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Leandro Vilar

terça-feira, 19 de abril de 2016

Uma breve trajetória sobre os direitos dos povos indígenas no Brasil

Nesta data de 19 de abril, celebra-se no Brasil, o chamado Dia do Índio. Feriado criado pelo decreto lei 5.540 de 2 de junho de 1943, aprovado pelo então Presidente da República, Getúlio Dornelles Vargas, como uma homenagem aos índios brasileiros. Sendo esse feriado pautado no Primeiro Congresso Indigenista Interamericano, ocorrido no México, no ano de 1940, o qual procurou reunir povos indígenas das Américas, para ali debater os problemas que eles enfrentavam em seus países. 

No caso do Brasil, como será visto, as medidas políticas para auxiliar e proteger os indígenas se iniciaram ainda no começo do século XX, todavia, antes disto ocorrer, os indígenas passaram por 400 anos de exploração, perseguição, escravização e extermínio. 

Introdução: 

É comum repetir o discurso de que os indígenas são os "primeiros habitantes", os "brasileiros originais", os "donos desta terra", os "ancestrais", etc. Que eles foram enganados, usurpados, perseguidos, escravizados e mortos pelos colonizadores portugueses, espanhóis, franceses e holandeses. Sim, de fato isso é verdade. Mas o Brasil não foi o único a passar por isso. Todas as nações americanas foram erguidas em meio ao confronto entre o colonizador e colonizado. Isso é algo que não podemos negar e nem mudar. No caso brasileiro, faz 516 anos que isso teve início. Não podemos mudar o passado, mas podemos mudar o presente e planejar um futuro para essas pessoas.

Indígenas brasileiros retratados no Atlas Miller (1519). O atlas foi produzido por Lopo Homem, os irmãos Pedro e Jorge Reinel, e Antônio de Holanda, responsável pelas ilustrações. Consiste em uma das mais antigas representações de indígenas do Brasil, produzido por portugueses, que se conhece.
Não obstante, a escravidão indígena perdurou ao lado da escravidão africana, ao longo de três séculos. Sendo que nos séculos XVI e XVII, ela foi mais destrutiva. As entradas e bandeiras foram movimentos de exploração, conquista e fundação. No caso das bandeiras, estas por serem de origem particular, tinham outros propósitos, como procurar por metais preciosos, joias raras, caçar e escravizar indígenas (usava-se o termo prear índios), saquear propriedades estrangeiras, principalmente espanholas, situadas no que hoje são Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, territórios, na época de posse dos espanhóis. Inclusive houve bandeiras que invadiram o Paraguai, Argentina e Uruguai, entrando em conflito com as missões jesuíticas, responsáveis pela catequização das povoações indígenas locais (DAVIDOFF, 1984, p. 32).

Algumas bandeiras atuavam como grupos paramilitares, sendo contratados por particulares ou até pelo governo, para exterminar quilombos e aldeias rebeldes. O bandeirante Domingos Jorge Velho (1651-1715), lembrado por ter desbaratado o Quilombo dos Palmares, antes de fazer isso, ele já havia participado de ataques a outros quilombos e aldeias. Os bandeirantes Manuel Preto e João Pedro de Morais, este conhecido pela alcunha de o "Terror dos Índios", viveram no século XVII, tendo participado das campanhas de invasão e rapina na Província do Guairá (atual estado do Paraná no Brasil), matando centenas de indígenas e capturando outros milhares, para serem vendidos como escravos (VOLPATO, 1986, p. 79-83).

Indígenas bandeirantes, escoltando outros indígenas como prisioneiros. Jean-Baptiste Debret, 1860. Para não perecerem frente a ameaça do invasor, vários indígenas acabaram aceitando aliar-se a estes, fosse por forma pacífica ou imposta; fosse para fim justos, ou bélicos e escravocratas. 
Por mais que alguns aleguem, que ainda no século XVI, a Igreja Católica tenha determinado para se evitar de matar e escravizar os indígenas, pois eles eram "inocentes", apenas haviam se afastado da Palavra de Deus, logo, deveriam ser convertidos, pois imperava ideais edênicos; do "bom selvagem", do "selvagem puro", etc., não significa que isso foi obedecido. Os massacres e a escravidão continuaram nos séculos seguintes. No século XVIII, o Marquês de Pombal, então primeiro-ministro do rei D. José I, o qual governou de 1750 a 1777, no ano de 1757, baixou um decreto proibindo novamente a manutenção da escravidão indígena, no entanto, isso não foi efetivo (BETHELL, 1999, p. 543-544). Embora que naquele tempo, em meados do século, grande parte da população indígena já tivesse morrido

Quando chegamos ao século XIX, a escravidão indígena ainda perdurava em alguns locais do Brasil, todavia, a escravidão africana era a que prevalecia. Porém, surge no XIX, o chamado Movimento Indianista ou Indianismo, o qual consistiu num movimento literário genuinamente brasileiro, inspirado no Romantismo europeu, principalmente de origem francesa e alemã. Enquanto os românticos europeus remontavam o período medieval e a lendas e mitos de seus povos, os românticos brasileiros decidiram tornar os indígenas seus protagonistas e heróis. Os principais representantes do Indianismo foram José de Alencar (1829-1877), como seus livros O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874); e o poeta Gonçalves Dias (1823-1864), cuja uma de suas principais obras foi I-Juca-Pirama (1851). 

José de Alencar seguiu uma vertente mais romântica, de retratar os indígenas como herói, principalmente em O Guarani, com o índio Peri, o qual apresenta força e bravura, porém era um homem ingênuo, bobo, o arquétipo do "bom selvagem", ou seja, aquela pessoa desprovida de civilidade, a qual vive como um "bárbaro" em meio a selva ou território hostil, mas que não é mal. Peri, por mais que ame Cecília (Ceci), acaba sendo um joguete em suas mãos. 

História em quadrinhos baseada na obra O Guarani
Já em Iracema, a índia protagonista, expressa a ligação entre o português e o indígena, pois Iracema dá a luz a Moacir, filho que teve com Martim. Moacir é um mestiço, o qual simboliza a miscigenação do povo brasileiro. Não obstante, o livro é uma obra ufanista, a qual exalta o Ceará (terra natal de Alencar), e cria uma lenda para a região, uma espécie de "mito de fundação". Não obstante, Iracema expressa algumas características de mulher passiva: ela era quase uma sacerdotisa, e era casta, mas quebra seus "votos" para se relacionar com o português Martim. 

