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Leandro Vilar

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Magia, feitiçaria e bruxaria na Europa medieval e moderna

Quando conversamos a respeito de magia, feitiçaria e bruxaria, normalmente as pessoas expõem três respostas: isso tudo não existe, não passa de charlatanice e farsa; magia, bruxaria e feitiçaria é coisa do Diabo, não é algo de Deus; magia, bruxaria e feitiçaria são algo real. 

Por sua vez, acrescenta-se uma segunda pergunta: como são as bruxas? Neste caso, dependendo da pessoa ela irá responder que as bruxas são mulheres velhas, feias, narigudas, e possuem verrugas; que usavam vestidos longos, capas e chapéus pontudos; que moram em cabanas em meio a florestas sombrias; que voam em vassouras, tem gatos pretos, caldeirões e varinhas mágicas. 

Essas respostas são reflexo da construção cultural e imagética que ocorreu nos últimos 600 anos na Europa, pois nossas concepções de magia, bruxaria e feitiçaria advém do modelo cultural europeu, inclusive o conceito de bruxa é exclusivamente europeu, embora que feitiçaria e magia fossem algo conhecido na África, Ásia, Oceania e nas Américas, mas com outros nomes. 

Sendo assim, pelo fato de nossa percepção contemporânea sobre tais elementos mágicos e místicos estarem baseadas na Europa, o recorte temporal para este estudo foi centrado em compreender como tais conceitos se tornaram o que hoje são, e basicamente isso ocorreu entre os séculos XIV e XVII, um período bastante peculiar da história europeia, pois corresponde ao final do medievo e começo da modernidade, ao advento do Renascimento, da Reforma Protestante e da Revolução Científica, e no final do XVII, delineamos os primeiros passos do Iluminismo, mas mesmo diante dessas mudanças de pensamento, a magia foi visto como uma superstição, pseudociência, ocultismo, esoterismo e como um perigo. 

1) O que é magia?

A ideia de magia é bastante antiga e se perde no tempo, todavia foi somente no século XIX que o conceito de magia passou a ser estudado propriamente com um rigor acadêmico e científico, principalmente por antropólogos como Edward Burnett Tylor (1832-1917), autor de importantes livros como The Religion of Savages (1866) e Primitive Culture (1871). De vertente positivista e evolucionista, Tylor influenciou vários estudiosos do campo da antropologia, arqueologia, história e sociologia nas décadas seguintes. Para ele religião e magia estavam associadas, sendo que a magia seria a reminiscência de práticas primitivas originárias do comportamento religioso de "sociedades primitivas". Tylor defendia que as primeiras sociedades não possuíam "religião", mas possuíam o que ele chamou de "comportamento religioso" ou "aspectos de religiosidade", ou seja, que tais sociedades não teriam religiões estruturadas (com credo, rito, dogmas, clero, templos, etc.), mas teriam a noção de sobrenatural, divindade e adoração, sendo que neste caso, a natureza se manifestaria como sendo forças sobrenaturais geradas por alguma entidade. Neste ponto Tylor concebia a magia como sendo uma forma que as pessoas "primitivas" usavam para interagir com essa realidade sobrenatural, e devido a falta de um conhecimento mais concreto, achavam que feitiços, oferendas, práticas mágicas e conjurações teriam um resultado real (AGNOLIN, 2013, p. 20). 

Nos dizeres de Tylor, a magia seria algo oriundo de um "pensamento ignorante e primitivo", comum entre as primeiras sociedades. Neste ponto, na ausência de uma religião propriamente falando, Tylor sugeriu o conceito de animismo, o qual basicamente propunha que tudo na natureza possuiria uma anima (alma ou espírito). Sendo assim, a água, o fogo, o ar, a terra, o Sol, a Lua, as estrelas, animais, plantas e pessoas possuiriam almas, e devido a tal condição eles possuiriam vontade e desejo, daí Tylor indicar que o fato de as pessoas verem deuses do sol, da lua, da terra, do fogo, do mar, etc., era resultado da crença no animismo. 

Na esteira dos estudos de Edward Tylor, James George Frazer (1854-1947) publicou a coletânea em 12 volumes de The Golden Bough: a Study in Magic and Religion (1890) e posteriormente publicou Totemism and exogany (1910). Nos primeiros livros, Frazer concebe que o pensamento mágico antecederia o pensamento religioso, neste caso, o pensamento mágico seria basicamente a crença que na realização de alguns ritos e práticas mágicas poderiam gerar alguma mudança na realidade ou influência sobre alguma pessoa, animal ou planta. Neste sentido ele considerava a magia puro pensamento débil, supersticioso e ignorante. Por sua vez, ele concebia que o pensamento religioso era pautado na crença que a realidade era alterada e transformada pela vontade de espíritos e divindades. Para que as pessoas quisessem que suas vidas mudassem ou desejassem algo, deveriam recorrer a intervenção divina. Por fim, Frazer completava dizendo que após o pensamento religioso o qual ainda estaria influenciado por superstições, viria o pensamento científico. Aqui se percebe uma tendência evolucionista: magia-religião-ciência. O pensamento científico seria a "etapa" final, por representar o patamar concreto da razão, não mais fundamentado em crenças mágicas e religiosas (CANDIDO, 2008, p. 7-8). 

No segundo livro, ele substituiu a teoria do animismo pela teoria do totemismo, na qual concebia que símbolos seriam as primeiras formas de idolatria, pois personificariam entidades e/ou divindades. Nesse sentido, numa época que as divindades não possuíam formas e nem nomes definidos, uma imagem simples (troncos, pedras, e até mesmo animais e plantas), as personificavam e se tornavam objeto de culto e orações. 


No século XX a noção sobre magia começou a mudar, e teve início na crítica as ideias de Tylor, Frazer e outros que compartilhavam de tais opiniões. Ambos defendiam uma noção de "evolucionismo cultural", o que queria dizer que as sociedades "evoluiriam" com o passar do tempo, pois a "evolução" seria uma lei. No entanto, isso não é verdade. Hoje em pleno século XXI, ainda existem sociedades tribais as quais mantém hábitos que remontam há séculos ou até mesmo há milhares de anos. Se a "evolução social e cultural" fosse uma determinante, então todos os povos do mundo teriam "evoluído". 


Por outro lado, outro problema que foi duramente criticado na teoria deles foi a ideia de que a magia fosse uma prática somente de "povos primitivos". Ora, as ditas "civilizações superiores" como os egípcios, babilônios, sumérios, indianos, chineses, japoneses, persas, gregos, romanos, etc., todos faziam uso da magia, todos acreditavam em alguma forma de magia. Logo, como explicar que esse "pensamento arcaico e retrógrado" pudesse sobreviver nas ditas "civilizações avançadas", que inclusive dispunham de conhecimento filosófico e científico?


A partir de tais críticas e no repensar da história, da antropologia, da sociologia e da cultura, passou a se ver que o pensamento mágico não seria algo "originário de culturas primitivas" e estaria limitado a estas, mas a magia foi uma concepção que se originou de diferentes formas, em diferentes épocas, e entre diferentes povos e culturas espalhadas pelo planeta. Sobrevivendo ao longo do tempo. 


Todavia, qual seria o conceito de magia propriamente?


"Chama-se magia ao conjunto de diversos actos cuja finalidade é exercer influência no mundo que nos rodeia através de um meio imaginário e sobrenatural". (SOKOVIEDS, 19??, p. 11). 


Originalmente concebia-se que a magia tivesse apenas influência sobre o imaginário e o sobrenatural, algo que mesmo Sokovieds no século XX em sua conceituação ainda mantinha, entretanto, Winfried Nöth aponta que não podemos utilizar nosso conceito de sobrenatural para as culturas e povos antigos, pois dependendo do povo não haveria uma noção clara entre o que seria natural ou sobrenatural, pois para alguns povos ambos não estariam separados, ou seja, o sobrenatural seria o natural. Por sua vez, a ideia de sobrenatural em alguns casos aparece vaga, pois algumas práticas mágicas incidem diretamente sobre a matéria. 


“A fronteira entre o natural e o sobrenatural depende dos limites do cientificamente possível, como destacou Todorov (1973, p. 41). Com a expansão de nosso conhecimento científico, o sobrenatural pode se tornar natural. A magia, se definida em termos do sobrenatural, pode se tornar ciência. As descobertas da psicologia e da psicoterapia têm mostrado que um encantamento, pode ter um efeito curativo somático. Além disso, as práticas mágicas que acompanham as atividades diárias, como caçar e trabalhar, podem ter uma influência psicológica positiva sobre elas. Dessa forma, o sobrenatural torna-se natural. A magia, se definida como categoria do sobrenatural, pode vir a ser ciência”. (NÖTH, 1996, p. 37). 

Para Winfried Nöth (1996, p. 32-33, 37-40) o conceito de magia é bem mais abrangente. Magia seriam práticas que agiriam sobre o natural e o sobrenatural, por exemplo, tentar curar alguma doença através da magia, é usá-la de forma a agir sobre o natural, neste caso, o corpo humano; por sua vez, tentar usar os espíritos para causar um benefício ou malefício a alguém, é agir no sobrenatural. 

A magia seria feita através de signos e símbolos, como vetores para que possa possuir uma ação. Neste caso, os signos representariam essencialmente as palavras, fossem elas proferidas ou escritas. Normalmente feitiços e encantamentos são feitos com o pronunciamento de palavras e fórmulas mágicas, em alguns casos, elas são escritas num objeto para que possa gerar esse efeito. Os símbolos seriam desenhos, imagens, objetos, etc., usados para realizar feitiços, conjurações, encantamentos, etc. 

A magia também teria uma característica adivinhatória, na qual essencialmente através de diferentes práticas procura-se prever o futuro. Quiromancia (palma da mão), cafeomancia ( borra do café numa xícara), astrologia (corpos celestes), cartomancia (cartas, tarot), auropiscina (entranhas de animais), augúrio (voo de pássaros), piromancia (fogo), oniromancia (sonhos), numerologia (números), necromancia (espíritos dos mortos), cristalomancia (bola de cristal) etc. 

O zodíaco é um dos principais elementos da astrologia. Os signos são baseados em 12 constelações as quais dependendo da posição do Sol, da Lua e dos
 planetas, isso causaria influências no emocional das pessoas e em seu destino. 

Algumas dessas práticas adivinhatórias são bastantes antigas. Sabe-se que há milhares de anos os sumérios e babilônios já faziam uso da astrologia. Na Bíblia é dito que os Três Reis Magos se guiaram ao encontro de Jesus, com base numa estrela cadente (ou cometa). Eles interpretaram aquele sinal como a revelação de uma profecia, embora não fossem hebreus. 

No poema Epopeia de Gilgamesh com datação de mais de três mil anos, o herói da história, o rei semideus Gilgamesh tem vários sonhos ao longo da narrativa poética, e estes sonhos são oníricos, ou seja, dizem respeito a acontecimentos futuros. Sua mãe a deusa Ninsun, e seu amigo e irmão de armas Enkidu, são os quais interpretam os sonhos de Gilgamesh. Inclusive na Bíblia, José do Egito é conhecido por ter interpretado os sonhos do faraó. 

O historiador romano Plutarco em sua biografia sobre o lendário rei Rômulo, fundador de Roma, diz que antes dele fundar a cidade, teria visto um bando de pássaros voando, então Rômulo tomou aquilo como um mau presságio, e ao investigar a direção para onde o bando se dirigiu, descobriu que seu irmão Remo havia invadido suas terras. Na ocasião os gêmeos discutiram e brigaram, e Rômulo acabou matando Remo. 

Os magus, sacerdotes persas responsáveis pelo culto ao fogo sagrado, interpretavam o futuro através das chamas (piromancia). Na Grécia Antiga foi comum a prática da auropiscina, onde sacerdotes e feiticeiros interpretavam o futuro com base nas entranhas de animais. Alexandre, o Grande teria recorrido a tais práticas em algumas ocasiões para saber sua sorte na batalha. Além disso, sabe-se que Alexandre chegou a recorrer ao oráculo de Delfos e o oráculo de Amon no Egito. 

A magia também estaria associada ao imaginário, por exemplo, a ideia de realizar encantamentos, feitiços, ritos, etc., para conceder sorte, saúde, proteção, força, coragem, sabedoria; ou realizar feitiços, encantamentos e poções para fazer as pessoas se amarem ou se odiarem. 


A magia também está associada a superstição. Há quem defenda que o pensamento mágico seja por si só supersticioso. Aqui os exemplos são vários e em geral estão associados ao azar e a algo de ruim. Quebrar espelhos, passar por debaixo de escadas; cruzar o caminho de um gato preto; deixar um guarda-chuva aberto dentro de casa; deixar calçados com a sola para cima; deixar vassouras de ponta-cabeça; derrubar sal, açúcar e leite no chão, etc. 


Em alguns casos essas superstições também podem está associadas a meios de combater a inveja, o mal olhado, a cobiça, os pensamentos negativos: usar amuletos da sorte; plantar alecrim, pimenteira, capim santo, entre outras plantas, na frente da casa; tomar banho de sal grosso; tomar banho de alfazema, etc. Fazer sinais e gestos com as mãos no intuito de autoproteção.


No entanto, não podemos chegar ao ponto de dizer que toda superstição ou crendice esteja relacionado a magia. Por exemplo, assobiar de noite pode atrair cobras; as mulheres que acabaram de dar à luz não podemo lavar os cabelos nos primeiros dias; entrar numa igreja sem fazer o sinal da cruz; olhar o amanhecer do primeiro dia do ano, pois dará sorte; pular sete ondas no Ano Novo para trazer sorte, etc. Neste ponto é difícil delimitar o que seria mera superstição e pensamento mágico. 


A magia estaria associada com a comunicação com outros mundos, neste caso o xamanismo seja o melhor exemplo disso. O xamãs são conhecidos por entrarem em estado de transe e projetarem sua consciência ou espírito para o mundo dos mortos, para corpo de animais (em alguns casos é dito que eles se transformariam em animais propriamente); eles poderiam viajar por outros mundos; percorrer distâncias longínquas neste mundo, e até aparecer em outro lugar em projeção astral. Os xamãs também poderiam servir de vetor para que espíritos incorporassem neles e se comunicassem com os vivos. (ELIADE, 2002, p. 15-20). 


O xamã mongol Zorigtbaatar Banzar, conduzindo uma cerimônia. O uso de instrumentos musicais e cantos é algo comum nas práticas xamânicas, pois ajuda o xamã entrar em transe através da vibração sonora. 

Marcel Mauss (1974, p. 56-57) assinala que uma das funções mais antigas da magia era a cura de enfermidades. Antes do advento da medicina como hoje a conhecemos, práticas mágico-religiosas eram a forma pela qual as pessoas em diferentes culturas tinham para tentar tratar de ferimentos e curar doenças. A maioria destas práticas não surtiam efeito propriamente, no entanto, alguns curandeiros, como ficaram conhecidos, tornaram-se especialistas em plantas medicinais e neste ponto, o emprego destas plantas mesmo pautado no pensamento mágico, gerava resultados. 

Por outro lado, tais plantas poderiam ser usadas para se fazer venenos ou preparar poções e feitiços para se causar atos danosos. 


“Considerada a erva das bruxas por excelência é a mandrágora (Atropa mandrágora). Sua imagem é encontrada em vários manuscritos medievais e renascentistas e sempre é mencionada como um dos ingredientes principais para o preparo de todo tipo de poção ou feitiço. A presença da mandrágora é registrada na literatura desde a Antiguidade, em poemas medievais, na Bíblia, nas tragédias shakespearianas e no cinema. [...]. A raiz da mandrágora por ter a forma semelhante ao ser humano foi alvo de várias crenças, inclusive de que ela seria o ancestral vegetal do homem e isso só fez aumentar a crença no seu poder mágico. Com potentes alcaloides que em altas doses causam fortes dores, tonturas, alucinações, convulsões e morte a raiz da mandrágora era utilizada principalmente para propiciar alucinações. Quando empregada nos unguentos e estes espalhados nas mucosas nasais, vaginais e anais entravam rapidamente na corrente sanguínea produzindo muitas vezes efeitos letais”. (CAMPOS, 2014, p. 5-6).

Página do livro Gart der gesuntheit, de 1485, retratando uma mandrágora. 

Mircea Elíade (1983, p. 10) aponta que a metalurgia foi por algum tempo considerada uma prática mágica, pois transformar minérios em metais, e depois conceder forma a estes era encarado como um processo mágico, pois para moldar o metal é necessário o uso do fogo e da água, além de outras técnicas. Fogo e água são elementos que compreendem alguns ritos mágicos e religiosos, daí essa associação, e inclusive essa ideia mágica da metalurgia foi transferida para a alquimia

“Mas algo tem em comum entre o mineiro, o ferreiro e o alquimista: todos eles reivindicam uma experiência mágico-religiosa particular em suas relações com a substância; esta experiência é seu monopólio, e seu segredo se transmite mediante os ritos de iniciação dos ofícios; todos eles trabalham com uma matéria que têm ao mesmo tempo por viva e sagrada, e seus trabalhos vão encaminhados à transformação da Matéria, seu «aperfeiçoamento», sua «transmutação»”. (ELÍADE, 1983, p. 10). 

Diante de tais características aqui esboçadas podemos chegar a uma definição mais abrangente do que seria a magia. As duas definições apresentadas a seguir são pautadas em minha opinião e estudo sobre o assunto, quem quiser utilizá-las cite como (VILAR, 2016). 

