comenta alguns casos curiosos. Com base nos Anais de Xantem (IX), é dito que um líder chamado Reginheri, ou Ragneri ou Ragnerius teria participado do cerco à Paris no ano de 845. Por sua vez, os Anais Irlandeses (IX-X) menciona que um tal Ragnall dos nórdicos empreendeu ataques a ilha, em data incerta. Mawer comenta como os nomes Ragneri e Ragnall são parecidos graficamente com o nome Ragnar, e indagava se se trataria do mesmo homem, se estes seriam outros nomes para Ragnar Lothbrok, e até mesmo se tais homens realmente existiram, e teria inspirado a lenda de Ragnar. No Gesta Normannorum Ducum (XI) é dito que Bjorn era filho do rei Lothrocus da Dânia. O nome Lothrocus lembra Lothbrok, mas seria uma referência a Ragnar? Além disso, que lugar seria essa Dânia? Seria a Dinamarca, a terra dos daneses? Pois McTurk (1991) comenta que nessa crônica inglesa do século XI, o autor considerava a terra dos daneses tanto o território da atual Dinamarca quanto porções do norte da Alemanha. 

Mas essas imprecisões não estão apenas restritas a Ragnar, seus filhos também são alvo delas. Nas Crônicas Anglo-saxãs não há menções que a invasão do exército viking foi motivada por vingança dos Ragnarson, e embora mencione os nomes de Ubba, Halfdan e Sigurd, homens creditados como filhos de Ragnar, nessa crônica eles não são referidos como filhos dele. Por sua vez, Ivar, o Sem-Ossos é mencionado principalmente nos Anais Irlandeses, não aparecendo nas campanhas vikings na Inglaterra. Bjorn, de acordo com a crônica inglesa do Gesta Normannorum Ducum, teria atacado a França e viajado ao Mediterrâneo, mas não participado da invasão à Inglaterra. Nesse ponto, Mawer (1909) comentava que os supostos filhos de Ragnar como creditado nas fontes dos séculos XII e XIII, são mencionados em crônicas e anais saxões, francos e irlandeses datados do século IX, mas sem possuir uma ligação familiar entre si. 

Considerações finais:

Diante dessas imprecisões históricas e falta de conexão entre os personagens mencionados, Allen Mawyer (1909) e Rory McTurk (1991) sugeriu a hipótese de que Ragnar Lothbrok, suas esposas, filhos e feitos tratariam-se da mistura de acontecimentos históricos, lendários e literários, cujas versões mais antigas começam a aparecer em crônicas do século XII como o Libellus de exordio, o Historia Regum Britanniae e Floris Histotarium, produções inglesas que comentam que a grande invasão ocorrida no século IX foi ocasionada pela morte de Ragnar Lothbrok e a vingança de seus filhos. Porém, só passamos a conhecer relatos mais detalhados dessa narrativa, em manuscritos do século seguinte, como comentado ao longo deste estudo. 

Ryan Kacani (2015) e sua tese também conclui que a carência de fatos que corroborem o reinado de Ragnar, as divergências nos relatos, as incertezas sobre sua vida e família, e as imprecisões históricas contribuem para questionar se Ragnar Lothbrok realmente teria existido. Para Kacani o mesmo não teria sido um personagem totalmente lendário, mas semilendário, pois ele acredita que outros homens possam ter tido seus feitos utilizados pelos autores tardios par construir a história de Ragnar. 

O que podemos concluir até o momento é que não foram encontrados fatos e provas que garantam a existência de Ragnar Lothbrok, mas excetuando-se os elementos lendários contidos em sua narrativa, não se pode negar que haja acontecimentos históricos contidos nessas histórias, especialmente referente a conflitos e invasões. Ao mesmo tempo em que além de não poder garantir a existência de Ragnar como tendo sido uma pessoal real, suas esposas Lagertha, Thora e Aslaug se encontram na mesma condição, e seus filhos também. Embora que no caso destes haja dúvidas se eles teriam sido inspirados em homens reais com o mesmo nome, os quais teriam participado das expedições na Inglaterra, Irlanda e França. 

NOTA: Na série Vikings, Ragnar possui um irmão chamado Rollo. Historicamente Rollo realmente existiu, tendo se tornado um nobre franco, o Conde da Normandia
NOTA 2: Apesar do rei Aella II ser mencionado na Crônica Anglo-saxã, quase nada se sabe de sua vida e reinado. A crônica sugere que ele teria governado entre 863 e 867. Um reinado curto. 
NOTA 3: Na série Vikings os reis Horik I da Dinamarca e Haroldo Cabelo Belo aparecem em temporadas distintas, mas historicamente eles não teriam sido contemporâneos. Haroldo teria nascido na época que Horik havia falecido. 
NOTA 4: No Skáldskaparmál, da Edda em Prosa, o nome Ragnar Lothbrok é citado duas vezes, em relação a ele ter se casado com Aslaug. Porém, não é dada atenção a sua história. 

Fontes: 
ANÔNIMO. Krakúmal. Disponível em: https://sagathingpodcast.files.wordpress.com/2015/03/krakumal-translations.pdf.
ANÔNIMO. Ragnars saga Lodbrokar. Translated by Chris Van Dyke. Colorado: Cascadian Publishing, 2003.
ANÔNIMO. The Saga of Ragnar Lodrok and his Sons. Disponível em: http://www.germanicmythology.com/FORNALDARSAGAS/ThattrRagnarsSonar.html
THE Anglo-saxon Chronicle. Translation Rev. James Ingram. London: Everyman Press Edition, 1912.
GRAMMATICUS, Saxo. The history of Danes, books I-IX. Edited by Hilda Ellis Davidson; translated by Peter Fisher. Woodbridge: D. S. Brewer, 1979. 

As outras fontes mencionadas no texto foram consultadas a partir das obras de referência. 


Referências bibliográficas: 

ANDRADE, Miguel. Sigrgards saga fraekna: matar um dragão para manter as aparências. Notícias Asgardianas, n. 12, 2017, p. 25-38. 
GUÐMUNDSDÓTTIR, Aðalheiður. Gunnar and the Snake Pit in Medieval art and Legend. In: Speculum, v. 87, n. 4, 2012, p. 1015-1049.
KACANI, Ryan Hall. Ragnar Lothbrok and the semi-legendary history of Denmark. Tesis (Undergraduate program in History) - Faculty of the School of Arts and Sciences of Brandeis University, 2015.
LANGER, Johnni. Orm: o mito do dragão na Escandinávia da era viking e cristã, séculos XI-XIII. Relatório (Pós-doutorado em História medieval) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. 
MAWER, Allen. Ragnar Lothbrók and his Sons. Saga Book of the Viking Club, v. 6, 1909, p. 68-89.
MCTURK, Rory. Studies in Ragnar’s Saga Lodbrokar. Oxford: Society for the Study of Medieval Languages and Literature. 1991.