Em si a obra é uma narrativa de um romance proibido, mas que ocorre e depois vivencia um drama e uma tragédia. A sexualidade de Iracema é importante no início da obra, pois representa essa problemática de se manter casta e seguir seus "votos", ou ceder ao amor, mas não amar outro indígena, mas um estrangeiro. Todavia, na pintura, sua nudez a tornou sem querer um "símbolo sexual". Embora Peri andasse nu, foi Iracema que ganhou o imaginário artístico. 

No caso do poema de Gonçalves Dias, I-Juca-Pirama, com versos alexandrinos e oitavilhas, ele escreveu um poema ufanista, logo, exaltava a natureza brasileira, e tinha na figura dos indígenas, os ancestrais, os "fundadores" e heróis da pátria, algo que servia como motivo de patriotismo, inclusive o próprio governo brasileiro, procurou usar tais ideias para formar um sentimento de nacionalismo e união, ainda mais, após movimentos separatistas ocorridos após a abdicação de D. Pedro I em 1831. Todavia, a ideia de tornar o índio essa referência nacionalista, não era por compaixão a este, mas pelo fato de que o Indianismo estava sendo bem valorizado, mesmo diante das teorias raciais que sugeriam uma ideia bem contrária.  

Porém, enquanto as obras de José de Alencar e Gonçalves Dias procuravam exaltar o papel dos indígenas como ancestrais e heróis do Brasil, procurando conceder um valor cultural e histórico, mesmo que através da ficção, nem tudo eram flores. Os indígenas assim como os negros, eram descriminalizados; não eram cidadãos (com raras exceções); eles viviam em vilas, fazendas ou nas pequenas cidades; mas a maioria ainda habitavam aldeias e mantinham seus antigos hábitos, evitando conviver com o restante da população. Em forma geral, os indígenas era indivíduos pobres, viviam a margem da sociedade e eram na sua maioria considerados ainda incivilizados. 

Mas para piorar a situação do indígena e do negro, Joseph Arthur, mais conhecido como Conde de Gobineau (1816-1882), publicou seu polêmico livro Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (Essai sur l'inégalité des races humaines), em cuja volumosa obra ele defendia a teoria racial humana, bastante em voga em seu tempo; e qualificava que o indivíduo branco europeu era a mais superior das raças, sendo que os negros e ameríndios eram raças inferiores e degeneradas. Para ele, a miscigenação foi um grande erro das civilizações, pois contaminou as raças puras, com o sangue de raças inferiores, o que gerou descendentes corrompidos (SOUSA, 2013, p. 24). 

Embora possa parecer surreal esse discurso hoje em dia, houve gente que compactuou com as ideias de Gobineau, inclusive o imperador D. Pedro II, era amigo do conde. Por mais que não se saiba até onde o imperador brasileiro concordava com as ideias do conde francês, a obra de Gobineau influenciou intelectuais e estudiosos brasileiros, os quais defendiam uma de suas teorias a qual dizia que devido o Brasil ser uma nação miscigenada, estava fadada ao desmantelo moral, cultural e social. Ter tolerado misturar-se com negros e índios, foi o grande erro dos portugueses (SOUSA, 2013, p. 1-2). 

Em 29 de julho de 1882, foi aberto ao público no Museu Nacional, Rio de Janeiro, a Exposição Antropológica Brasileira, a primeira do país. Essencialmente a exposição reuniu distintos objetos provenientes de alguns povos indígenas, para compor a mostra dos oito salões que era formado a exposição. O público ficou fascinado com aquilo tudo, pois embora tivesse uma tendência científica, já que a antropologia e a etnografia, assim como a arqueologia e a história, estavam se consolidando no final do XIX, no fim, o interesse era mais de curiosidade e propagandístico (LANGER; RANKEL, 2006, p. 17). 

Fotografia de um grupo de indígenas do povo Bororo, c. 1880. Marc Ferraz, Acervo Instituto Moreira Salles.
“A exposição durou três meses e teve um público com mais de 100.000 visitantes, um verdadeiro êxito no país e com repercussão internacional. Um periódico especialmente impresso, em diversos fascículos, foi entregue para o público: a Revista da Exposição Anthropologica Brazileira. Pouco depois, foi encadernada em um único volume e distribuída para todas as províncias. Com uma linguagem muito mais acessível do que os Archivos e a Revista do Instituto, pode ser considerada uma antecipadora das modernas revistas de popularização científica. Num total de 112 artigos, escritos por especialistas do momento – como Netto, Lacerda, Magalhães, Hartt; políticos e viajantes – A. Soido, A. Campos, E. Deiró; e antigos cronistas – João Daniel, Vasconcelos, Anchieta. Além da linguagem simples, a publicação chama a atenção por sua grande estrutura iconográfica, uma das mais belas de todo o império. Com a média de uma figura por página, resgatando antigas ilustrações ou contextualizando os artigos, a revista popularizou ao extremo o imaginário indígena no Brasil”. (LANGER; RANKEL, 2006, p. 17-18). 

A Exposição Antropológica Brasileira de 1882, lembrava as feiras de curiosidade e de ciências que se tornaram populares na segunda metade do XIX e no começo do XX, sendo que algumas se tornaram nos infames "zoológicos humanos", o quais exibiam pessoas em jaulas, cercados, etc., como se fossem animais. 

Exposição Antropológica Brasileira, artefatos e aspectos da vida, 1882. Marc Ferraz, papel albuminado, Acervo Biblioteca Nacional. 
Os indígenas não eram encarados como habitantes do presente, mas como relíquias de um passado primitivo, o qual parece não ter se desenvolvido (ou evoluído, como preferia-se dizer naquele tempo). Um passado que causava receio, espanto, estranheza e deslumbramento. 

O século XX:

O século XX começou para os indígenas não tão diferente quanto foi para os negros. Estes ainda eram estigmatizados pelas lembranças da Abolição da Escravatura, ocorrida em 13 de maio de 1888. No entanto, a Lei Áurea concedeu a liberdade da escravidão, mas não o reconhecimento como cidadão. Por mais que os indígenas não sejam incluídos na Abolição de 1888, eles vivenciavam a marginalidade, preconceito e descriminação racial que os negros passavam. 

No caso dos indígenas a situação era pior. Enquanto a população negra acumulava-se nas periferias das grandes cidades, o que resultou em favelas em alguns locais, os índios eram mais raros de se ver. Desconhece-se quantos deles haviam com certeza morando no país. Em alguns casos as pessoas diziam que os índios não viviam nas cidades, mas no interior; ou viviam no mato. O imaginário do indígena como herói e símbolo de patriotismo, havia ficado para trás. Eles voltavam ao anonimato. 