Magia consiste numa crença pautada em desígnios místicos, religiosos, supersticiosos, imaginários, naturais e sobrenaturais, pelos quais seus praticantes ou aqueles a quem recorrem ao seu uso, acreditam que possam interferir na realidade natural e sobrenatural; influenciar acontecimentos, prever o futuro, curar ferimentos ou enfermidades; influenciar pessoas, animais, plantas, espíritos, etc., de forma positiva ou negativa; proporcionar a obtenção de algo (amor, dinheiro, conhecimento, sorte, trabalho, saúde, imortalidade, beleza, fertilidade, coragem, força, proteção, confiança, etc.); alterar estados da matéria através da transmutação de elementos orgânicos e inorgânicos; projetar sua consciência ou espírito para outras realidades, se transformar em animais ou assumir outras formas; comunicar-se ou invocar espíritos, mortos, entidades, etc. 

A magia é pautada em ritos mágicos como cantos, danças, sacrifícios e cerimônias, podendo ser de caráter público ou privado, mas também pode ser feita através do uso de signos, símbolos, objetos, animais e plantas para se criar feitiços, encantamentos, conjurações, evocações, poções, etc. 

Para encerrar essa primeira parte do texto, após vermos as definições de magia, passemos para conhecer sua classificação e tipos. É importante salientar que a magia muda com o tempo, logo feitiços praticados hoje não eram feitos antigamente e vice-versa, além disso, a magia muda de país para país, de cultura para cultura. Um objeto que seja considerado um amuleto de sorte para alguns, para outros, não terá a mesma função. 


Classificação da magia: Dependendo do autor a maneira como ele irá nomear tal classificação e quantas classificações existem, muda, no entanto, optei pela classificação a seguir pautada nas minhas pesquisas. 

  • Magia de concessão: basicamente consiste na prática mágica que concede algum benefício ou malefício para alguém. Essa é a classe mais comum de magia. Vários dos exemplos que serão mostrados a seguir, são casos de magia de concessão, pois concedem virtudes, qualidades, etc. 
  • Magia icônica e simbólica: de acordo com Nöth (1996, p. 38-39), trata-se das magias realizadas com base em signos (letras), ícones (representações diretas), símbolos (representações abstratas) e gestos. Aqui se incluem a realização de danças, cantos, cerimônias, sacrifícios, oferendas, etc. 
  • Magia de contato: segundo Sokovieds (p. 22), consiste na magia cujo efeito ocorre apenas em contato com o alvo da prática mágica. Por exemplo, um amuleto da sorte, só terá efeito se a pessoa estiver carregando ele, caso contrário sua ação será ineficaz. A magia medicinal essencialmente é uma magia de contato. 
  • Magia inicial ou transmissível: consiste de acordo com Sokovieds (p. 22) a prática mágica na qual o feiticeiro, mago, bruxa, etc., não tem contato com o alvo, logo, ele utiliza outros meios para aplicar sua ação, recorrendo ao pronunciamento ou escrita do nome da pessoa; ao uso de imagens, mechas de cabelo, unhas, ou mudas de roupa, ou algum objeto pessoal da pessoa. A ideia é que através do nome, das partes do corpo (cabelos e unhas), e dos pertences da pessoa, o feitiço irá funcionar. 
  • Magia de previsão: consiste nas artes de adivinhação para prever o futuro.
  • Magia de manipulação: trata-se das práticas mágicas que concedem influência sobre seres animados (naturais e sobrenaturais) ou inanimados, substâncias, elementos, etc. Normalmente no sentido de mover, criar, transformar, mudar, alterar o estado da matéria. 
  • Magia de projeção: consiste em projetar seus poderes, influência, presença, consciência e espírito para outros seres, lugares e mundos. 
  • Animais mágicos: consiste em animais que supostamente teriam poderes mágicos ou eram/são empregados na realização de magias. Normalmente os animais usados nas práticas mágicas são domésticos: gatos, cães, porcos, galinhas, cabras, carneiros, cavalos, vacas, etc., porém há também o uso de animais selvagens como sapos, ratos, lobos, ursos, cobras, escorpiões, aranhas, etc. 
  • Plantas mágicas: são as plantas que além de virtudes medicinais possuiriam virtudes mágicas, sendo empregadas para diferentes tipos de magia. Alguns exemplos de plantas são: alecrim, alfazema, capim santo, artemísia, bálsamo, sândalo, cebola, alho, alho-poró, mandrágora, pimenta, cacau, banana, maçã, etc. Tais plantas poderiam ser usadas para o fabrico de medicamentos, na realização de purificações, curas, mas também poderiam ser usadas no fabrico de venenos. 
  • Seres fantásticos: consistem em criaturas imaginárias, lendárias e mitológicas, geralmente associadas com a ideia de monstros. Fênix, unicórnios, dragões, basiliscos, grifos, gigantes, mantícoras, golems, zumbis, vampiros, lobisomens, etc. 
a) magia de proteção: uma das formas mais comuns de magia, a qual consiste em se utilizar amuletos, talismãs, feitiços, outros tipos de objetos encantados para conceder proteção natural e sobrenatural para o lar, para a terra, a família, alguma pessoa ou para si próprio. A ideia da magia de proteção é manter afastados quaisquer ameaças como inimigos, animais, doenças, acidentes, espíritos malignos, etc. Em geral a magia de proteção em alguns casos está atrelada a religião, pois não se apela apenas ao mágico, mas requere-se o apoio divino também. 

Exemplos: Durante os surtos de peste negra na Idade Média, entre os séculos XIV e XV, em alguns locais as pessoas usavam amuletos benzidos ou encantados para que lhes protegessem da praga. Em alguns casos os amuletos continham dentro dele um pedaço de papel com citações dos salmos (eram chamados de Breves), para reforçar a defesa. Havia também casos de se usarem amuletos com imagens de São Sebastião e São Roque, pois ambos os santos haviam sido mortos com flechadas, e por sua vez, havia a crendice que a peste seriam "flechas envenenadas" enviadas por demônios, daí apelar para tais santos (VILAR, 2010).


Todavia, ainda hoje em alguns lugares se usam feitiços, encantamentos, objetos e outras formas de conceder proteção. Outro exemplo, são os selos mágicos usados pelos japoneses em templos budistas, xintoístas, casas, etc. O selo consiste num pedaço de papel, onde se escreve algumas palavras ou frases que concederão proteção e segurança. 


Existem também casos de proferir feitiços para conceder sorte no momento que algo de perigoso possa está por ocorrer. 


“Um exemplo de magia indicial no folclore infantil é o seguinte encantamento autoprotetor, dito por crianças na Inglaterra ao avistarem uma ambulância passando na rua (Opie e Opie, 1959, p. 231): “Segure sua gola/ Nunca engula/ Nunca morra de febre” (“Hold you collar/ Never swallow/ Never die of fever”). O primeiro elemento indicial nesse encantamento já está presente no pressuposto medo de encontrar uma ambulância: a ambulância é um índice da doença da pessoa que ela carrega. O mero ato de ver esse índice é avaliado como um perigo pela criança”. (NÖTH, 1996, p. 39). 

b) magia de sorte e de azar: muitas pessoas tendem a realizar simpatias para conseguir sorte: usar peças de roupas, amuletos, talismãs, fazer algum rito ou oferenda para se conceder sorte. Normalmente as pessoas pedem sorte para ganhar algo: dinheiro, amor, algum prêmio, alguma disputa, alguma oportunidade, algum jogo, etc. Por outro lado, o oposto também pode ser feito no intuito de querer que alguém tenha azar. 


Exemplos: Quando falamos em magias de sorte normalmente os amuletos e objetos da sorte sejam as referências mais comuns a tal prática: pé de coelho, trevo de quatro folhas, pimenta, batata, ferradura, figa, fita do Senhor do Bonfim (algo bem comum no Brasil), Olho Grego, Palma Budista, estátuas dos Sete Deuses Japoneses da Sorte, estátuas dos gatinhos japoneses da sorte (Maneki Neko), etc. 



Cordão com vários amuletos da sorte. 

c) magia amorosa: outra forma de magia bastante comum foi a magia para se conquistar o amor ou reconquistar a pessoa amada. Ter sorte no amor consiste em arranjar alguém por quem você se apaixona, por sua vez a magia amorosa tende a ser aplicada para forçar a pessoa que você ama, mas que não te ama, a se apaixonar por você. Normalmente a magia amorosa é usada já quando se tem uma pessoa em mente. As formas mais comuns para tal tipo de magia são as icônicas poções do amor, feitiços e encantamentos. Todavia, a magia amorosa também pode ser usada ao contrário, ou seja, para por o fim no amor e levar a separação. 

Exemplos: Na mitologia grega a princesa e feiticeira Medeia, valendo-se de seu conhecimento mágico usou uma magia amorosa para conquistar o herói Jasão. Também na mitologia grega, Afrodite deu um pomo dourado para o príncipe troiano Páris, dizendo que ele entregasse aquele pomo a rainha Helena de Esparta. Ao fazer isso, os dois se apaixonaram profundamente. 


A poção do amor. Evelyn de Morgan, 1903. 

No Brasil é muito comum fazer magias amorosas associadas com o uso de mel, ovos, bananas e velas. Hoje em dia o uso de poções do amor foi praticamente substituído pelo uso de feitiços e encantamentos, inclusive na época que as ditas poções eram usadas, elas faziam uso de ervas e plantas afrodisíacas e em alguns casos psicotrópicas, o que acabava drogando as pessoas. 

d) magia adivinhatória: prever o futuro é algo que muitas pessoas têm curiosidade, pois o futuro assombra bastante alguns. Anteriormente já foi mencionado algumas formas de adivinhação, no entanto é preciso dizer que a adivinhação provém de duas maneiras: 

  • Adivinhação por associação: a qual consiste em observar e descrever animais, plantas, astros, fenômenos naturais, números, sonhos, substâncias, objetos, etc., os quais dependendo da forma, da aparência, etc., indicarão acerca do futuro. 
  • Adivinhação por assimilação: a qual consiste no fato do adivinho, profeta, oráculo, vidente, etc., receber informações sobre o futuro através de espíritos, mortos, entidades e divindades. 
Exemplo: o famoso Oráculo de Delfos era o mais importante oráculo da Grécia, e por séculos os gregos se dirigiram para aquela pequena cidade numa encosta montanhosa para consultar as misteriosas profecias da pitonisa, as quais se diziam que a pitonisa nome dado a vidente em questão, recebia as revelações sobre o futuro através do deus Apolo. A pitonisa entrava em estado de transe ao inalar alguns gases que saíam por debaixo do templo, então em estado de torpor ela receberia as revelações do deus-solar. 

Sacerdotisa de Delfos. John Collier, 1891. 

Na mitologia escandinava, o deus Odin em dados momentos procura por völvas (adivinhas), as quais haviam morrido, mas ele as ressuscita por um momento para que elas lhe informem sobre o futuro. Inclusive entre os vikings existiam maneiras de se prever o futuro, uma delas era jogar runas

d) magia medicinal: consiste no uso de práticas mágico-religiosas para conceder o tratamento e cura de ferimentos e doenças, tais pessoas normalmente são chamadas de curandeiras e curandeiros. A magia medicinal pode atuar sobre o corpo e sobre o espírito. Ainda hoje é comum inclusive no cristianismo o uso de exorcismo para se afastar demônios ou espíritos malignos, embora tal prática seja mais comum em algumas igrejas protestantes e espíritas (no Espiritismo não se chama de exorcismo, mas de desobsessão). 

A magia medicinal em geral é realizada para tratar do corpo físico e possui grande uso de ervas medicinais e plantas mágicas, que supostamente teriam propriedades curativas. O mais comum na magia medicinal é o uso de poções, emplastros, filtros, cataplasmas, pomadas, sangrias, beberagens, etc., pelas quais as substâncias naturais entrariam em contato com o corpo. Além disso, usam-se feitiços, ritos e rezas também. Em alguns casos a magia medicinal pode ser realizada com base em superstições bem estranhas. 

A magia medicinal além de procurar curar, também foi usada no intuito de conceder a imortalidade, a juventude e beleza eternas. Neste caso temos histórias de elixires da longa vida ou da imortalidade; poções de rejuvenescimento e de beleza, ou as lendas sobre fontes da juventude

Exemplos: No Brasil em alguns lugares é comum encontrar pessoas chamadas de benzedeiras (curadeira, rezadeira) e benzedeiros, os quais são homens e mulheres geralmente cristãos, mas que possuem conhecimento mágico. Nestes lugares costuma-se se dizer quando você sofre algum pequeno ferimento ou está com alguma dor incomodando, as pessoas indicam ir procurar a benzedeira ou o benzedeiro para "costurar a dor". A prática mágica de "costurar a dor" basicamente consiste em passar uma fita, laço ou linha ao redor da região ferida ou dolorida, então realizar-se preces para remover a dor. Em outros casos usa-se alguma planta mágica ou oferece-se um chá de ervas medicinais para auxiliar no tratamento. Este exemplo em questão é uma prática mágico-religiosa. 

Desenho representando um xamã praticando um rito de cura. 

Na China Antiga, o primeiro imperador Qin Sin Huang (260-210 a.C), ficou conhecido por ter buscado a imortalidade. Ele recorreu a feiticeiros, magos e alquimistas na tentativa de que algum deles lhe desse o elixir da imortalidade. 

Sokovieds (19??, p. 59-60), considera a magia medicinal diferente de medicina popular, pois para ele, enquanto a medicina popular teria um "fundamento racional", a magia medicinal era pautada no "irracional e supersticioso". De fato tais características realmente existem, porém hoje considera-se que a magia medicinal faça parte da medicina popular, mesmo com suas excentricidades como no exemplo a seguir:


"Febres: "defuma-se" o enfermo com os resíduos de uma rã queimada e dissecada, ou suspende-se-lhe do pescoço o batráquio morto; "defuma-se" com um frango morto no ovo, fragmentando-o, misturado com 77 grãos de milho; o enfermo encaminha-se para uma represa, pronuncia ali o conjuro e lança os pedaços do ovo em que se achava o franguito morto, para um lado, e os grãos de milho para outro". (SOKOVIEDS, 19??, p. 63). 


“Durante o último milênio acreditou-se que purgantes ou lavagens intestinais (o clister) tinham o poder de “limpar” o organismo, livrando-o de suas impurezas. Frequentemente, porém, o paciente piorava, debilitado pela diarréia que lhe sugava líquido e sais minerais. Por que então as pessoas tinham tanta fé na purga? Aí é preciso lembrar o significado simbólico da evacuação. Purgar é redimir-se: a alma purga-se na penitência”. (HANCIAU, 2009, p. 80). 

e) transmutação: termo mais recorrente na alquimia, todavia, pode ser usado em outras práticas mágicas. A transmutação consiste na manipulação das características corpóreas de uma substância, elemento, objeto e ser vivo, alterando sua forma, textura, tamanho, cor, etc. 

Exemplos: Na alquimia a transmutação de metais foi o exemplo mais comum, onde alquimistas tentaram transformar diferentes metais como chumbo, ferro, cobre, estanho, etc., em ouro. A própria ideia de pedra filosofal está associada a essa tentativa de transformar metais vis em ouro. 

O alquimista em busca da pedra filosofal. Joseph Wright, 1771. 

Todavia, a transmutação também pode ser usada para outras ocasiões, como supostamente fazer que uma pessoa tivesse sua aparência alterada e dessa forma conseguisse se disfarçar. Como também pude-se alterar a forma de algum animal ou planta. Abrir paredes ou buracos, mudar a forma de algum objeto, etc. 

Alguns estudiosos da magia, interpretam que o ato de Jesus ter transformado água em vinho, não teria sido um milagre, mas magia, pois alegam-se que Jesus tivesse conhecimento mágico. 

f) transformação animal: para alguns estudiosos transformação e transmutação não seriam diferentes, mas optei em diferenciá-los, pois o conceito de transmutação é mais usado nos estudos alquímicos, já o conceito de transformação é mais amplo, englobando a magia no geral. Aqui entende-se transformação no sentido de que o feiticeiro, feiticeira, bruxa, bruxo, mago, xamã, pajé, etc., possuiria a capacidade de autotransformar-se em animais ou transformar outras pessoa em animais. 

Exemplos: os xamãs de diferentes povos norte-americanos contam histórias de que alguns deles conseguiam se transformar em lobos, coiotes, chacais, águias, ursos, etc. Dependendo de que parte do mundo o xamã provenha, os tipos de animais que ele pode se transformar mudam de acordo com a fauna local. 

Durante a Idade Média, houve alguns casos de que supostamente bruxas e bruxos foram acusados de se transformarem em gatos pretos, lobos, cães, ursos, corujas, etc (GINZBURG, 1991, p. 72, ). Além disso, tais histórias inspiraram nos contos de fadas séculos depois, as histórias de príncipes transformados em sapos. 

Na mitologia grega, especificamente na Odisseia, poema atribuído a Homero, é dito que a feiticeira Circe transformava os homens em animais, no caso da tripulação de Odisseu, seus homens foram transformados em porcos. 

