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Leandro Vilar

sábado, 31 de outubro de 2015

Uma breve história sobre as origens do Halloween

Celebrado no dia 31 de outubro, o Halloween hoje é uma popular festa em países como Estados Unidos, Canadá, Reino Unido e Irlanda. Embora se ache manifestações na Alemanha, Espanha, Brasil e em alguns outros países. Todavia, curiosamente o Halloween, mais conhecido nos países de língua portuguesa e espanhola com os nomes de "Dia das Bruxas" e "Dia de las Brujas", na verdade pouco tem haver com bruxas. Tal festejo como será visto adiante, esteve relacionado com cultos agrícolas, passando para o culto aos mortos e antepassados. 

As origens celtas:

Um dos motivos para que os festejos do Halloween sejam principalmente celebrados no Reino Unido e na Irlanda, e por sua vez nos EUA e no Canadá, se deve ao fato de que uma das origens dessa festividade antiga advenha da cultura celta bretã. Sendo assim, as tribos celtas bretãs foram as principais tribos que colonizaram o arquipélago bretão, neste caso, as atuais ilhas da Grã-Bretanha e da Irlanda, assim como, parte das ilhas menores. 

Os historiadores que defendem que as origens do Halloween venham da cultura celta, apontam para o festival de Samhain (ou Samani, Samanios etc.), algo como "Final do verão", como sendo o principal rito o qual teria influenciado a origem do Halloween na Idade Média. Neste caso é preciso conhecer alguns aspectos do Samhain o qual por si só é bem distinto da ideia que hoje temos de Halloween. 

De acordo com o Calendário Coligny, um calendário celta datado por volta do século II a.C, descoberto em Coligny na França; nesse calendário que está em fragmentos, percebe-se duas datas importantes para os celtas: o começo do verão (Beltaine), celebrado em 1 de maio, e o fim do verão (Samhain), celebrado em 1 de novembro. Neste caso, o festival de Samhain marcava o final do verão, mas também o começo do inverno. O festival era celebrado no dia 1 de novembro, embora os preparativos começassem no dia 31 de outubro (KONDRATIEV, 1998). É preciso lembrar que tais datas foram adaptadas para o calendário gregoriano, o calendário habitualmente usado em grande parte do mundo, pois o calendário celta era lunar, logo, possuía menos de 365 dias. 

Se o Samhain era o festival realizado para marcar a transição do verão para o inverno, pois os celtas não consideravam a primavera e o outono como estações independentes, mas como estações conjuntas ao verão e inverno, quais eram as formas de ritos praticadas para se celebrar essa transição? 


Pintura retratando o festejo celta do Samhain. 
O Samhain era um festejo no qual os celtas celebravam o fim das colheitas, promovendo banquetes e a distribuição de alimentos, assim como, acendendo fogueiras durante o dia e a noite, onde ao redor se comia, bebia, conversava, dançava e cantava. Alguns estudiosos consideram tal festejo como uma espécie de "Ano Novo", pois na concepção celta, o ano começaria no inverno e terminaria no verão. No entanto, o Samhain também estaria associado a outra prática religiosa: a relação ao culto dos mortos.

De acordo com as crenças celtas, a época do Samhain era um período propício para que o Mundo dos Vivos e o Mundo dos Mortos se conectassem, e assim, os mortos poderiam vir em forma de "fantasmas" e visitar os vivos. Daí uma característica daquele rito, deixar no lado de fora das casas, durante à noite, alimentos e vinho, pois acreditava-se que era durante a noite que os mortos passeavam, e assim deixando comida e vinho para eles, os mortos se contentariam com tais oferendas e talvez não viessem a causar algum mal aos vivos. 