Na tentativa de mudar isso, em 20 de junho de 1910, pelo Decreto 8.072 foi criado o Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPITLN), durante o governo do presidente Nilo Peçanha (1909-1910), cuja função principal era auxiliar a população indígena. 

O Artigo 1, ponto A, do decreto estabelecia o auxílio a todos os indígenas independente de sua proveniência, sendo eles habitantes de aldeias, vilas ou cidades, vivendo em tribos, de forma nômade e até mesmo "promíscua com civilizados". Esse ponto final, é interessante, pois ele consta mesmo no texto do decreto. Nota-se que ainda nos idos do século XX, permanecia essa ideia de que o "índio" não era cidadão, pois ele era alguém que poderia ter "relações promíscuas" com gente civilizada (gente cidadã).

No ponto B, do Artigo 1, instituía-se o que viria a ficar conhecido como "terras indígenas". O governo já mostrava a preocupação de estabelecer assentamentos indígenas em territórios férteis, limpos, com fontes de água corrente e potável; próximos a estradas, meios de comunicação, vilas e cidades. Ali as famílias poderiam se estabelecer com segurança e teriam meios para cultivar a terra e criar gado. Neste caso, esse artigo não se referia a demarcação das terras, mas a doação de terrenos para a habitação de tais famílias. 

No Artigo 2, o qual é mais amplo, institui-se os auxílios que seriam fornecidos as comunidades indígenas:
  • 1º, velar pelos direitos que as leis vigentes conferem aos índios e por outros que lhes sejam outorgados;
  • 2º, garantir a efetividade da posse dos territórios ocupados por índios e, conjuntamente, do que neles se contiver, entrando em acordo com os governos locais, sempre que for necessário;
  • 3º, pôr em pratica os meios mais eficazes para evitar que os civilizados invadam terras dos índios e reciprocamente;
  • 4º, fazer respeitar a organização interna das diversas tribos, sua independência, seus hábitos e instituições, não intervindo para alterá-los, sinão com brandura e consultando sempre a vontade dos respectivos chefes;
  • 5º, promover a punição dos crimes que se cometerem contra os índios;
  • 6º, fiscalizar o modo como são tratados nos aldeamentos, nas colonias e nos estabelecimentos particulares;
  • 7º, exercer vigilância para que não sejam coagidos a prestar serviços a particulares e velar pelos contratos que forem feitos com eles para qualquer gênero de trabalho;
  • 8º, procurar manter relações com as tribos, por intermédio dos inspetores de serviço de proteção aos índios, velando pela segurança deles, por sua tranquilidade, impedindo, quanto possível, as guerras que entre si mantêm e restabelecendo a paz;
  • 9º, concorrer para que os inspetores se constituam procuradores dos indios, requerendo ou designando procuradores para representa-los perante as justiças do país e as autoridades locais;
  • 10, ministrar-lhes os elementos ou noções que lhes sejam aplicáveis, em relação as suas ocupações ordinárias;
  • 11, envidar esforços por melhorar suas condições materiais de vida, despertando-lhes a atenção para os meios de modificar a construção de suas habitações e ensinando-lhes livremente as artes, ofícios e os gêneros de produção agrícola e industrial para os quais revelarem aptidões;
  • 12, promover, sempre que for possível, e pelos meios permitidos em direito, a restituição dos terrenos, que lhes tenham sido usurpados;
  • 13, promover a mudança de certas tribos, quando for conveniente o de conformidade com os respectivos chefes;
  • 14, fornecer aos índios instrumentos de musica que lhes sejam apropriados, ferramentas, instrumentos de lavoura, machinas para beneficiar os produtos de suas culturas, os animais domésticos que lhes forem uteis e quaisquer recursos que lhes forem necessários; introduzir em territórios indígenas a indústria pecuária, quando as condições locais o permitirem;
  • 16, ministrar, sem caráter obrigatório, instrução primaria e profissional aos filhos de índios, consultando sempre a vontade dos pais;
  • 17, proceder ao levantamento da estatística geral dos índios, com declaração de suas origens, idades, linguás, profissões e estudar sua situação atual, seus hábitos e tendencias.
"As iniciativas do SPI envolviam a intervenção na vida indígena através de um ensino informal, a partir das necessidades criadas, evitando-se influenciar a organização familiar.  O objetivo era impedir conflitos entre diferentes povos enquanto o SPI introduzia  inovações culturais, prevendo possíveis mudanças nos locais de habitação dos índios.  Foram estimuladas mudanças no trabalho indígena com a difusão de novas tecnologias agrícolas e o ensino da pecuária, além da arregimentação de índios para os trabalhos de conservação das linhas telegráficas" (Lima, 1987 apud Freire, s.n).

“A experiência de Rondon no trato com povos indígenas e suas idéias positivistas sobre os índios, convergentes com os projetos de colonização e povoamento definidos na criação do MAIC, originaram o convite que o tornou primeiro diretor do SPI.  Dessa forma, foi instaurado um novo poder estatizado que assegurava o controle legal das ações incidentes sobre os povos indígenas. Esse poder foi formalizado na malha administrativa do SPI, a partir de um código legal (regimentos, decretos, código civil, etc.)". (FREIRE, s. n). 

As propostas do SPITLN eram muito boas, e começaram a surtir efeito. Alguns membros associados ao órgão, como o Marechal Rondon (1865-1958), promoveu expedições ao Norte e Centro-Oeste, para mapear o território, como também encontrar tribos e comunidades indígenas, as quais ainda viviam a margem da sociedade urbana. Rondon tornou-se diretor do SPITLN, pouco tempo depois.

Fotografia do Marechal Rondon em companhias de alguns indígenas. 
Em 1918, o SPITLN, foi dividido, tornando-se apenas o Serviço de Proteção dos Índios (SPI). Rondon dedicou-se a expandir o programa, que através do trabalho e de uma educação bem básica, integrava os indígenas a sociedade brasileira, pois naquele tempo, ainda adotava-se a ideia de que eles fossem "selvagens", logo, deveriam ser civilizados.

Nos anos 30 e 40 o SPI vivenciou seu auge, chegando a ter mais de uma centena de assentamentos espalhados pelo país. Na década de 40 os irmãos Villa-Boas, OrlandoCláudio e Leonardo, passaram a trabalhar para o SPI, tendo sido os responsáveis pelo reconhecimento oficial das terras do Xingu, hoje Parque Indígena do Xingu, a primeira reserva indígena a ser reconhecida pelo Estado brasileiro, aprovada em 1961, pelo presidente Jânio Quadros. 