Circe and her Swine. Ebenezer Cobham Brewer, 1890-1892. 

g) Projeção espiritual: a projeção espiritual é a capacidade de projetar sua alma para fora de seu corpo, podendo projetá-la para dentro de um animal, daí alguns estudiosos dizerem que os feiticeiros(as), bruxos(as), xamãs não se transformariam propriamente, mas projetariam suas almas para tais animais. Por outro lado, a projeção também pode ser usada para se viajar a terra dos mortos, ou viajar para outros planos astrais ou mundos. 

h) magia elemental: diz respeito a capacidade de influenciar, manipular e conjurar elementos naturais. No Ocidente o modelo grego de Quatro Elementos: Fogo, Água, Terra e Ar tornou-se bastante difundido, inclusive influenciando as artes e o Oriente. Todavia, em países como China, Japão, Coreia do Sul e Índia, existem outros elementos como o Trovão, Madeira, Metal, Luz e Escuridão. Ainda acrescenta-se o uso de plantas e animais neste tipo de magia. 


i) magia de criação: consiste na magia que cria ou conjura objetos e seres. A criação pode partir de forma instantânea a partir de um feitiço, ou pode ser necessário realizar algum rito, poção, experimento e aguardar determinado tempo para o efeito ser concretizado. Por outro lado, pode-se conjurar objetos e seres não os criando de fato, mas os trazendo de outro lugar, como se fosse um "teletransporte". 


Exemplos: em algumas histórias das Mil e Uma Noites, conjunto de contos escritos ao longo da Idade Média, especificamente as histórias que contam com a participação de gênios, estes conseguem criar objetos, conjurar pessoas e animais, construir palácios, salas, casas, torres, etc. Na história do Aladim e a Lâmpada Maravilhosa, este após se casar com a princesa Badrolbadur, o sultão seu sogro pede que eles morassem na mesma cidade, então apresenta um terreno onde Aladim poderia construir um palácio. Aladim invoca o gênio da lâmpada e pede para ele construir um grande, belo e suntuoso palácio, o que o gênio realiza em uma noite. Embora seja dito que o gênio convocou trabalhadores mágicos para erguer o palácio, em outros momentos ele cria objetos, comida, roupas e até mesmo conjura escravos e cavalos (os trazendo de outro lugar) para servir Aladim, sua mãe e Badrolbadur. 


Aladim e a lâmpada maravilhosa. Felix Darley, século XIX. Os gênios das histórias de As Mil e Uma Noites são conhecidos por sua magia de criação. 

Outro exemplo de magia de criação, foi o conceito de homúnculo, difundido entre os alquimistas. Alguns alquimistas como Paracelso (1493-1541) tentaram ou pelo menos esboçaram a teoria de como seria capaz de se gerar vida. A ideia do homúnculo consistia em se criar um pequeno ser humano dentro de uma garrafa ou outro recipiente, utilizando-se distintas substâncias. A receita para isso variava de alquimista para alquimista, pois alguns de fato tentaram realizar tal experimento, mas vendo que haviam fracassado, passaram a repensar a receita. 

“No que concerne à alquimia, que se ocupava principalmente da transmutação das almas, não está cientificamente comprovado se contribuiu efetivamente para o progresso da sabedoria. Acredita-se que seus adeptos tenham utilizado alguns medicamentos químicos na procura do elixir da longa vida, da pedra filosofal ou de novas moléculas. Embora o terreno da alquimia seja mais sólido do que o da astrologia, e tenha interessado personalidades (Leibniz e Newton, que, certamente por prudência, nada publicaram sobre o assunto), os progressos conseguidos têm pouco peso e seu valor em si ou teórico é discutível. Além disso, a profissão de alquimista estava minada por grande número de impostores (Gilles de Rais e acólitos), denunciados na época, o que induz à conclusão de que astrologia e alquimia pouco ajudaram no desenvolvimento das ciências positivas”. (HANCIAU, 2009, p. 80). 

j) magia purificadora: consiste nas práticas mágicas para se purificar o corpo, o espírito e o ambiente da influência de energias negativas, mau olhado, inveja, ódio, espíritos malignos, etc. Existem várias formas de se realizar a purificação, mas normalmente usa-se fogo, água e fumaça em muitos casos. 


Exemplos: Durante os surtos de peste negra no século XIV, houve casos em cidades italianas, francesas e espanholas das pessoas acenderem fogueiras nas esquinas ou nos arredores da cidade, na tentativa de purificar o local e afastar a peste (VILAR, 2010). 


Ainda hoje na Espanha, em algumas cidades é comum encontrar ritos de purificação com o uso de fogo. Entre um dos mais antigos em prática está o rito de saltar com cavalos sobre fogueiras ou passar por palha ardente, pois acredita-se que o fogo e a fumaça purificará os animais e os protegerá. 


Ainda hoje em algumas cidades espanholas praticasse o polêmico rito de passar com cavalos por fogueiras, a fim de purificar os animais e conceder-lhe proteção.

Entre alguns católicos é comum a prática de desenhar uma cruz de cinzas na testa, durante a Missa das Cinzas, celebrada na Quarta-feira de cinzas, o que marca o final do Carnaval e o início da Quaresma. O simbolismo desse rito mágico-religioso personifica a recordação da brevidade da vida, como também, conota que a pessoa se purifique para iniciar o período da quaresma, que tradicionalmente era marcado pela prática de jejuns diários, não comer carne, não ter relações sexuais, etc. Tais atos não apenas servem como forma de respeitar e honrar o sacrifício de Cristo, mas uma forma de purificar o espírito. 

No Japão, todos os templos possuem alguma fonte de água ou estão cercados por água, pois a água é um dos principais elementos para a purificação. Na Índia, ainda é bastante comum os ritos purificadores diários, pois acredita-se que um homem deve se manter integro fisicamente e espiritualmente, logo, existem muitas crenças religiosas e até mesmo supersticiosas relacionadas aos atos higiênicos e de purificação. 


k) magia guerreira: associada a guerra, consistia em feitiços, ritos, poções e outras práticas as quais geralmente procuravam conceder ao guerreiro, força, coragem, confiança, sorte e proteção. 


Exemplos: Em Esparta era comum os guerreiros antes de partirem para as batalhas, realizarem oferendas, sacrifícios e prestarem orações a Ares e Atena, deuses da guerra, pedindo que lhe concedessem proteção, força, coragem e sorte, para que assim pudessem vencer e sobreviver. Aqui se trata de um rito mágico-religioso.  


Houve casos de padres benzerem armas e canhões durante a Idade Média e a Idade Moderna, no intuito de conceder êxito para a vitória. Isso consiste numa prática comum entre outras religiões: abençoar as armas e os guerreiros. 


Alguns povos indígenas nas Américas possuíam danças da guerra, os quais eram praticadas antes de se partir para a batalha, pois em tais danças eles requeriam o auxílio dos antepassados, de espíritos e dos deuses para conceder vitória. Alguns destes povos também realizam um ritual antropofágico, o qual consistia em comer o inimigo, normalmente um guerreiro valoroso, pois acreditava-se que ao ingerir a carne dele, suas virtudes seriam passadas para as pessoas que o comeram. 


Outra forma de magia guerreira era enfeitiçar armas, escudos, armaduras, camisas, luvas, capas, etc., isso transferiria ao guerreiro tais qualidades. Entre os vikings haviam um grupo de guerreiros chamados berserkers, os quais lutavam em estado de fúria. Ainda hoje não se sabe como tais guerreiros faziam para entrar neste estado, todavia, os berserkers em alguns casos usavam capas feitas de pele de urso ou de pele de lobo, pois alegava-se que aquilo lhes concederiam a força, coragem e ferocidade daqueles animais. 


O uso de armas mágicas também foi bem comum entre vários povos. Na mitologia grega, o herói Perseu recebe armas mágicas para combater a Medusa; ele recebe um escudo espelhado da deusa Atena, uma espada de Zeus, um capacete que concedia a invisibilidade, dado por Hades; e as sandálias aladas de Hermes. Na mitologia nórdica existem histórias contadas nas sagas, as quais falam de Odin oferecendo espadas mágicas, inclusive nas histórias de Sigurd (Siegrified) e Beowulf, ambos usam espadas mágicas para derrotar monstros. Um dos exemplos mais clássicos a respeito de armas mágicas advêm da literatura, com a espada Excalibur, usada pelo Rei Arthur


Desenho representando o Rei Arthur recebendo a Excalibur da mão da Dama do Lago. 

l) magia de animação: trata-se da magia que concede movimento a seres inanimados. Geralmente tal tipo de magia era feito com base em algum rito ou feitiço, recitando-se palavras mágicas ou gravando no objeto palavras ou símbolos. 

Exemplos: é comum ver nas artes o emprego dessa magia para conceder movimento a estátuas e armaduras. Na Cabala existem feitiços os quais supostamente poderiam criar golems, criaturas feitas de pedra ou barro, as quais seriam enfeitiçadas para ganhar movimento e até mesmo pensar. 


m) magia de invisibilidade: outro exemplo bastante curioso. Embora hoje estejamos familiarizados com a capa da invisibilidade usada pelo Harry Potter, ou o Um Anel, o qual quando Bilbo e Frodo o usavam, conseguiam ficar invisíveis, essa história não surgiu na literatura, mas remonta há séculos. Normalmente a magia de invisibilidade era feita de duas formas: ao seu usar algum objeto enfeitiçado para conceder tal ação, ou tomar alguma poção. 


Exemplos: antigas lendas inglesas e alemãs que remontam o medievo, falam do uso de capas da invisibilidade e anéis da invisibilidade. Na mitologia grega, o deus Hades era conhecido por usar um capacete da invisibilidade. Existe uma história de João, o Matador de Gigantes, o qual para matar o esperto e traiçoeiro gigante de duas cabeças Thunderdell, João usou uma capa da invisibilidade, para chegar sorrateiramente até o gigante. 


n) magia de fertilidade: foi comum entre vários povos, rituais relacionados a se conseguir fertilidade para a terra, ou seja, que a plantação lograsse êxito, e não houvesse escassez de alimentos, logo, fome; mas também realizava-se tais práticas para conseguir a fertilidade dos animais para que os rebanhos crescessem, e até mesmo a fertilidade de mulheres e homens, os quais tinham problemas para ter filhos, ou queriam ter muitos filhos.


o) magia de conjuração ou evocação: consiste na prática mágica de invocar espíritos, mortos, monstros, entidades sobrenaturais, animais, etc. Com a expansão do cristianismo a magia de conjuração foi demonizada, passando a ser associada a necromancia e a bruxaria. Tal tipo de magia normalmente era feita através de algum rito pelo qual se ofereceria algo em troca para invocar tais seres. 


p) magia de movimento: trata-se de enfeitiçar ou encantar objetos, substâncias, pessoas, animais, plantas, etc., para os quais se movimentem, flutuem ou levitem. Normalmente tal tipo de magia é feita através do pronunciamento de palavras mágicas ou na aplicação de signos e símbolos no objeto ou ser vivo. 


Exemplos: Durante o século XV na Europa surgiram os primeiros relatos colhidos pela Igreja a respeito de bruxas que encantavam vassouras, bastões ou forquilhas, os quais as faziam voar (GINZBURG, 1991, p. 11). 


Representação de duas bruxas para o livro Le Champion des dames, de Martin Le Franc (c. 1451). Na imagem vemos uma bruxa voando numa vassoura e a outra voa num bastão.  

Nas Mil e Uma Noites temos a história dos Três Príncipes Indianos, os quais cada um parte para procurar um objeto maravilhoso, a fim de ganhar o direito de seu pai como herdeiro; um dos príncipes compra um tapete voador. Na história do Cavalo Encantado ou Cavalo Mágico, um feiticeiro indiano presenteia o rei persa com um cavalo de madeira, o qual podia voar. 

q) magia propiciatória: consiste na prática de atribuir sorte para a realização de alguma atividade. Tal tipo de magia é bastante antiga, encontra-se vestígios de seu uso pelo menos desde a Pré-história, onde caçadores antes de partirem para a caçada, participavam de ritos mágicos para que tivessem êxito em realizar a caçada. Tal prática sobreviveu no tempo e foi vista entre distintos povos e culturas. Normalmente está associada a caça, coleta e pesca, atividades de sobrevivência, que nem sempre logravam êxito, o que poderia por em risco a comunidade. 


Exemplo: "Entre os povos primitivos estavam largamente difundidas as danças mágicas de caçadores, ou guerreiras, ante a imagem do animal ou do inimigo. Durante essa cerimônia, os participantes cravavam as suas lanças e dardos nas respectivas imagens e confiavam em que os acontecimentos se sucedessem durante a caçada ou batalha da mesma maneira como se desenrolaram na realidade" (SOKOVIEDS, 19??, p. 23). 


"Na tribo daiaque dos Pumanos o caçador atava ao carcaz, cheio de flechas, um talismã especial chamado "siap", geralmente em forma de dente de crocodilo; pra que o mesmo tivesse mais eficácia, era untado de sangue da presa recolhida pelo caçador". (SOKOVIEDS, 19??, p. 73). 


...

A partir dessa lista acredito que tenha ficado mais claro as várias formas, tipos e usos para a magia, embora hajam outros usos que aqui não foram mencionados. Sendo assim, passaremos para falar um pouco sobre feitiçaria, para depois vermos o que é bruxaria. 


2) Feitiçaria: 

Conceito de feitiço: 


A palavra feitiço nas línguas neorromânicas (português, espanhol, italiano, francês, romeno, etc.), advém do latim facticius, que tinha significado de algo "não-natural", "artificial" e até de farsa. Facticius era usado para se referir a alguns tipos de objetos e artefatos, porém, na Idade Moderna passou a ser utilizado para se referir a magia, pois associavam-se artefatos mágicos, os chamando de feitiço. Os portugueses na costa ocidental da África, utilizaram esse conceito e contexto, inclusive os franceses o adotaram e criaram a palavra fétiche, que originou o fetichismo


Entretanto, a palavra feitiço deixou de ser usada para se referir a qualquer objeto, para se referir a objetos mágicos, como também estar relacionada com a magia: "fazer um feitiço", "lançar um feitiço", "fazer um encantamento". Nesse sentido, o feitiço passa propriamente a adentrar o campo do sobrenatural. 


O etnólogo e antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009), ao estudar alguns povos indígenas no Brasil e em outros locais do mundo, assinala que para algumas culturas o feiticeiro e a feiticeira fossem pessoas que não apenas possuíam conhecimento mágico, mas que também possuiriam poderes para intervir no natural e no sobrenatural (LÉVI-STRAUSS, 1975, p. 195). Lévi-Strauss conta um caso que ocorreu com ele em 1938, no Brasil, enquanto ele estudava os índios nambikwara, ele realizava uma pesquisa de campo então certo dia quando retornavam para a aldeia após terem ido caçar e pescar, o pajé (feiticeiro) não retornou. 


Era de noite e ele não tinha voltado, sua família e a comunidade ficaram bastante preocupados, pois ele era uma pessoa importante e essencial, e a selva era cheia de perigos. No dia seguinte o encontraram desmaiado nas cercanias da aldeia. O pajé disse que havia sido atingido por um raio (pois naquela noite choveu e trovejou de fato). Ele viajou através do raio até terras distantes, as quais ele disse onde ficava, e depois explicou como se chegava lá (LÉVI-STRAUSS, 1975, p. 193-194). Claude Lévi-Strauss prossegue narrando essa história, mas o importante que ele assinalou, é que aquelas pessoas acreditavam que o seu feiticeiro realmente possuía ligação com os espíritos, o natural e o sobrenatural. 


Com base nesse exemplo pautado na experiência de Claude Lévi-Strauss identificamos a ideia de sobrenatural envolvido com o conceito de feitiço, no entanto, existem outros conceitos relacionados. Um deles assinalado por Winfried Nöth é de que a palavra feitiço nas línguas saxãs está associada a palavra. 


“A palavra inglesa spell ainda hoje significa tanto “soletrar” quanto “fórmula de encantamento”. A velha palavra germânica runa não designava somente as letras do alfabeto rúnico, mas também “feitiço” ou “encantamento mágico”. O domínio das letras foi aparentemente associado ao domínio da magia. A palavra inglesa glamour, que significava antigamente “bruxaria” e “palavra mágica”, era uma corrupção popular da palavra grammar (gramática): para o povo, o conhecimento da gramática era evidentemente um saber mágico. Não só os sábios dos signos lingüísticos, mas também os produtores dos signos visuais eram considerados aliados da magia. Evidência dessa conexão arcaica entre a pintura e a magia existe na etimologia da palavra alemã Bild (“imagem”), cujo étimo germânico bil- significa “signo miraculoso””. (NÖTH, 1996, p. 32).

As palavras têm poder e isso é uma analogia bastante antiga. Por exemplo, as religiões do Judaísmo, Cristianismo e Islamismo conta-nos que Deus criou o universo com o Verbo, ou seja, com palavras. No Hinduísmo, o deus Brahma começou a criar o universo após dizer Om

Além disso, como foi visto na seção anterior sobre a magia, percebe-se que muitas práticas mágicas estão associadas ao uso de palavras, sejam elas faladas ou escritas. O uso de breves contendo trechos dos Salmos, para tentar se proteger da Peste Negra; ou o uso de selos de papel com palavras nos templos budistas e xintoístas no Japão; ou até mesmo o fato que em determinadas épocas no final da Idade Antiga e começo da Idade Média, onde ter uma Bíblia era algo raríssimo, ao ponto de que em alguns lugares apenas o padre era quem a possuía, algumas pessoas achavam que aquele livro não apenas fosse sagrado, mas também mágico. 