Orlando, Leonardo e Cláudio Villa-Boas em fotografia dos anos 50. 
Em 1943 foi criado o já mencionado Dia do Índio, pois devido ao congresso mexicano, o qual pressionou uma medida dos governos americanos quanto as tribos indígenas, Vargas, então presidente do Brasil, deu de início esse feriado, como forma de promover a presença dos indígenas, os quais nas últimas três décadas estavam sendo "reinseridos a sociedade civilizada". 

Em 19 de agosto de 1954, Getúlio Vargas em seu "segundo mandato", promulgava nesta data o decreto n. 36.098, o qual aprovava as medidas decididas no Primeiro Congresso Indigenista Interamericano, ocorrido em 1940. Ou seja, 14 anos depois, Vargas decidia adotar as medidas ali propostas dentre as quais: 
  • Reconhecer o Congresso Indigenista Americano;
  • Reconhecer o Instituto Indigenista Americano, fundado no final do congresso;
  • Promover a criação de Institutos Indigenistas nacionais;
O decreto reconhecia os artigos que normatizavam e autorizavam os institutos, todavia, no caso brasileiro, o Serviço de Proteção dos Índios, o qual era o órgão público que se mais aproximava das ideias do Instituto Indigenista, vivenciava nos anos 50 uma crise que se aprofundaria. Corrupção, desvio de verbas, negligência, maus-tratos, venda de terras indígenas, etc., levaram o SPI ser fechado em 1967. 


O SPI foi substituído em 5 de dezembro de 1967, pela Lei 5.371, a qual criava a Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Ideia encabeçada pelo ministro José Eduardo Cardozo, e concebido durante a Ditadura Militar Brasileira (1964-1985), no governo do presidente Arthur Costa e Silva (1967-1969). Basicamente a FUNAI possuía em geral as mesmas atribuições do SPI, agora ampliadas para todo o país, pois no começo do SPI, focou-se as ações no Mato Grosso, São Paulo, Paraná, Pará e Amazonas. 

Logotipo da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). 
O Artigo 1 da Lei 5.371/1967 regulamentava as diretrizes que a FUNAI deveria seguir. 
  • I - estabelecer as diretrizes e garantir o cumprimento da política indigenista, baseada nos princípios a seguir enumerados:
    • a) respeito à pessoa do índio e as instituições e comunidades tribais;
    • b) garantia à posse permanente das terras que habitam e ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nela existentes;
    • c) preservação do equilíbrio biológico e cultural do índio, no seu contacto com a sociedade nacional;
    • d) resguardo à aculturação espontânea do índio, de forma a que sua evolução sócio-econômica se processe a salvo de mudanças bruscas;
  • II - gerir o Patrimônio Indígena, no sentido de sua conservação, ampliação e valorização;
  • III - promover levantamentos, análises, estudos e pesquisas científicas sobre o índio e os grupos sociais indígenas;
  • IV - promover a prestação da assistência médico-sanitária aos índios;
  • V - promover a educação de base apropriada do índio visando à sua progressiva integração na sociedade nacional;
  • VI - despertar, pelos instrumentos de divulgação, o interesse coletivo para a causa indigenista;
  • VII - exercitar o poder de polícia nas áreas reservadas e nas matérias atinentes à proteção do índio.
As diretrizes da FUNAI, surgem influenciadas pelo trabalho de alguns indigenistas como os mencionados Irmãos Villas-Boas e o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997), sendo que Darcy já trabalhava para o SPI, tendo atuado no reconhecimento do Parque Indígena Xingu, em 1961, como também publicou livros e artigos acerca da cultura, sociedade e necessidade de proteger os indígenas e seus aspectos culturais, os quais compreendem a cultura brasileira. Darcy também trabalhou na FUNAI, além de ter sido político e Ministro da Educação (1961-1962). Escreveu não apenas sobre os indígenas, mas sobre a educação brasileira, promovendo a criação de escolas e de universidades.

Darcy Ribeiro, antropólogo, etnólogo, escritor, educador e político. Um dos grandes defensores das culturas indígenas e sua preservação para a história do Brasil. 
Mas o trágica ironia foi que enquanto a FUNAI era criada para defender os direitos indígenas, e homens como Darcy Ribeiro procuravam quebrar os preconceitos e estereótipos sobre a figura do índio, como também reformar a educação brasileira no geral, os próprios militares maltrataram os indígenas. Durante os chamados Anos de Chumbo (1968-1974), a fase mais opressora e sanguinária da Ditadura Militar Brasileira, foram criados no estado de Minas Gerais, o Reformatório Kernak, na cidade de Resplendor; e a Fazenda Guarani, em Carmésia. Tais cadeias eram centros oficiais, mas havia outros não-oficiais, operando em outros locais do Brasil, como em São Paulo. 

Neste dois locais, indígenas de diferentes etnias eram enviados para trabalhos forçados, vivendo em condições análogas a escravidão. Na época alegou-se que tais locais tratavam-se de "centros de reabilitação", pois para ali iam os homens considerados "preguiçosos", "vadios", "desordeiros", "indisciplinados", etc. Na prática, eram prisões nas quais os homens considerados "subversivos", ou que discordassem do regime ou desacatassem ordens, eram ali enviados para trabalhar a força, sendo punidos e torturados por algum desacato, e se tentassem fugir, eram mortos. Não obstante, o governo ditatorial manipulou a FUNAI, e ocultou tudo isso. 

Documentário sobre as cadeias indígenas de trabalho escravo, durante a Ditadura Militar. 

Ainda no sombrio período da Ditadura, em 19 de dezembro de 1973, foi promulgada a Lei 6.001, a qual deu origem ao chamado Estatuto do Índio, aprovado pelo então presidente Emílio Médici. O estatuto foi um grande passo para consolidar a legislação específica de apoio, suporte, proteção, tutela e defesa dos indígenas e seus costumes e culturas. Em si, o Estatuto do Índio corroborava vários aspectos que haviam sido desenvolvidos nos 60 anos antes, mas os atualizava para a Constituição Brasileira de 1967, a que estava em voga na época.

O Estatuto do Índio de 1973, dedicava vários capítulos a debater a questão das terras indígenas, no entanto, comentarei acerca dos aspectos sociais e jurídicos. Oficialmente o Estado se reconhecia como responsável por ser o tutelar dos indígenas menores de 21 anos. 