Tanto as palavras feitiço e encantamento hoje em dia, ao serem associados ao contexto de magia e de feitiçaria, consistem em se usar palavras para se enfeitiçar alguém, encantar-se algo. 


Feiticeiras e feiticeiros:


Conceito: 


Antes da feitiçaria ser diabolizada na Europa medieval, ela conviveu com o Cristianismo ao longo de séculos. A feitiçaria se entendermos como uma referência para aqueles que praticam magia, seja ela para o bem ou para o mal, existe há milhares de anos em diversos locais do mundo. Essencialmente o conceito de feitiçaria variou de sociedade para sociedade, mas em geral a feiticeira e o feiticeiro era alguém que possuía conhecimento medicinal, não sendo a toa que até o final do medievo europeu antes da criação da bruxaria, as feiticeiras e feiticeiros ainda em alguns casos estavam associados ao curandeirismo. Todavia, em outros locais também. Os xamãs, os pajés e os alquimistas também possuíam conhecimento mágico-medicinal. 


Assim, tais homens e mulheres não eram apenas pessoas que sabiam realizar feitiços, mas possuíam conhecimento medicinal, em alguns casos se comunicavam com os espíritos, poderiam se transformar em animais ou projetar sua alma para corpos de animais ou para outros mundos; teriam poderes de vidência, entre outras habilidades. 


“Arte encantatória, a magia inclui o conhecimento dos grandes princípios que regem o universo, a certeza de que os elementos podem ser movidos pelo pensamento, por uma operação cognitiva, um trabalho interior de espírito e força. Assim como o universo poderia ser modificado, modificados também poderiam ser os acontecimentos, as doenças, o tempo e o destino, primeira pretensão dos profissionais do futuro”. (HANCIAU, 2009, p. 77).

Pelo fato dos feiticeiros e feiticeiras serem pessoas que possuíam conhecimento mágico, eles eram respeitados, mas também temidos, pois caso fossem contrariados ou alguma desfeita fosse provocada a eles ou alguém próximo deles, a pessoa poderia ser amaldiçoada, envenenada (lembre-se que eles eram curandeiros, poderiam trocar o remédio por um veneno), ou fazer algo para lhe causar algum problema ou até mesmo levar a morte. Mesmo em diferentes partes do mundo essas pessoas embora respeitadas, em alguns casos chegaram a serem banidas ou perseguidas. 

Feiticeiras e feiticeiros caso falhassem, isso poderia pesar contra eles. Se eles tivessem que salvar a vida de alguém importante, como um chefe, líder ou rei, mas não o conseguissem curá-lo; se eles tivessem que ser responsáveis por trazer chuva diante de um período de seca; se tivessem que apaziguar a ira de espíritos revoltados, etc; se tais casos eles fracassassem poderiam ser banidos, presos ou até mortos. Além disso, é importante mencionar também que havia casos de charlatanice, os quais quando descobertos rendiam sérios problemas para tais pessoas. 

A feiticeira como femme fatale:

Se fizermos uma simples pesquisa na Internet, digitando a palavra feiticeira, seja em qual língua for, e clicarmos em pesquisar imagens, provavelmente vão aparecer centenas de imagens desde fotografias, pinturas, gravuras, desenhos, etc., mostrando mulheres vestidas de diferentes formas, mas o que terão em comum é o fato delas serem mulheres belas e sensuais, principalmente representações mais contemporâneas, as quais acentuam esse caráter sexista. 

Todavia, por mais que alguns aleguem que isso seja fruto da cultura machista do século XX em ter tornado a mulher um símbolo sexual, a ideia de feiticeiras como sendo mulheres belas, é algo muito mais antigo. No caso como estamos tratando de feitiçaria na Europa, apresentarei exemplos europeus, todavia, posso assinalar que em obras asiáticas como As Mil e Uma Noites, praticamente todas as feiticeiras que surgem nestas histórias são mulheres bastante belas, o que revela que não foi apenas um pensamento europeu de que feiticeiras seriam mulheres lindas. 

Circe e Medeia são dois casos da mitologia grega, que remontam à histórias de mais de dois mil anos atrás. Elas já foram mencionadas anteriormente, mas vamos recapitular. Circe vivia na ilha Eéia, sendo descrita como uma bela mulher de cabelos dourados como o sol (embora que a maioria das representações, a retratem como morena), sendo filha de Hélios e de Perseis, segundo Homero (Odisseia, Canto X). No entanto, outras versões sugerem que ela fosse filha de Hélios e de Hécate

Hélios era o titã do Sol, o qual era responsável por este antes de Apolo assumir seu lugar; Perseis era uma oceânide, uma das várias divindades marinhas; já Hécate era a deusa da magia. Sobre ela, falaremos um pouco mais, pois Hécate não apenas teve um papel importante para a difusão da magia na Grécia Antiga, mas séculos depois, na Idade Média, ainda havia resquícios de culto a essa deusa por parte das feiticeiras e bruxas. 


“Deusa aparentada a Ártemis, não possui um mito próprio. Profundamente misteriosa, age mais em função de seus atributos. Embora descenda dos Titãs e seja portanto independente dos deuses olímpicos, Zeus, todavia, lhe conservou os antigos privilégios e até mesmo os aumentou. Em princípio, uma deusa benéfica, que derrama sobre os homens os seus favores, concedendo-lhes a prosperidade material, o dom da eloqüência nas assembléias, a vitória nas batalhas e nos jogos, a abundância de peixes aos pescadores. Faz prosperar o rebanho ou o aniquila, a seu bel-prazer. É a deusa nutriz da juventude, em pé de igualdade com Apolo e Ártemis. Eis aí um retrato de Hécate na época mais antiga. Aos poucos, todavia, Hécate foi adquirindo características, atributos e especialização bem diferentes. Deusa ctônica, passou a ser considerada como divindade que preside à magia e aos encantamentos. Ligada ao mundo das Sombras, aparece aos feiticeiros e às bruxas com uma tocha em cada mão ou ainda em forma de diferentes animais, como égua, loba, cadela. Tida e havida como a inventora da magia, o mito acabou por fazê-la penetrar na família da bruxaria por excelência: Eetes, Circe e Medéia. É assim que tradições tardias fizeram-na mãe de Circe e, por conseguinte, tia de Medéia. Como mágica, Hécate preside às encruzilhadas, local consagrado aos sortilégios. Não raro suas estátuas representam-na sob a forma de mulher com três corpos e três cabeças”. (BRANDÃO, 1986, p. 27) 

Apresentado um pouco sobre a deusa Hécate, retornamos a Circe. A feiticeira Circe era descrita por Homero como sendo uma mulher bela, inteligente, altiva, poderosa e perigosa. Ela vivia num palácio com suas escravas, e cercada de animais selvagens como lobos e leões, o que revela seu poder sobre a natureza. Embora é preciso lembrar que ela seria uma semideusa ou deusa. 

Circe. Wright Barker, 1889. 

“Sua sensualidade também a levou a desfrutar os prazeres gastronômicos e a perceber, sem dificuldades, os desejos de seus visitantes através dos matizes de suas vozes e da profundidade de seus olhares. Sua devoção pelo esplendor provinha da linhagem paterna, assim como de sua mãe aprendeu a dominar as palavras, pois que, afamada como era por seus formosos cabelos, Circe era filha do Sol, que deu a luz aos homens, e sua mãe foi Perseis, ninfa gerada pelo Oceano”. (ROBLES, 2006, p. 113). 

Circe possuía vários artifícios os quais indicavam sua posição de mulher fatal. Era bela, astuta, simpática, vivia num palácio, com lindas escravas, as quais seduziam os marinheiros, lhes oferecendo vinho, mel e outros manjares; além de cantarem, tocarem instrumentos musicais e dançarem para eles. O ambiente tinha música encantadora, cheiro agradável e uma boa comida e vinho. Isso tudo fazia parte das ilusões sensuais promovidas pela feiticeira para depois transformar os homens em animais. 

O próprio herói Odisseu foi seduzido por Circe, mas como essa se apaixonou por ele, após ter escapado de ser transformado em porco como seus companheiros, Circe tentou manter Odisseu e seus homens presos em seu palácio de delícias. Mas o herói insistiu em partir, então a feiticeira ou auxiliou a encontrar o caminho de volta para sua casa (Odisseia, Canto XI e XII). 


Odisseu e Circe. Bartholomeus Spranger, 1590. 

Circe na Odisseia é descrita como uma mulher manipuladora, traiçoeira, ciumenta e possessiva, embora acabe ajudando o herói da trama a conseguir encontrar o rumo para casa, no entanto, em outros mitos como na história de Cila e Glauco, Circe era apaixonada pelo deus Glauco, mas ele amava Cila. Com ciúmes dela, a feiticeira transformou Cila num terrível monstro. 

Mas enquanto Circe não é tão cruel, Medeia encarna esse lado mais maléfico da feiticeira. Medeia era filha do rei Eetes da Cólquida de Idiia (outras versões dizem que ela era filha de Hécate), sendo sobrinha de Circe. Assim como sua tia, ela apresentou interesse pela magia, tornando-se uma devota de Hécate. Quando Jasão e os Argonautas chegaram a terra de seu pai em busca do Tosão de Ouro, o rei Eetes disse que só daria ao herói o tosão, se ele passasse por seus desafios. Neste caso, a deusa Hera que protegia Jasão, solicitou que Afrodite fizesse Medeia se apaixonar por Jasão, para que ela o ajudasse de alguma forma. 


Apaixonada pelo herói, Medeia recorre a Hécate para preparar um feitiço ou uma poção do amor, que faz o herói se apaixonar por ela. Logo, temendo que ele morresse nos desafios propostos por seu pai, Medeia decide se opor a ele, o que incluiu trair seu povo e seu país, ao ajudar Jasão e os gregos a conseguirem o Tosão de Ouro. Graças aos seus conselhos e mágicas, Jasão e os Argonautas triunfam, e Medeia se casa com seu grande amor. 


No entanto, anos depois Jasão a trocou por uma esposa mais nova, tendo feito isso por incentivo do rei Creonte de Corinto, que queria o herói casado com sua filha. Algumas versões dizem que Medeia revoltada com isso teria assassinado os seus próprios filhos, algo que se ver na tragédia Medeia (431 a.C) de Eurípedes, em outras versões seus filhos teriam sido assassinados pelos coríntios. No entanto, a versão de Eurípides é que ficou mais conhecida, e Medeia entrou na História como uma mãe que matou os próprios filhos. Aqui temos a feiticeira bela, ardilosa, poderosa, que trai a família e seu povo, mas que também mata seus próprios filhos. Neste ponto, Medeia é vista de forma bem mais aterrorizante do que Circe. 


Medeia. Eugene Delacroix, 1861. 

Na Idade Média entre os séculos VIII e XI, na chamada Era Viking, os povos da Escandinávia (Suécia, Noruega, Dinamarca e Islândia), genericamente hoje chamados de vikings, embora que naquele tempo fossem também genericamente chamados de nórdicos, cultuavam uma divindade relacionada a magia, chamada Freyja

Freyja era descrita como uma linda mulher, considerada a mais formosa das deusas nórdicas, sendo a deusa do amor, da sexualidade, da fertilidade e da magia. Estando associada também a morte e a luxúria. Pertencente a família dos Vanir, divindades relacionadas a fertilidade e a natureza, Freyja, seu irmão gêmeo Freyr e seu pai Njörd foram morar em Asgard, a terra da família Aesir (DAVIDSON, 1998, p. 85-86). 


“And Freyja is the most excellent of the goddesses. She has that homestead in heaven which is called Folkvang, and wherever she rides to battle she has half the dead, and Odin half. . . . Her hall is Sessrumnir; it is great and handsome. And when she travels, she drives her cats and sits in a carriage. She is the most accessible for people to call on, and from her name it is a sign of respect that women of substance are called fruvur [ladies]. She enjoys erotic poetry. It is good to call on her for love”. (LINDOW, 2002, p. 126)

Detalhe do quadro Freja. John Bauer, 1905. 

Diferente de Hécate, pouco se conhece acerca dos poderes mágicos da deusa Freyja e de seu uso por ela. Na maioria dos mitos que a deusa aparece, ela surge como mera coadjuvante, espectadora ou objeto de intrigas, chantagens, cobiça e disputa pelos gigantes. Por ser a mais bela das deusas, existem várias histórias nas quais gigantes tentaram raptar ou conseguir a deusa em casamento (LINDOW, 2002, p. 127). Em algumas histórias até os anões tentam isso. 

Neste ponto, diferente de Hécate a qual era uma deusa influente e poderosa, Freyja pelo menos pelo que conhecemos nos mitos que chegaram até nós, não possuía essas mesmas características, além disso, ela era descrita como uma mulher boa, não sendo uma femme fatale, embora conserve o estereótipo da feiticeira linda. Por outro lado, encontram-se associado ao seu culto, o uso de plantas mágicas e dos gatos. 


Imagem do século XIII, copiada a partir do original localizada na catedral de Schleswig-Holstein, Alemanha. Alguns historiadores consideram que essa mulher seja uma representação da deusa Freyja. Outros sugerem que se trate de alguma feiticeira qualquer, voando num ramo de meimendro. 

A imagem acima nos leva rapidamente a associarmos a ideia de bruxas voando em vassouras, embora que essa imagem anteceda em três séculos o surgimento da bruxaria, todavia, possa ter influenciado as descrições de feiticeiras que voavam em objetos (vassouras, bastões), animais e ramos de plantas. Por outro lado o fato da deusa Freyja possuir gatos de estimação e ser associada a este animal, influenciou práticas mágicas na Escandinávia e Alemanha (LANGER, 2014, 10-11). 

Pintura representando a deusa Freyja em sua carruagem puxada por gatos. Devido a ser uma deusa ligada a magia, séculos depois ela foi associada a bruxaria, e os gatos por serem os animais sagrados associados a ela, passaram a pertencer ao esterótipo do gato preto. 

“É com o início do imaginário da bruxaria enquanto seita diabólica e herética que este animal ganhou conotações malévolas para o imaginário cristão, a partir do século XIII. Em 1232 o decreto papal Vox in Rama conclamava para a perseguição dos heréticos. Neste documento, o papa Gregório IX descreve as atividades do diabo no norte da Alemanha, incluindo uma cerimônia de iniciação, onde os participantes realizam um obsceno beijo em um grande gato preto. É o início de uma perseguição e de um preconceito que se mantém até nossos dias em relação aos felinos de coloração escura”. (LANGER, 2014, p. 11-12). 

Ainda na Idade Média, entre os séculos XII e XIV, temos alguns exemplos advindos da literatura de duas outras famosas feiticeiras, as quais eram mulheres nobres, belas, ardilosas e traiçoeiras. Ambas essas feiticeiras advêm das Lendas Arturianas, sendo a rainha Morgana (conhecida como Morgana, a Fada), meia-irmã do rei Arthur, e Vivien (a Dama do Lago), amante de Merlin. Morgana não possuía uma boa relação com seu irmão, e conspirou contra ele, após uma desfeita dele com seu sobrinho, por não o ter nomeado Cavaleiro da Távola Redonda, então ela decide se vingar, e para isso iria destruir o rei Arthur. 

Já Vivien, dependendo da versão ela era uma mulher boa, e realmente amava Merlin, mas em outras versões ela não era a Dama do Lago, mas uma nobre, a qual foi foi incentivada por Morgana a iludir Merlin com seus feitiços, fazendo o sábio mago se apaixonar perdidamente por ela. Então Vivien pediu como prova de amor, que Merlin lhe ensinasse todo o seu saber mágico, e no final o mata.


A Dama do Lago, conhecida como Niniana, Vivien, Nimue, Ninie, etc. Dependendo da versão lendária ou literária, ela foi amante de Merlin, do rei Arthur e do cavaleiro Lancelot. 

Mesmo havendo tais variações quanto ao caráter e as ações de Morgana, a Fada e de Vivien, ambas são feiticeiras muito bonitas e habilidosas, que sabem usar seu charme e poderes para conquistar o que querem. No entanto, alguns podem dizer: mas Circe, Medeia, Morgana e Vivien não existiram, foram apenas mitos e literatura, ainda assim, é preciso ressalvar que tais histórias são reflexos das sociedades e culturas da época. Havia de fato no imaginário masculino esse fetiche em se relacionar e amar tais mulheres, e ao mesmo tempo temor, acerca de mulheres belas que sabiam usar magia. 

Por outro lado, é preciso ressalvar que a ideia de feiticeira linda, é uma invenção cultural, de fato muitas feiticeiras não eram belas, não eram maléficas e nem solteiras. O imaginário criou esses estereótipo que ficou marcado nos mitos, lendas e nas artes, mas foi forte o suficiente ao ponto de que quando a Igreja iniciou sua demonização da magia, algo que veremos adiante, uma das medidas foi tornar as bruxas mulheres feias, a fim de romper com essa questão da beleza sedutora, a qual iludia e atraia os homens para o pecado. 


Feiticeiro x Mago: 

Hoje em dia há gente que utiliza feiticeiro como sinônimo de mago, mas quando tal termo passou a ser empregado na Idade Média, eles não eram sinônimos. De fato ambos eram homens que praticavam a magia, mas possuíam diferenças. 