CAPÍTULO IIDa Assistência ou Tutela
  • Art. 7º Os índios e as comunidades indígenas ainda não integrados à comunhão nacional ficam sujeito ao regime tutelar estabelecido nesta Lei.
    • § 1º Ao regime tutelar estabelecido nesta Lei aplicam-se no que couber, os princípios e normas da tutela de direito comum, independendo, todavia, o exercício da tutela da especialização de bens imóveis em hipoteca legal, bem como da prestação de caução real ou fidejussória.
    • § 2º Incumbe a tutela à União, que a exercerá através do competente órgão federal de assistência aos silvícolas.
  • Art. 8º São nulos os atos praticados entre o índio não integrado e qualquer pessoa estranha à comunidade indígena quando não tenha havido assistência do órgão tutelar competente.
    • Parágrafo único. Não se aplica a regra deste artigo no caso em que o índio revele consciência e conhecimento do ato praticado, desde que não lhe seja prejudicial, e da extensão dos seus efeitos.
  • Art. 9º Qualquer índio poderá requerer ao Juiz competente a sua liberação do regime tutelar previsto nesta Lei, investindo-se na plenitude da capacidade civil, desde que preencha os requisitos seguintes:
    • I - idade mínima de 21 anos;
    • II - conhecimento da língua portuguesa;
    • III - habilitação para o exercício de atividade útil, na comunhão nacional;
    • IV - razoável compreensão dos usos e costumes da comunhão nacional.
    • Parágrafo único. O Juiz decidirá após instrução sumária, ouvidos o órgão de assistência ao índio e o Ministério Público, transcrita a sentença concessiva no registro civil.
  • Art. 10. Satisfeitos os requisitos do artigo anterior e a pedido escrito do interessado, o órgão de assistência poderá reconhecer ao índio, mediante declaração formal, a condição de integrado, cessando toda restrição à capacidade, desde que, homologado judicialmente o ato, seja inscrito no registro civil.
  • Art. 11. Mediante decreto do Presidente da República, poderá ser declarada a emancipação da comunidade indígena e de seus membros, quanto ao regime tutelar estabelecido em lei, desde que requerida pela maioria dos membros do grupo e comprovada, em inquérito realizado pelo órgão federal competente, a sua plena integração na comunhão nacional.
    • Parágrafo único. Para os efeitos do disposto neste artigo, exigir-se-á o preenchimento, pelos requerentes, dos requisitos estabelecidos no artigo 9º.
Outra diferença gerada pelo Estatuto foi a concepção de regras específicas aos direitos dos indígenas. Na prática pelo Estatuto e a Constituição de 1967, eles eram cidadãos brasileiros como qualquer outro, mas o Estado assegurava alguns direitos a mais, em termos de educação, saúde, proteção, direito penal, etc. Vejamos o que o Estatuto dizia:

TÍTULO VDa Educação, Cultura e Saúde
  • Art. 47. É assegurado o respeito ao patrimônio cultural das comunidades indígenas, seus valores artísticos e meios de expressão.
  • Art. 48. Estende-se à população indígena, com as necessárias adaptações, o sistema de ensino em vigor no País.
  • Art. 49. A alfabetização dos índios far-se-á na língua do grupo a que pertençam, e em português, salvaguardado o uso da primeira.
  • Art. 50. A educação do índio será orientada para a integração na comunhão nacional mediante processo de gradativa compreensão dos problemas gerais e valores da sociedade nacional, bem como do aproveitamento das suas aptidões individuais.
  • Art. 51. A assistência aos menores, para fins educacionais, será prestada, quanto possível, sem afastá-los do convívio familiar ou tribal.
  • Art. 52. Será proporcionada ao índio a formação profissional adequada, de acordo com o seu grau de aculturação.
  • Art. 53. O artesanato e as indústrias rurais serão estimulados, no sentido de elevar o padrão de vida do índio com a conveniente adaptação às condições técnicas modernas.
  • Art. 54. Os índios têm direito aos meios de proteção à saúde facultados à comunhão nacional.
    • Parágrafo único. Na infância, na maternidade, na doença e na velhice, deve ser assegurada ao silvícola, especial assistência dos poderes públicos, em estabelecimentos a esse fim destinados.
  • Art. 55. O regime geral da previdência social será extensivo aos índios, atendidas as condições sociais, econômicas e culturais das comunidades beneficiadas.
TÍTULO VIDas Normas Penais: 
CAPÍTULO I: Dos Princípios
  • Art. 56. No caso de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o Juiz atenderá também ao grau de integração do silvícola.
    • Parágrafo único. As penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximos da habitação do condenado.
  • Art. 57. Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte.
CAPÍTULO IIDos Crimes Contra os Índios
  • Art. 58. Constituem crimes contra os índios e a cultura indígena:
    • I - escarnecer de cerimônia, rito, uso, costume ou tradição culturais indígenas, vilipendiá-los ou perturbar, de qualquer modo, a sua prática. Pena - detenção de um a três meses;
    • II - utilizar o índio ou comunidade indígena como objeto de propaganda turística ou de exibição para fins lucrativos. Pena - detenção de dois a seis meses;
    • III - propiciar, por qualquer meio, a aquisição, o uso e a disseminação de bebidas alcoólicas, nos grupos tribais ou entre índios não integrados. Pena - detenção de seis meses a dois anos.
    • Parágrafo único. As penas estatuídas neste artigo são agravadas de um terço, quando o crime for praticado por funcionário ou empregado do órgão de assistência ao índio.
  • Art. 59. No caso de crime contra a pessoa, o patrimônio ou os costumes, em que o ofendido seja índio não integrado ou comunidade indígena, a pena será agravada de um terço.
A partir de tais artigos percebe-se alguns aspectos peculiares: a ideia de integração dos indígenas a sociedade ainda continuava, o uso de termos como silvícolas (algo que remete a ideia de selvagem); abrandamento de crimes cometidos por índios, pois teoricamente eles seriam "ingênuos" sobre algumas questões, principalmente se ele fosse morador de aldeia ou não "aldeado", como se usava o termo na época, para se referir aos indígenas que continuavam a margem da urbanidade. 

Não obstante, o Estatuto reconhecia que o indígena era efetivamente um cidadão brasileiro, passando a dispor dos mesmos direitos dos demais cidadãos, daí se mencionar direito a saúde, educação, transporte, segurança, lazer, trabalho, moradia, etc. Como também os indígenas teriam que se enquadrar a legislação brasileira no que se refere aos documentos como carteira de trabalho, título de eleitor, certidão de nascimento, casamento, óbito, etc., como também teriam direito a previdência social.