“Iniciado nos grandes mistérios, além de mestre o mago era considerado um homem de ciência, enquanto o feiticeiro, um aprendiz das aldeias, conhecedor apenas dos pequenos mistérios. Em consequência, a magia aparece em muitas obras de referência como arte ou préciência, entre as formulações avançadas. No mago haveria conhecimento real; no feiticeiro, vulgarização. Entretanto, se o mágico ou mago arriscava apenas a alma aos olhos dos crentes, protegido que era pelos grandes que o consultavam e em cuja corte vivia, o feiticeiro arriscava a alma e a vida, pois era sobre ele que se acumulavam ódios e invejas dos irmãos de miséria”. (HANCIAU, 2009, p. 76).

O mago Merlin. Howard Pyle, 1901. Nessa imagem, Merlin ler um livro de magia, algo que o diferenciava dos feiticeiros, os quais em geral eram analfabetos. 

Em meados da Idade Média por volta do século XII e XIII, a magia predominante no meio rural, começa a migrar para as cidades e as cortes. A aristocracia, a nobreza e posteriormente a burguesia vão começar a se interessar por tais práticas, vistas anteriormente como mera superstição de camponeses ignorantes, passando a acreditar que poderiam ser eficazes. Assim, alguns feiticeiros que conseguiram adentrar esses ciclos sociais e ganharam o prestígio e confiança de seus pares, tornaram-se magos (magician, wizard).

Essencialmente o mago exercia praticamente as mesmas funções de um feiticeiro: ele atuava como curandeiro, vidente, conselheiro; ajudava as pessoas, mesmo que requisitasse pagamento para isso. O chamado mago de corte, não foi uma invenção europeia, pois entre povos na África e na Ásia já havia isso. Alguns reis persas mantinham entre seus conselheiros magus, os quais além de praticantes de magia, eram sacerdotes e considerados homens cultos e até sábios (SELIGMANN, 1948, p. 66). A própria palavra magus originou o termo mago. Além disso, alguns imperadores chineses mantinham magos e alquimistas em suas cortes. 

Retornando a Europa, o mago tornou-se o "feiticeiro profissional", o erudito que não estudava apenas magia, mas estudava filosofia, artes, ciências, línguas, história, etc., o conhecedor da "alta magia", o sábio e conselheiro. Por sua vez, o feiticeiro tornou-se o curandeiro, o ignorante, o conhecedor da "baixa magia". O mago era um homem da cidade e da elite, o feiticeiro era um homem do campo e da plebe.

Ilustração francesa do século XII ou XIII, retratando na esquerda o mago Merlin a recitar seus ensinamentos para um aprendiz que os escreve. 

“Wizard” [mago ou mágico], diferentemente de “witch”, realmente deriva da palavra wis do inglês médio, hoje “wise” [sábio]. A palavra “wizard” surgiu por volta de 1425, significando um homem ou mulher de grande saber, os quais, acreditava-se, possuíam certos conhecimentos e poderes extranormais. Durante os séculos XVI e XVII designou um “high magician” [“alto mago”]. Foi somente a partir de 1825, e raramente, que o termo foi usado como sinônimo de bruxo(a)". (RUSSELL, 2008, p. 14). 

Sendo assim, quando passamos para figuras medievais como o mago Merlin, ele era descrito como um homem velho, muito sábio, cortês, honrado, solidário, inteligente e poderoso, o qual possuía inclusive o dom da vidência. Merlin nunca aparece sendo chamado de feiticeiro, mas sempre de mago. Por sua vez, Merlin também ajudou a criar o estereótipo do mago como sendo um homem velho e de barba branca. Um exemplo ante hoje mantido, pois basta vermos personagens como Gandalf e Saruman em O Senhor dos Anéis, e Alvo Dumbledore na saga Harry Potter, todos são homens velhos, barbudos, de cabelos e barba branca, sendo bastante sábios. 

Não obstante, a figura do mago conseguiu sobreviver a demonização teológica da Igreja Católica e as inquisições, pois enquanto feiticeiras, feiticeiros, bruxas e bruxos foram perseguidos, os magos por seus status sociais permaneceram seguros, embora que nem todo mundo fosse a favor de mantê-los, pois havia desconfiança quanto a magia (SELIGMANN, 1948, p. 67). 

Os magos continuaram a ter certa influência em parte da Europa até o século XVII. Homens como Pico della Mirandola (1463-1494), Parecelso (1493-1541)Nostradamus (1503-1566) e John Dee (1527-1608/1609) foram alquimistas, astrônomos, médicos, astrólogos, filósofos naturais e nos casos de Nostradamus e John Dee, videntes. Por tais características há quem os visse como magos modernos. Neste caso, destaque para Nostradamus que tinha influência na corte do rei Henrique II da França, sendo bastante estimado pela rainha Catarina de Médici. Já John Dee foi conselheiro da rainha Elizabeth I

Retrato de John Dee. Foi um matemático, astrônomo, astrólogo, geógrafo, alquimista e mago. 

3) Bruxaria: 

A bruxaria foi um conceito desenvolvido na Europa medieval entre os séculos XIII e XIV, e a partir do século XV ele se consolidou. Nesta parte final do trabalho conheceremos as etapas do desenvolvimento desse conceito, todavia, antes é preciso conhecer alguns aspectos que influenciaram o surgimento da bruxaria a qual nada mais é que a demonização da feitiçaria, algo promovido pela Igreja Católica, e apoiado e desenvolvido também pela Igreja Ortodoxa e as igrejas protestantes. 


O historiador italiano Carlo Ginzburg em seu livro História noturna (Storia notturna) foi um dos melhores que estudou afinco essa trajetória cultural que envolve mitos, lendas, folclore, superstição e imaginário social que influenciou a criação da bruxaria. De fato quem se interessa pelo assunto, recomendo ler o livro, já que aqui apresentarei um resumo da vasta pesquisa empreendida por ele há mais de trinta anos. 


Antecedentes:


Com base no trabalho de Carlo Ginzburg podemos apontar aspectos-chave os quais se correlacionam para construir todo o imaginário maléfico em torno das feiticeiras e feiticeiros os quais no final da Idade Média passaram a serem vistos como bruxas e bruxos. 


a) Influência pagã: 


Um primeiro aspecto a ser mencionado diz respeito aos mitos, lendas e folclore. A bruxaria na Europa possuiu diferenciações não apenas no fato de haver vários termos para designar seus praticantes, mas as influências que levaram ao seu surgimento variaram de região para região, no entanto, Ginzburg assinalou que quatro tradições em particular contribuíram para isso: 

  • a tradição greco-romana: bastante influente principalmente sobre a Grécia, Itália e França, legou resquícios de culto as deusas Ártemis (Diana) e Hécat. E em alguns locais como a Sicília e algumas ilhas gregas, encontravam-se referências ao culto da "deusa-mãe" de Creta.
  • a tradição celta: relatos de encontros com fadas, os quais realizariam banquetes e praticariam magia. Além disso, existem referências a Morrigan, uma deusa ou entidade associada a magia, a guerra, a noite e a lua. A imagem de Morrigan influenciou a negatividade dos praticantes de magia principalmente na Irlanda e Inglaterra. 
  • a tradição germânica-escandinava: a deusa Freyja por sua ligação com a magia e com os gatos, legou influências para as feiticeiras e feiticeiros. Além disso, era bastante comum na Escandinávia a prática de duas formas de magia o seidr e o galdr. Em alguns ritos algumas feiticeiras usavam luvas feitas de pelo de gato branco; não obstante, há relatos de encontros com elfos e duendes, naquele tempo, considerados seres mágicos.
  • a tradição eslava: Ginzburg não identificou alguma divindade propriamente falando no leste europeu, como visto em outras regiões, mas encontrou referências a feitiçaria, xamanismo, a lendas sobre lobisomens, necromantes e vampiros, algo que será comentado adiante.
O que se nota aqui são distintas referências a crenças pagãs que conviveram ao longo de toda a Idade Média e até mesmo Moderna, ao lado das crenças cristãs. Neste ponto temos que sublinhar alguns dados importantes: o Cristianismo levou séculos para se firmar sobre o continente, apenas no século XIV, é que as últimas terras europeias foram cristianizadas, ainda assim, não significou que todos os resquícios pagãos foram extirpados, pelo contrário, o folclore e lendas mantinham preservados histórias que remontavam mitos de séculos atrás, sem contar que nas regiões mais isoladas, a população praticava um cristianismo híbrido, mesclado com diferentes crenças mágico-religiosas. 

Neste ponto, Jacques Le Goff assinalou o fato de que a noção de Jesus, Deus e cristianismo não eram a mesma para um teólogo, um clérigo, um habitante da cidade, um habitante do campo. Havia distintas interpretações para isso, não sendo a toa que por volta do ano 1000 surgiram o movimento milenarista que perdurou pelos dois séculos seguintes. O milenarismo consistiu no surgimento de várias seitas cristãs, promovidas por clérigos ou laicos, os quais apresentavam novas interpretações para a religião, como defendiam que o Apocalipse, a vinda do Anticristo e o Juízo Final estavam próximos. 

Percebe-se pelo que Le Goff disse, o cristianismo nunca foi homogêneo durante o medievo, daí haver espaço para a influência, assimilação e manutenção de outras crenças, mesmo que crenças religiosas e mágicas, pois adiante veremos quando a magia começou a ser mal vista. 

Ginzburg (1991, p. 83-84) assinala que no século X, por volta de 906, o clérigo Reginone di Prüm redigiu algumas cópias de instruções que seriam enviadas a bispos franceses e seus representantes, obra intitulada De synodalibus causis et disciplinis ecclesiasticis libri duo. A obra consistia numa lista de recomendações para os bispos, padres, párocos, etc., adotarem medidas para se combater superstições e crendices que a população viesse a praticar, e tais práticas fossem resquícios de tradições pagãs ou inapropriadas para a conduta de um cristão. 


É preciso lembrar que quando o Cristianismo tornou-se a religião dominante no Império Romano no século IV e assim iniciou sua expansão, o judaísmo e o islamismo foram considerados heresias, seus membros, chamados de infiéis; no entanto, as demais religiões foram consideradas paganismo, idolatria. E começaram com o tempo a serem demonizadas. Assim, em uma das recomendações apresentadas na lista De synodalibus causis, estava se combater as "viagens noturnas", as quais em determinadas noites, mulheres sairiam de suas casas pois seriam convocadas por ordem da deusa Diana (Ártemis), e através de animais como cavalos, cães, gatos, lobos, etc., elas viajariam longas distâncias ao lado dessa deusa pagã, obedecendo suas ordens. 


Diana a caçadora. Guillaume Seignac. Embora fosse a deusa da caça, mas devido a sua associação com as florestas, os animais, a natureza, a noite e a lua, na Idade Média, a deusa foi associada com a magia e posteriormente com a bruxaria.  
O interessante que Ginzburg salienta neste ponto, é o fato de que isso não tem haver com bruxaria, embora que tal contexto seria reutilizado séculos depois, no entanto, ele mostra que já no século X, época que o paganismo greco-romano já havia sido bastante reduzido, ainda assim, surgiam relatos de que a deusa Diana convocava mulheres para segui-la, e neste caso, alguns clérigos diziam que isso era obra do Diabo. Neste ponto, recordemos que Diana não era uma deusa associada a magia, mas por ser uma deusa lunar, acabou tornando-se a senhora que comandava essas "cavalgadas noturnas". Aqui se percebe uma reaproveitação de elementos mitológicos, religiosos e culturais.

Ginzburg (1991, p. 87) assinala que de acordo com boatos e histórias da época, as mulheres que participavam desses "passeios noturnos", lutavam, voavam, praticariam magia, participariam de banquetes e até mesmo cometeriam sacríficos humanos. Percebe-se aqui que essa deusa começou a ser demonizada pela Igreja.


Não obstante, Ginzburg menciona que dependendo da região e da época encontram-se distintos nomes para se referir a misteriosa deusa noturna que levava mulheres a segui-la. Diana, Herodíades, Bensozia, Pertchta, Holda, Madame Horiente, etc. A maioria destes nomes são relatados pela França, sul da Alemanha, norte da Itália e Suíça. Por sua vez, no século XV ainda se encontravam-se histórias sobre tal misteriosa deusa, o que sugere uma sobrevivência dessa lenda por quase cinco séculos. 


Por volta do século XI, encontram-se na França, Alemanha, Dinamarca, Noruega, Inglaterra e Espanha, relatos sobre "exércitos de mortos" e as "caçadas selvagens". Para Ginzburg deveriam ser sinônimos. Todos esses eventos ocorreriam ao entardecer e de noite. Diziam-se que em determinadas épocas do ano, poderia se ver os mortos que haviam morrido em batalhas, de fome ou de peste, assim como crianças não batizadas; vagarem por estradas, campos e florestas. Eles não seriam zumbis como hoje entendemos, pelo menos não na aparência. Então conta-se que havia pessoas que se uniam a estes caminhantes para praticar o mal. 


No caso das caçadas selvagens, no que se refere a Inglaterra e a Escandinávia, há relatos de pessoas dizendo que viam vários homens a cavalo, galopando pelo céu, além de terem cães de caça em companhia. Alguns desses relatos mencionam que o deus Odin (Wotan) comandava tal caçada. 


A caçada selvagem. Johann Wilhelm Cordes, 1856-1857. 

Carlos Ginzburg (1991, p. 94-95) assinala que necessariamente a "cavalgada de Diana", o "exército de mortos" e a "caçada selvagem" não possuem uma ligação direta com a bruxaria, mas consistiriam em relatos que seriam reinterpretados séculos depois, e passariam a estarem relacionados com a bruxaria. 

Por exemplo, ele cita o caso de duas mulheres suspeitas de serem bruxas, chamadas Sibila e Pierina que viviam em região alpina entre a França e a Itália, as quais alegavam participar de "passeios noturnos" em companhia de uma deusa. Tal deusa ou senhora era chamada de Madame Oriente, e esse relato foi registrado pelos inquisidores no final do século XIV. Percebe-se a sobrevivência dessas narrativas ao longo do tempo. 


b) Histeria coletiva:


Para Ginzburg a histeria envolvendo seitas milenaristas que defendiam o fim do mundo; movimentos religiosos contrários aos dogmas católicos como o Catarismo e os Valdenses, ambos na França, e a histeria coletiva envolvendo um suposto e maléfico complô de que leprosos, judeus e muçulmanos conspiravam para destruir a França, como também espalhar a peste negra, teriam contribuído para o estabelecimento de um estado de emergência de ânimos exaltados. Embora como o historiador saliente, muitos destes casos não tiveram nenhuma ligação com o uso de magia para causar malefício, porém, houve boatos de que os leprosos estariam usando um "pó venenoso" para contaminar a água e assim matar a população. 


Desde a Antiguidade, os clérigos cristãos criticavam o judaísmo e o paganismo, inventavam mil e umas histórias para denegrir o judaísmo e as religiões politeístas que existiam na Roma Antiga, porém esse pensamento ainda se manteve nos séculos seguintes, criando um poderoso estereótipo principalmente sobre os judeus, os quais passaram a serem vistos como um povo traiçoeiro. 


Os séculos se passaram sem grandes incidentes com os judeus, até que no século XI, começaram a surgir na França, pequenos casos de revoltas contra judeus e leprosos, no que resultou na expulsão ou assassinato destes. Os motivos são complicados de se reconhecer, pois muito provinha de fofoca e boatos, os quais alegavam que os judeus e leprosos estavam de complô, causando problemas nas comunidades, vilas e feudos. 


A bem da verdade, como foi dito, os judeus eram vistos como uma comunidade de traiçoeiros, logo, tolerados devido ao seu papel no comércio; já os leprosos eram vistos como páreas, pessoas malditas, cuja doença era entendida como uma punição de Deus. Leprosos eram mais descriminados do que os judeus, mas pelo fato de ambos serem elementos marginalizados pela sociedade no geral, foram considerados aliados. 


A situação era tão complicada que no século XIII, a Igreja instituiu normas para os judeus e leprosos. Em 1215, no Concílio de Latrão, foi determinado que os judeus e leprosos ao saírem de casa deveriam usar determinados tipos de roupas. Os judeus deveriam exibir círculos amarelos, vermelhos ou verdes em suas vestes, para que pudessem ser identificados. Já os leprosos deveriam usar capas pretas ou cinzas, gorros vermelhos, e carregarem consigo um tipo de chocalho para avisar que estavam por perto. Em 1290, no Concílio de Nogaret, foi decretado que os judeus e leprosos deveriam estampar um distintivo vermelho no peito e nas costas (GINZBURG, 1991, p. 46). 


Nota-se uma política de segregação social. Judeus e leprosos que eram páreas sociais, deveriam se vestir com certas cores, peças de roupas e usar símbolos que os distinguissem dos demais, pois saberia-se onde tais pessoas comumente estariam e seria mais fácil detectá-los em meio a multidão. E se algum problema ocorresse no meio da rua, eles eram os primeiros a serem acusados. 


A situação piorou no século XIV, quando surgiram pela França, Suíça e norte da Itália histórias sobre uma conspiração entre judeus e leprosos. Em 1321 espalharam-se pela França, boatos de que os leprosos tramavam assassinar os nobres e envenenar a população. Os boatos foram tão alarmantes que o rei Filipe V ordenou a prisão em massa dos leprosos. Uns foram torturados e "confessaram" que o plano era real. Então o rei tomou medidas drásticas: ordenou que os leprosos fossem expulsos das cidades e conduzidos a vilas e aldeias, para "campos de concentração", por outro lado, a população furiosa começou a persegui-los e assassiná-los (GINZBURG, 1991, p. 41). 