Outro aspecto a ser comentado do Estatuto, dizia respeito aos "crimes contra os índios", sendo instituído seu significado e penas. Mas o interessante, é que o próprio governo cometia tais crimes. Ainda estávamos na Ditadura, e as cadeias indígenas ainda operavam. 


Novas mudanças para os direitos dos indígenas vieram com a Constituição Brasileira de 1988, a qual é a atual constituição vigente no país. Com o término da Ditadura Militar em 1985 e a lenta e gradual retomada de um governo democrático de direito, em 1988, realizou-se a constituinte para se aprovar uma nova constituição, pois a que estava em vigência era a Constituição de 1967, criada pelos militares para reafirmar a Ditadura. Mas não havia mais sentido em mantela, já que a Ditadura não mais existia. 

Logo, na Constituição de 1988, com base no Estatuto do Índio de 1973, foi inserido já no final do texto maior do Estado brasileiro, um pequeno capítulo, o qual de forma breve era dedicado aos direitos dos povos indígenas. 


CAPÍTULO VIII: DOS ÍNDIOS
  • Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
    • § 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
    • § 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
    • § 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
    • § 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
    • § 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
    • § 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
    • § 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.
  • Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.

Em termos gerais, o Capítulo VIII: Dos Índios, da Constituição de 1988 não nos trazia nada de novo para os direitos dos povos indígenas. Ele apenas apresentava questões antes já debatidas e parcialmente seguidas e respeitadas pelo Estado, como direito de proteção, direito ao respeito; direito as terras indígenas, que se diga de passagem, é foco do capítulo. 

No fim, o Artigo 232, diz que os indígenas e suas comunidades e organizações, possuem o direito de requerer ao Ministério Público solicitar, cobrar ou exigir medidas quando as leis não estiverem sendo acatadas ou por alguma outra necessidade. Assim, na prática, os direitos específicos dados aos indígenas, ainda são os mesmos concebidos em 1973, para o Estatuto do Índio. Logo, estão bem desatualizados, já que as comunidades indígenas e os próprios brasileiros que são indígenas ou descendentes destes, vivem numa realidade bem diferente. 

No ano de 1991, a chamada PL 2057/91, foi concebida para se reformular o Estatuto do Índio. O Projeto de Lei conseguiu ser aceito em 1992, sendo encaminhado para estudo e depois votação, ele passou a ser conhecido como Estatuto das Sociedades Indígenas, porém em 1994, ele foi indeferido. O projeto do novo Estatuto ficou esquecido pelos cinco anos seguintes, quando em 1999, ele foi encaminhado novamente para ser votado, mas ele continuou a ser indeferido. A última tentativa de levá-lo a aprovação ocorreu em 20 de junho de 2012. 

O século XXI:

Embora houve várias tentativas de se aprovar a PL 2057/1991, desde 2012, não houve novas tentativas, logo, em pleno ano de 2016, os indígenas brasileiros dispõem de seus direitos específicos, pautados numa legislação ultrapassada, a qual remonta os anos 70 e a época da Ditadura. No entanto, quais foram as conquistas alcançadas neste século? Posso adiantar que praticamente elas disseram respeito ao ensino escolar indígena. 

No ano de 2001, o Comitê de Educação Escolar Indígena (atual Comissão Nacional de Professores Indígenas), aprovou o Referencial para a Formação de Professores Indígenas, e ainda no mesmo ano, lançou o programa Parâmetros Curriculares em Ação: Educação Escolar Indígena.

Em 2004, foi criada a Comissão Nacional de Apoio à Produção de Material Didático Indígena, composta por professores indígenas e especialistas na área, a fim de avaliar a proposta de livros didáticos e materiais didáticos, elaborados por escolas do sistema municipal, estadual e por ONGs.


Cerimônia de formatura de professores indígenas Guarani Kaiowá, na Universidade Federal da Grande Dourados. 
Em 2005, o MEC criou o Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Interculturais Indígenas (Prolind). Voltado para apoiar o incentivo ao ingresso de alunos e professores ao ensino superior. Mesmo com a existência de cotas para indígenas em algumas universidades, o número de indígenas que consegue ingressar no ensino superior é inferiormente menor do que o número de negros que conseguem cursar o ensino superior, conotando ainda a debilidade no ensino indígena. 

Como comentado, desde 1973, pelo Estatuto do Índio, assinalava-se que os indígenas como qualquer cidadão brasileiro, deveria ter acesso a educação básica. Pelo fato de que a maioria vivia em aldeamentos, sendo muitos destes distantes de escolas, se fazia necessário o envio de professores para as aldeias, a fim de ensinar os alunos. Isso foi feito de distintas formas, em geral de maneira precária, e no início a maioria dos professores não eram indígenas ou desconheciam a realidade, história e costumes daqueles povos. Imperava a ideia de que índio fosse tudo igual. 

Em 1999, com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional, instituiu-se a regularização do ensino indígena e do ensino nas escolas indígenas. Isso começou a mudar a partir de 2001, como assinalado acima. Não entrarei em detalhes sobre as mudanças, diretrizes e regulamentos, pois escrevi um texto específico para isso, o qual pode ser acessado na lista de links, no final deste texto. De qualquer forma, as mudanças educacionais para a valorização das culturas indígenas e o combate ao analfabetismo de crianças, jovens e adultos resultou êxito, embora que ainda não seja a meta esperada. 

Em 10 de março de 2008, foi aprovada a Lei 11.645, na época no governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva. A lei 11.645/08 reafirmava a Lei 10.639/03, a qual tornava obrigatório a inserção do ensino da história africana e afro-brasileira no currículo escolar, e agora a nova lei, fazia o mesmo, ao inserir a obrigatoriedade do ensino sobre os povos indígenas brasileiros nos currículos escolares. 



Isso foi um grande passo para o ensino brasileiro, pois até então, estudavam-se os indígenas e os negros no que se referia a época colonial e imperial, períodos nos quais eles não eram cidadãos e eram escravos. Mas quando a escravidão terminou em 1888, e começou a República em 1889, os negros e os indígenas sumiram da história brasileira, e assim permaneceram por quase todo o século XX. 

Quando eu disse que ainda hoje, algumas pessoas possuem a ideia de que índio é aquele homem e mulher que vive nu, no meio do mato, isso não é mentira. Os livros didáticos por décadas trouxeram essa concepção secular, e mesmo que o SPI e a FUNAI tenham agido para a integração das comunidades indígenas ao meio urbano e a realidade do país, o estereótipo prevaleceu, assim como prevalecem outros relacionados. 

Considerações finais: 

As conquistas na educação indígena realmente mostraram resultados nos últimos dez anos, todavia, ela caiu consideravelmente em termo de matrícula de alunos, conclusão do ensino básico, evasão escolar, precariedade nas escolas e salas de aula. Embora tenha aumentado o número de professores indígenas e não-indígenas, ainda assim, existem pouquíssimas universidades que oferecem licenciaturas voltadas para o ensino indígena. 

Não obstante, o número de índios nas universidades ou com graduação ainda é muitíssimo baixo. Mesmo dispondo de cotas para o sistema público universitário, ainda assim, tais homens e mulheres encontram vários empecilhos econômicos e sociais, para poder conseguir passar no ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) ou em outros vestibulares. A instrução básica embora tenha ampliado o número de alunos indígenas, ainda não é de boa qualidade. 

E isso é tão problemático, que neste ano de 2016, o professor e Doutor em Agronomia, Jefferson Fernandes do Nascimento, tornou-se na história do Brasil, o primeiro indígena a assumir o cargo de reitor de uma universidade federal, sendo a Universidade Federal de Roraima (UFRR). Em entrevista a Agência Brasil, o novo reitor respondeu o seguinte em uma das perguntas: 


Agência Brasil: O senhor mesmo é indígena?
Nascimento: Sim. Nascido em Surumu, Raposa Serra do Sol. Na verdade, sou um sobrevivente do processo. Sempre estudei em escola pública, pública indígena inclusive e só cheguei à universidade como docente porque casualmente tive a oportunidade de fazer ensino público, estudar na universidade federal. Senão, eu não estaria aqui para contar essa história. E a universidade federal tem esse papel, de corrigir, de minimizar, de dar oportunidade para essas pessoas se qualificarem. Tem uma dívida social que temos com essas comunidades”. (TOKARNIA, 2016). 

Professor Dr. Jefferson Nascimento, o primeiro reitor indígena de uma universidade federal brasileira. Atual reitor da Universidade Federal de Roraima (UFRR). 
Por outro lado, problemas de saúde, saneamento básico, acessibilidade, acesso a energia elétrica, água potável, telefonia móvel, internet, etc., são precários em muitos aldeamentos. Por mais que hoje tenha aumentando o número de indígenas que vivem nas cidades, ainda assim, a maioria vive na zona rural, trabalhando na agricultura e pecuária, para si mesmo ou como empregado de outros. Em alguns casos, alguns destes indígenas partem para cometer crimes, como cobrança indevida de pedágio, venda de madeira ilegal, etc. Mas não podemos dizer que todos façam isso. 

Por outro lado, muitos dos indígenas são de classe baixa, passando como outras pessoas, pelos problemas de desemprego, exploração do trabalho, e claro o preconceito, o qual em alguns casos é letal. Em 20 de abril de 1997, um dia após o Dia do Índio, Galdino de Jesus dos Santos, do povo Pataxó, havia ido a Brasília para participar das reuniões sobre a demarcação das terras de sua tribo, após a reunião ocorrida no dia 19, ele acabou se perdendo em Brasília, e decidiu dormir num banco de praça. As 5h da manhã do dia 20, cinco jovens e um adolescente, atearam fogo em Galdino, por "brincadeira". Ele não resistiu as queimaduras. Os cinco acusados nunca cumpriram suas penas na integra. 

De 2003 a 2011, o Relatório Anual de Violência contra os Povos Indígenas, apontou mais de 500 indígenas assassinados, na sua maioria homens, sendo provenientes dos estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. A maioria dos mortos, estavam envolvidos nas disputas de terras contra grileiros, fazendeiros, industriais, etc. Em muitos casos, tais pessoas não respeitam as demarcações das terras indígenas, as quais compreendem áreas de reserva florestal, então tais terras são invadidas e ocupadas. 

Protesto ocorrido em 2015, em Brasília. Na ocasião os Guarani-Kaiowá, protestavam contra o grande aumento de assassinatos de indígenas e a elevação no número de suicídios, os quais ainda não possuem uma explicação definitiva. 
Os índios ao protestarem contra tal crime, acabam sendo ameaçados de morte e alguns chegam a serem mortos (OLIVEIRA, 2012). A situação piorou de 2013 para 2014. No ano de 2013, foram registrados 53 casos de mortes violentas, e em 2014, o índice aumentou em 130%, passando para 138 casos, o que incluiu o assassinato de 16 mulheres (GAMA, 2015). 


Sendo a causa fundiária um dos principais motivos que levam a morte de membros dos povos indígenas, isso tornou-se ainda mais preocupante com a PEC 215/2000. Sobre tal projeto de ementa constitucional leia-se o seguinte:

"No ano 2000, o deputado federal Almir Moraes de Sá, do Partido da República (PR-RR), apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que recebeu o número 215. 

Ela passou a ser chamada de PEC 215. Através dessa PEC, o deputado propõe que as demarcações de terras indígenas, a titulação dos territórios quilombolas e a criação de unidades de conservação ambiental passem a ser uma responsabilidade do Congresso Nacional, ou seja, uma atribuição dos deputados federais e senadores, e não mais do poder Executivo, como é hoje. No mês de maio de 2004, a PEC 215 foi apresentada a uma comissão de deputados chamada Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados. 

O deputado Luiz Couto, do Partido dos Trabalhadores do estado de Pernambuco (PT-PE), foi escolhido para fazer um parecer sobre esta proposta e pediu o arquivamento dela por entender que ela seria inconstitucional. No entanto, em 21 de março de 2012, os novos deputados federais que integravam a CCJC (eleitos em outubro de 2010) aprovaram a PEC, desrespeitando o parecer anterior que avaliou que ela era inconstitucional. 

Desta vez quem defendeu a proposta foi o deputado Osmar Serraglio,do Partido do Movimento Democrático Brasileiro do estado do Paraná (PMDB-PR). Naquela ocasião, a CCJC definiu que o projeto não fere a Constituição Federal e, por isso, pode ser votado pelos parlamentares para, a partir dessa votação, substituir o que determina a Constituição em relação à demarcação das terras indígenas. No dia 10 de dezembro de 2013, apesar dos protestos dos povos indígenas, o presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Eduardo Lyra Alves, do PMDB do Rio Grande do Norte, instalou a Comissão Especial da PEC 215. 