A medida severa de Filipe V da França surtiu efeito, e nos anos seguintes não se ouviu mais falar desse maléfico plano. No entanto, entre 1327 e 1328 novos boatos votaram à tona, dessa vez diziam que os judeus eram os mentores de hediondo plano, e encarregaram os leprosos de dispersarem nos rios, fontes, reservatórios, etc., um pó venenoso. Dessa vez o escândalo foi ainda maior, alcançando proporções nacionais. 


Além dos leprosos, os judeus passaram a serem presos, interrogados e executados. Ambos tornaram-se inimigos públicos. Ao mesmo tempo começaram a surgir boatos de que feiticeiros judeus seriam os responsáveis por produzirem este "veneno", assim como, tais feiticeiros estariam tentando corromper os cristãos. Por outro lado, surgiram documentos falsos os quais alegavam que além dos judeus, os muçulmanos estariam também envolvidos. 


Pintura retratando a expulsão dos judeus.

Em tais documentos como a Carta de Bananias, alegava-se que o "rei da Babilônia" estava envolvido. Também se falava do "sultão de Granada", "rei de Bagdá", "rei do Egito", etc. Embora os muçulmanos estivessem distantes da França, eles receberam parte da culpa, algo que era herança das Cruzadas, ocorridas nos dois séculos seguintes, pois alegava-se que os muçulmanos queriam vingança devido a tais guerras. 

O problema que tudo não passava de uma grande farsa, um maléfico motivo para corroborar a expulsão de leprosos, judeus e a perseguição a feiticeiras e feiticeiros, neste aspecto, Ginzburg salienta que a perseguição aos praticantes de magia, foi algo que viria a ser desenvolvido até se tornar a caça às bruxas dois séculos depois. Mas naquele primeiro momento, a magia até então tolerada, começava a ser vista com desconfiança. 


Não obstante, independente de se fossem praticantes de magia ou não, leprosos e judeus foram executados por enforcamento, decapitação e houve casos de serem queimados vivos. Pelo restante do século começaram a surgir perseguições aos judeus não apenas na França, mas na Itália, na Espanha e na Alemanha. Em 1409, o papa Alexandre V enviou inquisidores para as regiões alpinas na fronteira da Itália com a França para averiguar casos de heregia e feitiçaria, associados a judeus. 


O que percebe aqui é que entre o século XI e XV, houve surtos de histeria pública por vários locais da Europa central, que contribuíram para criar um terreno instável e propício para se perseguir, difundir o ódio, o medo, a superstição e a revolta contra os elementos marginalizados da sociedade: leprosos, judeus, pobres, ciganos, feiticeiras, etc. 


c) A demonização da magia:


A demonização da magia foi o aspecto final que contribuiu para originar a bruxaria. Ela foi instituída de forma legal e oficializada com base teológica para justificar os motivos pelos quais a magia e seus praticantes deveriam ser perseguidos, interrogados, combatidos e se fosse o caso, condenados, punidos e executados. Neste aspecto, veremos a importância de alguns decretos e livros que ao longo de dois séculos contribuíram para definir o que seria "magia negra" e bruxaria. 


Recapitulando o que foi dito, a magia sempre conviveu lado a lado com diferentes religiões do mundo, desde a Antiguidade, e no caso do Judaísmo, Cristianismo e Islamismo isso não foi diferente. Num primeiro momento os bispos e papas tentaram proibir que os cristãos continuassem a praticar crenças mágicas oriundas do paganismo, no entanto, isso não significava que eles estavam abolindo a magia, pelo contrário, eles estavam alegando que a "magia pagã" era fraca e ruim, mas a "magia cristã" era poderosa e boa. 


"As conversões à nova religião, seja na época da Igreja primitiva ou sob os auspícios de missionários de tempos mais recentes, são frequentemente reforçadas pela crença dos conversos de que estão adquirindo não só um meio de salvação no além, mas também uma nova magia mais potente. Assim como os sacerdotes do Antigo Testamento empenhavam-se em confundir os devotos de Baal, desafiando-os publicamente a realizarem atos sobrenaturais, da mesma forma os apóstolos da Igreja primitiva atraíam seguidores operando milagres e realizando curas milagrosas". (THOMAS, 1991, p. 35). 


De fato no final da Idade Antiga tivemos vários santos mártires, pois morreram defendendo a sua fé. Mas quando passamos para a Idade Média, ainda tivemos alguns santos mártires, no entanto, histórias de supostos milagres realizados por santos e santas proliferaram de forma estrondosa por todo o continente. O período medieval foi a época na qual os santos mais tiveram atuação, assim como, a quantidade de homens e mulheres canonizados cresceu bastante. 



“Na tradição cristã, a magia não se encontra só nos milagres dos santos, mas também na doutrina da transubstanciação eucarística. Se as palavras do padre, Hoc est corpus, têm o poder de realmente transformar o pão em corpo de Cristo, não é de admirar que o povo medieval via aí um ato mágico e que a fórmula sagrada Hoc est corpus foi ironicamente corrompida pela palavra nova hocuspocus, que significa nada menos do que “charlatanice””. (NÖTH, 1996, p. 32).

Assim, ao longo dos séculos a magia foi tolerada pela Igreja em toda a Europa, uma vez ou outra ocorria desentendimentos locais ou entre autoridades eclesiásticas com as feiticeiras e feiticeiros. Na Idade Média Central (século XI-XIII), a magia começou a migrar para as cidades como foi visto anteriormente no texto, passando a ser interesse da nobreza, da aristocracia e da burguesia; assim começaram a surgir os magos, como também alguns charlatões. Não obstante, clérigos como Roger Bacon, São Abelardo e São Tomás de Aquino chegaram a escrever a respeito da magia e da alquimia, não como práticas supersticiosas e maléficas, mas as concebendo do ponto de vista do conhecimento da natureza. 

Só que estes homens viveram no século XII-XIII, quando chegamos ao século XIV, a situação começou a mudar. Em 1326, o papa João XXII expediu a bula Super Illius Specula, na qual decretava que a feitiçaria era oriunda da influência maléfica de Satanás, o qual através de suas mentiras enganava as pessoas e fazia que outras acreditassem nos poderes mágicos de feiticeiras e feiticeiros, os quais estavam ao seu serviço. Na época que a bula de João XXII foi promulgada, parte da Europa vivenciava um período de histeria, principalmente na França, devido ao suposto complô dos leprosos com judeus e muçulmanos; ao mesmo tempo, a inquisição episcopal desde o século XIII, já vinha perseguindo seitas heréticas no sul da França e no norte da Itália, logo, todo esse cenário de desconfiança já estava bem estabelecido. 

Retrato do papa João XXII, o qual foi responsável por associar a magia ao Diabo, o que levou a separação entre "magia branca" e "magia negra".

Com isso, originou-se os termos "magia branca" e "magia negra". O papa João XXII não condenava o uso da magia, desde que ela fosse feita pelos clérigos ou por bons cristãos, a chamada "magia branca", porém, ele condenava a magia feita para interesses danosos e perniciosos, o que foi chamada de "magia negra", a qual viria a se tornar sinônimo de bruxaria um século depois. O problema que essa definição era um fundamento estabelecido pela Igreja, mas que na prática não era bem assim. 

“Na verdade, a magia, sobretudo em sua forma popular, nunca é completamente branca, pois fazer o bem a alguns por meio de determinados métodos pode, em contrapartida, significar fazer o mal a outros... Também não é completamente negra, pois se fosse francamente diabólica ou assim se apresentasse, não teria reunido padres, adeptos de uma pequena mágica/feitiçaria inocente, à qual se convertiam para fazer o bem. É interessante salientar que, ao pronunciar alguns encantamentos para vencer a esterilidade feminina ou curar pequenos problemas, esses religiosos, movidos por bons propósitos, redobravam os sinais da cruz com o intuito de reforçar a fé”. (HANCIAU, 2009, p. 76).

A bula Super Illius Specula não teve efeito imediato, mas os fundamentos da perseguição a "magia negra" estavam lançados. Nas décadas seguintes, começaram a surgir termos para se referir aos praticantes de magia; as feiticeiras passaram a serem chamadas de strige, stix, stria, striga, termos depreciativos que aludiam as mulheres que participavam da "caçadas noturnas de Diana", ou participavam de "atividades misteriosas e ilícitas durante a noite", em ambos os casos, essas histórias já comentadas anteriormente seriam usadas para originar o sabá ou "missa negra", algo que trataremos adiante. Por sua vez, a palavra magus foi corrompida pelos clérigos e tornou-se maleficus, termo pelo qual passou-se a se referir a feiticeiros e feiticeiras em alguns documentos ainda no século XIV e começo do XV (HUNCIAU, 2009, p. 78).  

Em 1376, foi publicado o Directorium Inquisitorum (Manual dos Inquisidores), escrito por Nicolau Eymerich (1320-1399). Embora a inquisição já existisse há décadas, ela não era regular, ocorrendo por decreto quando era solicitado, além disso, as normas e regulamentos ainda não eram um código fechado, fato este que os papas ao longo do século XIII, tiveram que expedir decretos para regulamentar a ação dos inquisidores, no entanto, com o Manual publicado em 1376, finalmente se teve uma organização das atividades das inquisições. 


Frontispício de uma edição do Directorium Inquisitorium (Manual dos Inquisidores).

Neste manual especificava-se as diferentes formas de heresia e como os inquisidores deveriam proceder. Neste caso, chama-se a atenção para a heresia advinda de práticas mágicas. Pessoas que fizessem adivinhação, evocassem espíritos, dissessem se transformar em animais, projetassem suas almas; que preparassem venenos ou feitiços danosos; e que tivessem uma conduta suspeita ao participar de seitas ou de "viagens noturnas", deveriam ser investigadas. As inquisições já vinham investigando casos de "magia negra" ainda no século XIV, mas estes começaram a aumentar nos séculos seguintes. 

Em 1398, os doutores da Universidade de Paris afirmaram que a bruxaria seria uma grande heresia e idolatria ao Diabo, pois através de um pacto feito com esse, as pessoas adquiririam sua ajuda para praticar magia maléfica (LOYN, 1998, p. 138)


Ao adentrar o final da Idade Média, outros documentos e declarações contra a bruxaria foram emitidos, assim como, começaram a aumentar casos de suspeita de bruxaria, como também começou a se desenvolver alguns estereótipos, como as bruxas que voavam em vassouras, que possuíam gatos pretos, que se transformavam, que seriam feias, etc. 


Outro documento importante foi o Formicarius (1475), livro escrito pelo padre e teólogo dominicano alemão Johannes Nider (c. 1380-1438), no qual o clérigo travava de vários aspectos referentes a bruxaria. A obra foi escrita entre 1435 e 1436, mas apenas vários anos depois foi publicada, mas antes de ser efetivamente publicada, já havia sido mencionado por outros autores. Neste livro em forma de diálogo, entre um teólogo e um homem leigo, o autor introduziu várias informações baseadas na realidade imaginária, social e cultural de sua época, abordando lendas, questões sociais, superstições, etc., todavia, no capítulo 5 ele se dedicou a falar exclusivamente sobre magia e bruxaria (GINZBURG, 1991, p. 68-69).


Frontispício de uma das versões do Formicarius, escrito pelo teólogo alemão Johannes Nider. Nessa importante obra de difusão dos malefícios da bruxaria, o autor através de relatórios de julgamentos e investigações contra bruxas, expõe o imaginário acerca desse "mal" que estava se espalhando.

Em seu livro nota-se claramente o discurso de Nider em creditar a bruxaria como sendo as práticas mágicas para intuito maléfico e associadas por um pacto com o Diabo. No entanto, além de reforçar todo essa ideia que vinha desde 1326 sendo construída, o historiador Carlo Ginzburg (1991, p. 69) assinala que na obra de Nider, encontramos uma das primeiras menções sobre supostas "seita de bruxas". Nider como coletou suas informações a partir de relatórios eclesiásticos e inquisitoriais, encontrou menções a tais grupos, então reuniu as informações acerca e as redigiu em sua obra. Tais informações são um prenúncio do que ficaria conhecido como sabá. 

Em dezembro de 1484, o papa Inocêncio VIII (1432-1492) expediu a bula Summis Desiderantes Affectibus, documento o qual estipulava oficialmente a existência da bruxaria e exigia medidas cabíveis para combater essa maldade (OBICI; SKALINSKI, 2003, p. 24). A bula pautava-se em cinco prerrogativas:

  1. A bruxaria era real, e seus adeptos eram heréticos e apostatas (traidores da fé cristã), os quais passariam a servir a Satã;
  2. As heresias deveriam serem exterminadas para que assim a boa conduta cristã pudesse prevalecer, guiando os homens para o bem e a salvação;
  3. Autorizou que os inquisidores por quaisquer meios investigassem, julgassem e punissem os heréticos. Autorizava que os monges dominicanos Heinrich Kramer (1430-1505) e Jacob Sprenger (1436-1495), redigissem um manual para se explicar o que era a bruxaria e as formas de combatê-la;
  4. Desconsiderou todas as afirmações que alegavam que a bruxaria não existia, e consistia em fanatismo, alucinações e superstições;
  5. Exigia empenho dos inquisidores e clérigos que não pertencessem a inquisição, que pregassem a palavra de Deus por todas as igrejas e combatesse as heresias. 
A publicação da bula Summis Desiderantes Affectibus resultou no surgimento do principal livro para se combater a bruxaria, o Malleus Maleficarum (O Martelo das Bruxas), obra redigida por Heinrich Kramer e Jacob Sprenger, entre os anos 1485-1486 e publicado em 1487

"No período compreendido entre o século XIV e meados do XVIII, a Igreja Católica construiu e apresentou de maneira pretensiosamente científica sua doutrina acerca da bruxaria. Dentre os vários documentos da Igreja relacionados ao tema - segundo Delumeau (1989), foram publicados ao todo 41 tratados sobre feitiçaria entre 1320 e 1487 (ano de publicação do Malleus Maleficarum)". (OBICI; SKALINSKI, 2003, p. 23). 


Por mais que se tenham sido publicados 41 obras sobre feitiçaria e bruxaria, como apontou o historiador francês Jean Delumeau, no entanto, foi a partir do Martelo das Bruxas que a situação ganhou novos patamares, abrindo prerrogativas para um surto de ódio para se combater a bruxaria, e isso viria a originar a famigerada caça às bruxas. 


O Martelo das Bruxas: 


Para alguns a bruxaria surge nos séculos XIII ou XIV a partir da condenação da "magia negra" e seus adeptos, e de outras obras lançadas posteriormente, mas para outros, foi apenas no século XV com livros como o Formicarius, mas principalmente o Malleus Maleficarum foi que a bruxaria realmente passou a ser real. 


Para este estudo consideramos que a ideia de bruxaria como sendo a magia feita através de influência demoníaca, surge no século XIV, por sua vez, foi no século XV que surgiu o conceito de sabá, o conceito de bruxa e o imaginário social e cultural envolvendo tudo isso. Para o final deste estudo, comentei um pouco sobre o sabá e a caça às bruxas, mas antes de chegar de fato em tais assuntos, é necessário falar sobre O Martelo das Bruxas, leitura imprescindível para compreender a bruxaria em seu auge, que coincidiu com a dura retaliação sofrida por parte da Igreja católica, ortodoxa e protestantes, e os governos civis. 


Frontispício de uma edição do Malleus Maleficarum, impresso em Veneza em 1576.

"O Malleus Maleficarum é estruturado da seguinte maneira: na primeira parte são colocadas e discutidas as três condições necessárias para a bruxaria: o diabo, a bruxa e a permissão de Deus; na segunda, os métodos pelos quais se infligem os malefícios e de que modo podem ser curados; e, finalmente, na terceira as medidas judiciais, no tribunal eclesiástico e no civil, a serem tomadas contra as bruxas e todos os hereges. Discorrendo sobre diversas questões dentre dessas três divisões, os monges buscam fundamentar a "doutrina científica" acerca da bruxaria, contribuindo para a institucionalização do conhecimento sobre o tema". (OBICI; SKALINSKI, 2003, p. 25). 

Para este estudo comentaremos acerca da primeira parte, a qual se refere a mulher, o Diabo e a permissão de Deus. Quando as bulas de 1326 e 1484 foram decretadas pelos papas João XXII e Inocêncio VIII, em ambos os documentos não se definia o gênero dos acusados, apenas dizia-se para se combater os praticantes de magia maléfica, "magia negra" (BERNARDO, 2003, p. 73). 


Foi com O Martelo das Bruxas que os autores Kramer e Sprenger definiram que a bruxaria fosse essencialmente praticada por mulheres, pois elas eram fisicamente, mentalmente, intelectualmente e espiritualmente inferiores ao homem, logo, eram mais suscetíveis a serem iludidas e enganadas pelas artimanhas e promessas de Satanás. Além de considerarem a ideia de que a mulher seria naturalmente predisposta a luxúria, logo, isso a levaria a outros pecados. 