Esta comissão tem por finalidade elaborar a redação final do texto para posterior submissão ao plenário da Câmara dos Deputados para votação. Em 17 de novembro de 2014, o deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR), relator da Comissão Especial da PEC 215, apresentou um Substitutivo à PEC 215/2000, com novas emendas, onde fica explicito o fim das novas demarcações de terras indígenas e, o que é pior, propõe reabrir procedimentos administrativos já finalizados e legaliza a invasão, a posse e a exploração das terras indígenas demarcadas. 

Em dezembro de 2014, o movimento indígena e entidades indigenistas fizeram diversas mobilizações para evitar que esse Substitutivo fosse aprovado na Comissão Especial. O movimento saiu vitorioso, já que pelo fato da Câmara não ter conseguido aprovar o parecer até o final do ano legislativo, a PEC foi arquivada. No entanto, no início de 2015, o deputado Luis Carlos Heinze do Partido Progressista o Rio Grande do Sul (PP-RS) entrou com um pedido de desarquivamento da PEC. 

No dia 17 de março, o atual presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) reinstalou a Comissão Especial. A PEC 215 é uma grave ameaça aos povos indígenas e pode significar o fim das demarcações das terras indígenas no Brasil. Na luta para impedir que a PEC seja aprovada, é fundamental que os povos indígenas tenham conhecimento sobre as propostas dos deputados e senadores, dos interesses que eles têm em defender tais iniciativas e também de quem financia os seus mandatos. 

Essa publicação pretende contribuir com informações para ampliar este conhecimento. É importante que os povos compartilhem essas informações nas comunidades, nas escolas, nas reuniões do movimento indígena e onde mais for possível para ampliar o debate e a articulação contra a PEC 215". (Cartilha contra a PEC 215). 

Todavia, a PEC 215/2000 foi aprovada em 2015, pela Câmara dos Deputados, tendo sido encaminhada ao Senado, onde aguarda avaliação para ser aprovada ou reprovada. Sobre isso, a Cartal Capital publicou uma matéria, vejamos alguns trechos dela: 

Dizem que a PEC 215 beneficia ruralistas. É verdade?

Sim, principalmente por conta de dois dispositivos previstos no texto. O primeiro é o que passa a prever indenização dos proprietários de terras nas áreas demarcadas em todos os casos. Atualmente, há apenas a indenização das benfeitorias realizadas a partir da ocupação de boa fé do terreno, mas o pagamento pela terra não está previsto em lei.

O segundo ponto é o que fixa o dia 5 de outubro de 1988, data em que a Constituição foi promulgada, como "marco temporal" para definir o que são as terras permanentemente ocupadas por indígenas e quilombolas. Isso significa que os índios não terão direito à terra se não a ocupavam em 1988. Dessa forma, a PEC 215 não leva em conta grupos indígenas que foram expulsos de suas terras tradicionais e que, devido a conflitos fundiários ou por ações da ditadura, não conseguiram voltar a ocupar estas áreas.

Quem apoia a proposta?

A proposta tem o apoio da bancada ruralista, que derrubou pedidos de retirada da matéria da pauta e cinco requerimentos de adiamento de votação apresentados pelos parlamentares contrários à proposta. A PEC 215 tramita há 15 anos na Câmara sem alcançar um acordo entre os parlamentares sobre seu conteúdo. Em 2014, outra Comissão Especial para tratar do texto foi arquivada. Este ano, porém, deputados da bancada ruralista, aliados ao presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), conseguiram reativar e aprovar a análise da matéria na Comissão Especial.

O que os índios pensam sobre a PEC 215?

As diversas etnias e grupos indígenas brasileiros são, majoritariamente, contra a proposta. Na terça-feira 27 [2015], um grupo de líderes indígenas foi barrado no plenário 14 da Câmara, onde ocorreu a reunião. Em resposta, houve protestos de indígenas nos corredores das comissões e nos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, que acontecem em Palmas (TO).

Segundo a interpretação das lideranças e de entidades defensoras dos direitos indígenas, a PEC 215, na prática, paralisaria e inviabilizaria a demarcação ou a ampliação de áreas de povos tradicionais. Com isso, afirmam as entidades, as propriedades ficariam acessíveis à exploração hidrelétrica, de mineração e do agronegócio. Além disso, especialistas esperam um aumento dos conflitos com a aprovação da PEC 215.


Caso o "marco temporal" seja realmente baseado na data de 1988, todas as reservas indígenas anteriores, como o Parque Indígena do Xingu, o primeiro do tipo, criado em 1961, poderá deixar de existir. O que estamos comemorando mesmo no Dia do Índio?

Referências Bibliográficas: 
BETHELL, Leslie (org). História da América Latina: A América Latina Colonial, volume II, São Paulo, EDUSP, 1999.
DAVIDOFF, Carlos Henrique. Bandeirantismo: verso e reverso. 2a edição, São Paulo, Brasiliense, 1984. 
LANGER, Johnni; RANKEL, Luiz Fernando. Cultura material e civilização: a exposição antropológica de 1882. Cadernos do CEOM, ano 19, n. 24, 2006, p. 13-29. 
SOUSA, Ricardo Alexandre Santos de. A extinção dos brasileiros segundo o Conde de GobineauRevista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, jan/jun 2013, p. 21-34. 
VOLPATO, Luiza. Entradas e Bandeiras. 2a edição, São Paulo, Global, 1986. (Coleção História Popular - 2).


Referências da internet:
Cartilha contra a PEC 215/2000
FREIRE, Carlos Augusto da Rocha. O Serviço de Proteção aos Índios. Disponível em: http://museudoindio.gov.br/textual/382-o-servico-de-protecao-aos-indios.
GAMA, Alliny. Assassinatos de índios crescem 130% em 2014, aponta relatório. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/06/19/assassinatos-de-indios-crescem-130-em-2014-aponta-relatorio.htm. 2015. 
PELLEGRINI, Marcelo. PEC 215 é aprovada em Comissão na Câmara. Quais os próximos passos. Carta Capital. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/politica/pec-215-e-aprovada-em-comissao-da-camara-quais-os-proximos-passos-6520.html
OLIVEIRA, Mariana. Mais de 500 índios foram mortos desde 2003, aponta Cimi. Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/06/mais-de-500-indios-foram-mortos-desde-2003-no-brasil-aponta-cimi.html. 2012. 
TOKARNIA, Mariana. Primeiro indígena reitor quer expandir assistência estudantil em Roraima. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2016-03/indio-que-e-reitor-quer-internacionalizar-universidade-federal-de-roraima. 2016. 

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