A questão da luxúria, do sexo, do carnal, foi algo bastante marcado na concepção medieval e moderna sobre a mulher. Para embasar o argumento de que as mulheres eram essencialmente propícias a serem corrompidas e a cederem ao pecado, Kramer e Sprenger se valeram basicamente de quatro fontes:

  • A Bíblia de onde Eva torna-se a principal referência;
  • Textos teológicos provenientes de doutores da Igreja como Santo Agostinho de Hipona e São João CrisóstomoSão Bernardo, São Tomás de Aquino, etc. 
  • Textos filosóficos como de Aristóteles, Cícero e Sêneca;
  • Relatórios inquisitoriais. 
"Houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter sido ela criada a partir de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito, cuja curvatura é, por assim dizer, contrária à retidão do homem. E como, em virtude dessa falha, a mulher é animal imperfeito, sempre decepciona e mente". (OBICI; SKALINSKI, 2003, p. 25 apud KRAMER; SPRENGER, 2000, p. 116). 

O Íncubo. Charles Walker, 1870. Os demônios que tinham relações sexuais com as mulheres eram chamados na Idade Média e Moderna de íncubos, já os demônios que transavam com homens, eram chamados de súcubos. Em ambos os casos tais criaturas procuravam roubar a energia vital das pessoas, como também enfeitiçá-las para que aderissem a bruxaria.

"A mulher irá pagar em sua carne o passe de mágica dos teólogos, que transformaram o pecado original em pecado sexual. Pálido reflexo dos homens, a ponto de Tomás de Aquino, que às vezes segue o pensamento comum, dizer que "a imagem de Deus se verifica no homem de uma maneira que não se verifica na mulher", ela é subtraída até mesmo em sua natureza biológica, já que a incultura científica da época ignora a existência da ovulação, atribuindo a fecundação apenas ao sexo masculino. "Essa Idade Média é masculina, decididamente", escreve Georges Duby. "Pois todos os discursos que chegam até mim e sobre os quais me informo são feitos por homens, convencidos da superioridade de seu sexo. É apenas a eles que ouço. No entanto, eu os escuto falando antes de tudo de seu desejo e, por conseqüência, das mulheres. Eles têm medo delas e, para se afirmarem, desprezam-nas." (LE GOFF; TRUONG, 2006, p. 55).

Bruxas. Hans Baldung Grien, 1508. 

Sendo as mulheres consideradas naturalmente frágeis e predispostas a serem facilmente corrompidas pelo Diabo, daí a grande maioria de pessoas acusadas de bruxaria terem sido mulheres. Pelo menos 95% das acusações, interrogatórios e condenações ocorridos durante a caça às bruxas, foram de mulheres. A mulher na teologia medieval desde o século IX com o Canon Episcopi, já era vista como símbolo de tentação, luxúria e de pecado, e tal pensamento ignorante e misógino perdurou até o século XVII. 

Não obstante a ideia de que as bruxas seriam velhas, não é algo dito no Martelo das Bruxas, pois todo o tempo ele diz que as bruxas supostamente faziam sexo com os demônios, assim como, usavam a sedução para corromper os homens. Algumas bruxas eram motivadas por ciúmes, inveja e vingança, pois gostavam de algum homem, mas este as deixou, as traiu ou não a amava, então elas decidiam procurar a ajuda de Satã para se vingar. 

"A bruxa é identificada como ajuda que realiza um pacto com o demônio, abjura a fé católica e realiza seus prodígios com intenções maléficas. Já a feiticeira é tomada como aquela que se utilizava dos processos mágicos a fim de alcançar seus objetivos, quase sempre sensuais e não necessariamente de caráter maléfico, não praticando a apostasia da fé - entendida como repúdio e completa negação da fé católica -, ou realizando um pacto com o demônio. Ou seja, o conceito de bruxa conjuga a um só tempo a feitiçaria e a maior heresia de todas, segundo a Igreja da época: a apostasia da fé católica". (OBICI; SKALINSKI, 2003, p. 26). 

Pintura sacra do Mosteiro Rila, Bulgária. Meados do século XIX. Na imagem vemos mulheres acompanhadas de demônios, o que reforça o estereótipo de que as mulheres seriam mais facilmente corrompidas pelo mal. Embora a pintura tarde de uma época bem posterior ao auge da bruxaria, tal concepção ainda era viva. 

Um último aspecto a comentar, diz respeito a aliança com Satã e a permissão de Deus, ambas questões comentadas na primeira parte do livro. 

"Kramer e Sprenger (2000) apontam Deus como o agente inicial a partir do qual todas as coisas partem. Tomando isso com base e, trabalhando dentro de uma noção de causalidade, argumentam que tudo é cuidado e ordenado para um determinado fim, de acordo com Sua vontade, que governa o que acontece no mundo, tanto no micro como no macro cosmos. Mesmo os eventos que não nos agradam, ou que não entendemos, encontram-se dentro dessa ordem. Logo todo tipo de bruxaria só pode ocorrer com a "Permissão de Deus". Assim, podemos entender a Providência Divina como intrinsecamente ligada às finalidades que atende, uma vez que Deus as conhece tanto em seu sentido geral como particular". (OBICI; SKALINSKI, 2003, p. 35). 


Segundo a concepção dos padres Kramer e Sprenger, autores de O Martelo das Bruxas (1486), o pecado existiria, pois Deus permitia que ele existisse. Se retomarmos o Gênesis, a maldade apenas se espalhou pelo mundo depois que Adão e Eva foram expulsos. Lúcifer apenas instaurou a "semente da discórdia", mas foram os homens que a cultivaram. Sendo assim, as mulheres se tornavam bruxas porque Deus permitia que isso ocorresse pelo motivo de ter dado ao ser humano o livre arbítrio, logo, se uma mulher escolhia se tornar uma bruxa, é porque ela detinha esse direito, só que Deus quer o bem de seus filhos, então para Ele, a pessoa que se corrompia pelo pecado, estava se distanciando de si. 


O sabá:


O sabá, sabbat, sagarum synagoga, strigiarum conventus, striaz, barlòtt, akelarre, "missa negra", etc., foram distintos nomes para se referir ao que ficou conhecido a partir do século XV, a uma reunião entre bruxas, bruxos e demônios, as quais ocorriam à noite, em campos, florestas; geralmente locais ermos e afastados, nos quais as bruxas e bruxos aproveitavam para praticar seus ritos diabólicos, se divertir e adorar o Diabo. 


"Brujos y brujas se reunían pela noche, generalmente en lugares solitários, en los campos o en los montes. Unas veces llegaban volando, tras haberse untado el cuerpo com unguentos, cabalgando sobre bastones o mangos de escoba; otras veces montados en animales o transformados en animales ellos mismos. Los que acudían a la reuníon por vez primera tenían que renunciar a la fe Cristiana, profanar los sacramentos y render homenaje el demônio, presente en forma humana o, más a menudo, en forma animal o semianimal. Seguían a continuácion banquetes, danzas y orgías sexuales. Antes de volver cada uno a su casa, brujas y brujos recebían unguentos maléficos elaborados con grasa de niño y otros ingredientes". (GINZBURG, 1991, p. 11).

O sabá. Francisco Goya, 1797-1798.

"A reunião decorria de preferência perto de uma árvore apodrecida, da sinalização de um caminho ou de uma forca. Sob a capa de ritos mágicos, desenrolava-se, na sua pompa grotesca, um verdadeiro carnaval de lascívia. O sabat adquiriu um carácter sinistro quando os antigos ritos pagãos deixaram de ser considerados como o ressurgimento de um passado decadente, mas como actividades maléficas, germinadas a partir de heresias e bruxaria". (SELIGMANN, 1948, p. 15). 

Embora desde o século X se encontre relatos sobre reuniões noturnas, dentre os quais foram comentados neste texto anteriormente, quando falamos sobre a "caçada noturna de Diana", a marcha do "exército dos mortos", a "caçada selvagem", apenas no século XV é que o sabá surge propriamente como sendo uma reunião de bruxas e bruxos para adorar o Diabo, pois antes disso, considerava-se que as bruxas estariam participando de alguma celebração pagã, sem necessário envolvimento com Satanás. 

Para Carlo Ginzburg (1991) como ele salienta ao longo de seu livro História Noturna (1989), o conceito de sabá originou-se a partir dos relatórios eclesiásticos, inquisitoriais e demonológicos promovidos pela Igreja Católica, com base em lendas, crendices, folclore, boatos, fofocas e confissões duvidosas, os quais todo esse material foi coletado pelos inquisidores. Neste ponto ele assinala que não podemos tomar ao pé da letra as confissões de mulheres que se diziam serem bruxas, que teriam tido relações sexuais com íncubos, que participavam do sabá ou de outras reuniões noturnas, pois essas mulheres poderiam ter ouvido falar de tais histórias; ou poderiam ter utilizado alguma pomada, pasta, poção, etc., que provocava alucinações, e a partir de tais alucinações elas diriam que foram ao sabá. Por outro lado, algumas poderiam de fato se reconhecerem como sendo bruxas, daí respaldar as crendices existentes. 

Além disso, Ginzburg assinala que geralmente durante as sessões de tortura o réu confessava aquilo que os inquisidores queriam ouvir, mesmo que não fosse verdade, mas diante de intensa dor física isso abalava mentalmente os réus. Há um exemplo bem interessante: no livro O Corcunda de Notre Dame (1831) de Victor Hugo. Na obra, a cigana Esmeralda foi acusada de bruxaria, mas negava que fosse uma praticante de magia, mas durante as seções de tortura, diante de tanta agonia, os inquisidores ao invés de fazerem perguntas, eles proferiam afirmações, as quais inconsequentemente Esmeralda as confirmava. Embora o relato de Victor Hugo seja ficcional, o autor se baseou na realidade histórica sobre os interrogatórios feitos para se confessar casos de bruxaria. 

"A partir das confissões de algumas bruxas, podemos recriar muitos pormenores destas reuniões, ainda que não possamos estar certos de corresponderem aos verdadeiros acontecimentos, já que os suplícios levavam as bruxas a confessar tudo quanto os juízes quisessem que elas revelassem. Muitas dessa infelizes, à falta de imaginação, ansiavam simplesmente por que as respostas lhes fossem sugeridas, até porque a confissão era a única maneira de obviar à tortura". (SELIGMANN, 1948, p. 17). 

Dependendo da região, a descrição do sabá mudava, no entanto ele possuía aspectos em comum: 
  • Reunião noturna em locais distantes de cidades, vilas, aldeias;
  • As bruxas e bruxos se dirigiriam para lá, voando em vassouras, bastões, forcados; ou voariam em animais como cavalos, cães, lobos, gatos, bodes, etc., ou iriam transformados nestes animais;
  • No sabá ocorreriam danças, cantos, banquetes e orgias;
  • As bruxas iniciantes seriam iniciadas a seita, após fazerem os juramentos e ritos de iniciação, o que envolveria sangue, canibalismo e sacrifício humano;
  • Satã seria adorado nestas reuniões. 
O sabá no imaginário do final do medievo até a metade da modernidade representava vários aspectos da sociedade europeia daquele tempo: o medo da noite; o pavor da "magia negra"; o medo dos demônios; a libertinagem, a sexualidade depravada e exaltada, pois é preciso lembrar que sexo era tabu, e no caso das mulheres um imenso tabu. A boa mulher era aquela que casava casta, e depois de casada tinha que se manter fiel ao marido, ser uma boa esposa, dona de casa, mãe; assim como, transar apenas para procriar. Mesmo os casais eram desencorajados a terem uma vida sexual ativa. Logo, daí muitos relatos do sabá estarem associados a depravação, gula, bebedeira e orgias, pois tudo isso representava pecados capitais. Era o oposto da conduta de um bom cristão.

Por outro lado, a suposta presença de ritos de sangue, sacrifícios de animais, de pessoas e até do canibalismo, era considerado um legado pagão que foi mantido pelas bruxas, as quais neste ponto tais atos eram uma forma de conceder um caráter terrível a tais reuniões. E tudo era completado com a apostasia da fé e a adoração ao Diabo. Na prática o sabá não existiu, mas para o imaginário cultural daquela época ele era algo real. Nessa perspectiva pensa-se que combater o pecado não é apenas proibi-lo, e ensinar as pessoas a se apartarem da maldade, mas na concepção moderna, combater o pecado da bruxaria, era extingui-lo com fogo. 

A caças às bruxas:


Para encerrarmos falaremos de um último assunto, tão polêmico quanto, senão, o mais polêmico de todos: a caça às bruxas. Produto do misticismo, histeria, preconceito e ignorância surgidos no final da Idade Média, encontrou ironicamente terreno fértil na Idade Moderna (XV-XVIII), época na qual parte da Europa vivenciava o Renascimento e a Revolução Científica, ainda assim, não bastou essa mudança de pensamento, mentalidades e costumes para impedir que dezenas de mulheres fossem acusadas de bruxaria, interrogadas, torturadas e executadas. 


Diferente do que se imagina o ato de condenar pessoas a fogueira não começou com as bruxas. Ginzburg (1991) aponta que no século XI, houve casos de leprosos e judeus que foram condenados a fogueira. Isso se repetiu no século XIII e no XIV, porém eram incidentes isolados e pouco recorrentes, e necessariamente não eram ordenados ou organizados pela Igreja, mas por autoridades locais. 


No século XV e que começaram a se aumentar o casos de bruxas condenadas a fogueira. Isso coincide com a época que a bruxaria já havia surgido, assim como, a crença no sabá. Um dos casos mais notórios dessa época foi a execução de santa Joana D'Arc (1412-1431), acusada de heresia e de bruxaria. No caso Joana foi acusada não por ser uma praticante de magia, pois ela própria dizia que não sabia fazer magia, mas as vozes que ela disse serem de anjos, foram reconhecidas pelos inquisidores como sendo vozes de demônios (aqui devemos lembrarmos do suposto pacto das bruxas com Satanás). Embora inocente, Joana D'Arc foi condenada a morte na fogueira, aos 19 anos. 


Pintura retratando santa Joana D'Arc sendo condenada a fogueira, em 1431. 

No século XV, começaram a ter execuções em massa de bruxas na França e Alemanha, e em menor escala na Itália e Suíça. No século XV, os anos de 1455-1460 e 1480-1485, foram anos com maior índice de condenações e execuções (LOYN, 1997, p. 139). 

Após a publicação do Martelo das Bruxas (1486), em cujo livro os autores recomendavam que a única forma de se salvar a alma de uma mulher que se confirmar-se ser uma bruxa de verdade, era através da purificação do fogo, neste caso, as chamas consumiriam a carne maculada, mas libertariam a alma, podendo ir para o Purgatório ou caso Deus decidisse conceder perdão naquele instante, as almas iriam direto para o Paraíso. O Martelo das Bruxas continuou a ser reimpresso por mais de cem anos, sendo a principal referência para se proceder na caça às bruxas. 

Entre os séculos XVI e XVIII a Europa vivenciou um verdadeiro surto de condenações: França, Alemanha, Itália, Suíça, Espanha, Portugal, Inglaterra, Escócia, Irlanda e em menor número Suécia, Islândia, Dinamarca, Noruega, Rússia, Polônia, Ucrânia, Hungria, Grécia, Áustria, etc. Em alguns países os historiadores não chegam nem a considerar que houve uma caça, mas apenas execuções casuais, principalmente os países Escandinavos e do leste do continente, pois a caça se concentrou na Europa central e ocidental.  




Gravura de 1655, retratando a execução de bruxas por enforcamento na Inglaterra. 

“Tomar a bruxaria como algo sem importância, trivial é outro erro, em muitos sentidos. Durante as perseguições às bruxas, entre 1450 e 1750, aproximadamente 110 mil pessoas foram torturadas, sob a acusação de bruxaria, sendo que 40 mil a 60 mil delas foram executadas. Este fato cruel certamente não é trivial”. (RUSSELL; ALEXANDER, 2008, p. 13). 

Além das execuções realizadas na Europa, houve execuções realizadas nas Américas através da Inquisição Portuguesa e a Inquisição Espanhola, mas também promovida por autoridades civis e locais, como o infame caso das Bruxas de Salém, ocorrido na comunidade de Salém, no estado de Massachusetts, em 1692 e 1693, época pela qual algumas mulheres de diferentes faixas etárias, sendo algumas adolescentes e outras idosas, foram acusadas de bruxaria e chegaram a serem executadas. Embora não tenha sido nem o primeiro e último caso de execução de bruxas ocorrido nas Américas, tornou-se o mais famoso na história deste continente, por ter em poucos meses condenado várias supostas bruxas. 


“Fala-se de “caça às bruxas ou feiticeiras”, mas não de “caça aos bruxos”. Voltaire já havia registrado a desproporção, a história, o nome e o destino lamentável de grandes figuras de feiticeiras – Circe, Hécate, Medéia, Joana d’Arc, La Voisin, Tituba, Corriveau – desde a Antiguidade até hoje. Todas eram mulheres, franca maioria entre as vítimas da “caça”. Para um feiticeiro, nove feiticeiras, triste privilégio, que se explica por muitas razões. A primeira, de ordem biológica, determina que a mulher, mais sensível a diversas influências, mais infeliz do que o homem, nos lares camponeses dos séculos passados sofreu maiores inquietações, penas, dramas e tumultuada sexualidade”. (HANCIAU, 2009, p. 82).


Gravura medieval retratando a execução de bruxas na fogueira, 1447. 
De fato a maioria dos acusados e condenados eram mulheres, pouquíssimos homens chegaram a ser condenados pelo crime de bruxaria. Além dessa questão é importante salientar que as inquisições não foram as responsáveis apenas pela caça às bruxas. No século XVI quando adentra-se o auge das caçadas, as inquisições só existiam em três países: Portugal, Espanha e Itália (embora que a Itália não fosse um país unificado, mas um conjunto de Estados). A França, a Suíça e a Alemanha (Sacro Império Romano Germânico), haviam recebido a inquisição episcopal no século XIV e XV, mas depois ela deixou de ir lá.

Não obstante, países protestantes como Inglaterra, Irlanda, Escócia e Alemanha promoveram através das igrejas reformadas sua própria caça às bruxas. Além disso, é preciso salientar que não foram apenas as autoridades eclesiásticas que promoviam tais perseguições, autoridades civis também fizeram isso, como no caso do Sacro Império (Alemanha), no qual em 1532, o imperador Carlos V aprovou o novo código penal do país, nomeado Constitutio Criminalis Carolina, e dentre as mudanças do novo código penal, estava o estabelecimento que a bruxaria passava a ser não apenas uma heresia, mas um crime civil, o qual atentaria contra a ordem pública e a segurança dos cidadãos. 


Além das autoridades civis e eclesiásticas, a própria população em alguns casos iniciava as perseguições e faziam "justiça com as próprias mãos". Neste caso as medidas tomadas pela população revoltada eram piores do que das autoridades, pois as autoridades tinham que abrir um inquérito e iniciar o julgamento, o qual poderia levar dias, semanas ou até mesmo um mês ou mais. 


Além disso, é preciso assinalar que nem todas as mulheres acusadas de bruxaria chegavam a ser condenadas e executadas, algumas eram inocentadas ou tinham a pena abrandada, não necessitando serem executadas. Em muitos casos quando as acusações chegavam aos ouvidos das autoridades civis ou das igrejas, partia geralmente de pessoas que possuíam alguma inimizade ou apatia com alguma mulher. 


"Todas as pequenas querelas, todas as tagarelices de aldeia podem servir de base para denúncias, e para testemunhos acabrunhantes como os que se seguem: a aparência pouco atraente e a vestimenta do acusado, as extravagâncias do comportamento, assim como o eco ensurdecedor dos dramas conjugais, e sobretudo as desgraças as mais peonas, epizootias que dizima os estábulos e os chiqueiros, granizo sobre as vinhas, cereais enferrujados e derrubados, etc". (MANDROU, 1979, p. 80). 


Sendo assim, entre os séculos XV e XVII os quais a histeria da bruxaria esteve em seu auge, parteiras, curandeiras, qualquer mulher que soubesse mexer com plantas medicinais, eram vistas com desconfiança e as vezes chegavam a serem acusadas de praticarem bruxaria. Mulheres feias e mal vestidas, sujas, esquisitas, também eram acusadas de bruxaria. Embora o estereótipo da bruxa velha não tenha se difundido na Europa moderna, em certos locais da Inglaterra, Irlanda, Escócia e Alemanha, Rússia, ele existia. Por exemplo, na Inglaterra existe o termo hag (hexe em alemão), o qual passou a designar as bruxas velhas na Idade Moderna. 



Ilustração para o conto de João e Maria. Nessa história surgida por volta da Idade Moderna, o estereótipo da bruxa velha, feia, estranha e maléfica já estava presente. 
Por outro lado, havia quem dissesse que tal mulher "olhou feio" para alguém, "olhou para seu marido", pois "mal olhado" nos filhos, na casa, no gado, na plantação. As vezes dizia-se que quando uma pessoa subitamente adoecesse era culpa de alguma bruxa. Se alguma mulher fosse vista andando sozinha de noite, era suspeita de que talvez estivesse indo ao sabá ou praticar sua "magia negra". Todas essas crendices reforçavam a se manter um clima de desconfiança nas comunidades, aldeias, vilas e cidades. Logo, boatos começavam a surgir e estes chegavam aos ouvidos das autoridades. Então o governo ou as igrejas decidiam agir. 

No Martelo das Bruxas (1486), Kramer e Sprenger elencaram alguns motivos e condições comuns pelos quais as bruxas eram denunciadas:

  1. As bruxas conseguem viajar de um local para o outro com o uso da magia (normalmente para ir ao sabá);
  2. Tem relações sexuais com demônios;
  3. Profanam os sacramentos da Igreja;
  4. Conseguem tornar pessoas e animais inférteis;
  5. Arrancar o pênis dos homens, ou deixá-lo impotente;
  6. Transformar os homens e animais;
  7. Matar crianças e usá-las em ritos diabólicos; 
  8. Causar doenças ou a morte do gado e das plantações;
  9. Causar tempestades;
  10. Causar doenças em pessoas, animais e plantas. 
Percebe-se que parte das supostas condições que Kramer e Sprenger atribuíram para se identificar uma bruxa, estão relacionadas a questões do mundo rural como causar danos as plantações e ao gado; sequestrar crianças, infringir doenças as pessoas, provocar tempestades. De fato muitas das supostas bruxas que foram perseguidas advieram do meio rural, sendo poucas as mulheres que viviam na zona urbana a serem perseguidas, embora houve casos de que em vilas ocorressem isso. 

Não obstante, o processo para se julgar uma bruxa não era algo rápido, embora a população pressionasse as vezes os juízes, mas as vezes ele cobravam uma determinada quantia para "agilizar" o processo, pois quando uma mulher era denunciada por bruxaria, dava-se início ao procedimento de apuração dos fatos. Em termos básicos um processo de para julgar uma mulher pelo crime de bruxaria seguia as seguintes etapas:
  • Depoimento do acusador ou acusadores;
  • Depoimento de testemunhas;
  • Depoimento da acusada; 
  • Exame médico para se detectar a "marca do demônio", pois em alguns lugares acreditava-se que as bruxas receberiam uma marca, geralmente a qual se pareceria com uma cicatriz. As formas de se atestar se tal marca era a dita "marca do demônio", era se enfiando uma agulha na região ou em torno dela, se não sangrasse e a pessoa não sentisse dor, era prova que aquela era a marca demoníaca (MANDROU, 1979, p. 85-84);
  • Interrogatório da acusada o qual poderia ser feita através de ordálios, como amarrar a mulher pelas mãos e pernas e jogá-la num rio ou lago. Se a mulher flutuasse significava que era uma bruxa (MANDROU, 1979, p. 85-86). No entanto, o caso mais comum de interrogatório era através de tortura e ameaças; 
  • Análise dos depoimentos, provas e do interrogatório. Se fosse necessário mais interrogatórios seriam realizados até a acusada confessasse seu crime.
Interrogatório de uma bruxa. T. H. Matteson, 1853. Nessa pintura o autor retratou o exame médico, no qual uma senhora aponta para as costas da acusada de bruxaria, tentando mostrar a suposta "marca do demônio". 
Caso a confissão fosse dada, o juiz decretaria a sentença. Todavia, se ele percebesse que a acusada não confessava, mas falava a verdade, e que as testemunhas e depoimentos delas e dos acusadores eram pouco dignos de confiança, o juiz poderia ordenar a soltura da acusada, ou até mesmo bani-la da comunidade, mas evitando matá-la. Todavia, caso a bruxa realmente fosse executada, seus bens seriam confiscados para pagar as despesas do julgamento e se a pessoa fosse de determinada condição financeira, o restante dos bens permaneceria com a família ou seriam vendidos para outros, pois havia a crença que filho e filha de bruxa e bruxo (ou de feiticeira e feiticeiro), estava predisposto a seguir os caminhos da mãe ou do pai, logo, eram banidos e sem direito a seus pertences (MANDROU, 1979, p. 95-96)


A ideia de que toda bruxa era queimada, isso não é verdade, dependendo do local as bruxas eram enforcadas, garroteadas, estranguladas, afogadas, decapitadas, etc. E havia casos em que elas eram enforcadas primeiro, para depois serem queimadas. Alguns juízes e inquisidores achavam que a pena de queimar os condenados ainda vivos a fogueira, fosse muito cruel, então preferiam matá-lo por enforcamento ou garroteamento e depois jogar o corpo as chamas. 


Considerações finais: 

Se retomarmos as perguntas iniciais, talvez o leitor possa ter chegado a novas conclusões ou interpretações sobre elas. Magia, feitiçaria e bruxaria realmente existiram e existem. As provas histórico-religiosas foram apresentadas ao longo deste texto, no entanto, quem quiser provas científicas, essas não existem, pois para a ciência, a magia é crendice, superstição ou charlatanice. 


Vimos também alguns conceitos e definições para magia e pensamento mágico, além de vários tipos de magia e suas utilidades. Embora existam várias formas de se praticar magia, essencialmente é necessário crer que ela funcione. Mesmo que você seja uma pessoa que diga que não acredita em magia, mas se acreditar em crendice, significa que você supõe a veracidade do pensamento mágico. Quem toma banho de sal grosso, para espantar as energias negativas; usar amuleto da sorte, ou alguma peça de roupa que você acredita lhe dar sorte, isso é pensamento mágico. Se você acredita em mal olhado, em vidência, astrologia, ritos de purificação, isso também é pensamento mágico. 


Acerca da feitiçaria vimos que a imagem da feiticeira bela e perigosa não é uma invenção recente, embora que as feiticeiras de hoje tornaram-se além de belas, mulheres sensuais. Além disso, esse estereótipo da mulher fatal associado a alguma feiticeiras acabou passando para o imaginário moderno sobre as bruxas, pois nem todo mundo concebia bruxa como sendo uma mulher velha ou feia; muitas das mulheres que foram acusadas de bruxaria eram jovens entre seus 15 e 30 anos. E até mesmo houve casos de crianças serem acusadas de bruxaria por serem filhos de bruxas ou de bruxos. 


A feitiçaria conviveu ao lado das crenças pagãs por vários séculos sendo a partir do século XIV que ela começou a ser demonizada. As histerias provocadas pelo suposto complô de leprosos, judeus e muçulmanos, e os surtos de peste negra, contribuíram para que a feitiçaria passasse cada vez mais ser vista com suspeita e ódio. 


Essencialmente bruxaria e feitiçaria são praticas mágicas, mas a diferença no conceito da Idade Moderna, era que a feiticeira e o feiticeiro não faziam um pacto com o Diabo, sendo que os dois estariam ligados ao culto de deuses pagãos; já a bruxa e o bruxo faziam um pacto com o Diabo. O problema é que no século XVI e XVII, feitiçaria e bruxaria eram sinônimos, inclusive termos para se referir a feiticeira tornaram-se sinônimo para bruxa, logo, essa separação inicial, foi suprimida. As antigas deusas pagãs como Ártemis (Diana), Freyja, Morrigan, Epona, foram demonizadas na bruxaria. 


No que se refere a bruxaria como sendo algo do Diabo, de fato a concepção medieval-moderna sobre bruxaria instituiu que ela fosse fruto do pacto entre a bruxa e bruxo com Satanás. Todavia, hoje a bruxaria não possui nenhuma ligação com o Anjo Caído, inclusive o Satanismo consiste numa religião que não possui ligação com o conceito de bruxaria visto na Idade Moderna. Embora alguns satanistas aleguem ter alguma herança cultural. 


Em países das Américas como Estados Unidos, México, Colômbia, Venezuela e Argentina, a bruxaria existe e é reconhecida como uma forma de crença religiosa. A Wicca que consiste numa religião neopagã, possui tradições que remontam a feitiçaria medieval e moderna, embora que seus adeptos em alguns casos se considerem bruxas e bruxos, e não feiticeiras e feiticeiros. Wicca e Bruxaria Moderna estão associadas, embora sejam religiões com crenças distintas. 


A caça às bruxas foi algo real. Talvez tenha sido uma das formas mais cruéis de misoginia. Mas além da caça, a própria doutrina teológica que embasava e justificava a bruxaria também consistia num pensamento que via a mulher sob várias formas, como um ser inferior. Não obstante, o sabá visivelmente uma invenção religiosa, era em vários sentidos o oposto da missa católica. Basicamente tudo que era considerado imoral e profano ocorria no sabá. Não obstante a ideia de que o sabá tenha sobrevivido até os dias de hoje é errônea. O que existem são ritos que tentam imitá-lo, embora ele tenha sido uma invenção. Por outro lado, as pessoas tendem a confundir ritos neopagãos ou mágicos, como estando relacionado ao sabá.


Por outro lado, embora a bruxaria de fato nunca foi um pacto com o Diabo e o sabá não tenha existido, ainda hoje prevalece o preconceito em considerar que tais condições foram reais. Esse preconceito se mantém. Chamar uma mulher de bruxa consiste num insulto. Comparar "magia negra" com bruxaria, mesmo a bruxaria de hoje em dia não tendo necessariamente desígnios maléficos, ainda assim, é visto como sendo algo voltado para a maldade. Um fato próprio do Brasil diz respeito a algumas pessoas alegarem que "macumba" seja bruxaria. E há quem compare as religiões afro-brasileiras como a Umbanda, Candomblé e Jurema como sendo seitas diabólicas e associadas a bruxaria. E em alguns casos há mulheres que foram lixadas, por supostamente serem bruxas. Ora se muitos dizem que não creem em magia, como decidem perseguir e até mesmo agredir uma mulher acusada de bruxaria em pleno século XXI? 


Por fim podemos concluir que embora o fenômeno da bruxaria ainda hoje está vivo, mesmo que seja através da literatura de contos de fadas, de filmes de terror, de músicas ou videogames; ou até mesmo em religiões contemporâneas como a Wicca e a Bruxaria moderna, ou em religiões erroneamente confundidas, a bruxa, a feiticeira a magia, são algo que mesmo passados séculos, ainda nos fascinam, nos intrigam e nos assustam. 


NOTA: Odisseu passou alguns anos na ilha de Circe. Neste tempo eles tiveram três filhos: Ágrio, Latino e Telégono (BRANDÃO, 1986, p. 160). 
NOTA 2: Carlo Ginzburg na parte II, capítulo 3 de História Noturna (1989), dedicou o capítulo a abordar as histórias que envolviam lutas entre bruxas, lobisomens, demônios e vampiros. Tais histórias foram mais comuns no leste europeu. O curioso é que nos combates entre lobisomens e bruxas, os lobisomens eram bons. Por sua vez, no combate entre bruxos e vampiros, os bruxos (pois apenas homens participavam) eram os bons. Tais histórias foram bastante populares entre os séculos XVI e XVIII.
NOTA 3: No Brasil, a modelo Joana Prado nos anos 90, ficou nacionalmente conhecida como símbolo sexual devido a sua personagem Feiticeira
NOTA 4: O seriado A Feiticeira (Bewitched), foi uma série americana bastante popular, sendo exibida de 1964 a 1972. 
NOTA 5: Nos contos de fadas, não são apenas as bruxas que são mulheres más, as feiticeiras também se tornaram más. Entretanto, nas histórias em quadrinhos temos feiticeiras que são vilãs e outras que são heroínas.
NOTA 6: A série Harry Potter, escrita por J.K. Rowling e publicada a primeira vez em 1997, foi uma das formas para se desconstruir a ideia de que a bruxaria fosse algo ruim e maléfico. Rowling mostra em seu livro que há bruxas e bruxos bons, e que eles podem ser heróis.
NOTA 7: O Dia das Bruxas como é conhecido o Halloween nos países de língua portuguesa e espanhola, na verdade não possuía ligações com a bruxaria, foi um equívoco cometido, pois no Halloween crenças de origem celta, ainda eram celebradas na Idade Média. Com o advento da bruxaria na modernidade, o Halloween foi considerado uma festa das bruxas, algo que até mesmo chegou a ser comparado ao sabá. 
NOTA 8: O erudito Jean Wier (1515-1588), publicou o livro De Praestigiis Daemonum et Incantationibus ac Venificiis (1563). Wier era médico e havia sido discípulo do erudito, teólogo e mago Agrippa (1486-1535). Por tal viés, Jean Wier enxergava a bruxaria de outra maneira. Para ele a magia não seria algo ruim, mas sim as intenções que o praticante de magia possuía, era o que a definia ser ruim. Todavia, ele reconhecia que a bruxaria era algo diabólico, mas como médico ele acreditava que haveria uma forma de curar as bruxas, pois para seu pensamento elas estariam "doentes". A obra de Wier foi duramente combatida pelo jurista Jean Bodin (1530-1596), importante estudioso da época. Bodin considerava a teoria de Wier errônea, e defendia de forma conservadora o combate a bruxaria e a execução delas. Ele redigiu sua resposta a Jean Wier, escrevendo o livro De la démonomie des sorciers (1580). 
NOTA 9: Em O Corcunda de Notre Dame (1831), escritor por Victor Hugo. A história se passa em Paris do ano de 1482. A cigana Esmeralda é condenada a morte por ser uma bruxa. 
NOTA 10: Nas Mil e Uma Noites, algumas feiticeiras acabam sendo mortas ou transformadas em animais, como cadelas e éguas, como forma de punição por terem sido más. 
NOTA 11: O filme A Bruxa (The Witch) de 2016, traz vários elementos relacionados ao imaginário da bruxaria. A trama é baseada num conto popular da Nova Inglaterra, Estados Unidos, datado do século XVII, antecedendo o caso das Bruxas de Salém. 
NOTA 12: Salém é uma série de televisão estadunidense que estreou em 2014 e irá para sua terceira temporada. O seriado narra de forma ficcional os eventos que ficaram conhecidos como as Bruxas de Salém (1692-1693). 
NOTA 13: O seriado American Horror Story, em sua terceira temporada (2014-2015) abordou o tema da bruxaria e do sabá. A Temporada foi intitulada Coven
NOTA 14: 

Referências Bibliográficas: 

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Links relacionados:

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