Alguns autores chegaram a sugerir que durante o Samhain, sacrifícios humanos seriam realizados. Isso talvez não tenha sido incomum, pois se sabe que os celtas realizavam sacrifícios humanos. Sendo assim, de acordo com Rogers (2002, p. 17) durante o Samhain uma criança seria sacrificada aos deuses, embora não se saiba exatamente que deus seria esse. O sacrifício humano era considerado a maior forma de se ofertar uma oferenda aos deuses entre alguns povos antigos. Para nós pode parecer sombrio, macabro e abominável, mas na concepção deles, ofertar uma criança seria como uma forma de agradecer pelas boas colheitas e pedir aos deuses que o inverno não fosse implacável. 

Powell (1974, p. 145) salienta que durante a celebração do Samhain sacrificavam-se animais, embora ele não mencione se sacrifícios de pessoas também seriam feitos. Além disso, ele chama a atenção para a celebração do casamento simbólico entre o deus tribal e a deusa Morrigan, chamada de "Rainha dos Demônios" entre outros epítetos, pois Morrigan era uma deusa ou divindade com vários atributos. Aqui se percebem características da religião celta a qual era bastante animista e dualista. Neste caso, os celtas acreditavam que toda a tribo possuía um deus guardião, as vezes chamados pelo nome genérico de Dagda, e durante o Samhain esse deus tribal deveria casar-se simbolicamente com a deusa Morrigan, no intuito de celebrar a união entre os vivos e os mortos, entre o natural e o sobrenatural. 

Assim, aqui percebemos algumas características do Samhain: era uma festividade celebrada em uma data importante para os celtas, que marcava o final e começo de um novo ano; assim como, também possuía características de ritos agrícolas e de ritos aos mortos. Logo, se percebe que não havia nenhuma bruxa envolvida nesses festejos, mas o motivo da associação a bruxaria foi algo que surgiu posteriormente, o qual será comentado adiante.

O imaginário cristão medieval sobre os mortos: 

A ideia de que em determinados momentos do ano os mortos estariam mais propensos a atravessarem as barreiras entre o seu mundo e o Mundo dos Vivos, não foi uma crença particular aos celtas, vários povos tinham concepções de que o mundo dos vivos e dos mortos não estivesse tão distante assim. Enquanto alguns chegaram a defender que a crença de que os mortos voltariam a se comunicar com os vivos ou até mesmo a se materializar neste plano era coisa de pagão, sendo crendice e superstição de povos atrasados, os próprios cristãos, judeus e muçulmanos acreditavam (e alguns acreditam) nisso também. 

Logo, ao longo da Idade Média, o cristianismo medieval foi adepto de tais crenças. E para se entender como o Samhain foi absorvido pelo cristianismo é preciso entender um pouco como eram as crenças medievais sobre os vivos e os mortos.

"Os mortos têm apenas a existência que os vivos imaginam para eles. Diferentemente segundo sua cultura, suas crenças, sua época, os homens atribuem aos mortos uma vida no além, descrevem os lugares de sua morada e assim representam o que esperam para si próprios. A esse título, o imaginário da morte e da evolução dos mortos no além constitui universalmente uma parte essencial das crenças religiosas das sociedades. Ele adquire formas diversas mas muito amplamente atestadas, entre as quais as visões e os sonhos ocupam sempre um lugar de primeiro plano. Aqui é reconhecida a capacidade de certos homens, como os xamãs siberianos, de viajar para o além em sonho ou em estado de transe. Alhures, seres de exceção, como Cristo ou, depois dele, os santos do cristianismo, teriam tido o poder de ressuscitar os mortos. Universalmente, está presente também o que se costuma chamar de "crença nos fantasmas"". (LE GOFF, 1999, p. 14). 


"Na sociedade medieval, assim como em muitas outras sociedades tradicionais, a forma particular de existência que se atribui aos defuntos depende do transcurso do "rito de passagem" da morte: os mortos voltam, de preferência, quando os ritos dos funerais e do luto não puderam efetuar-se normalmente, por exemplo, se o corpo de um afogado desapareceu e não pôde ser sepultado segundo o costume, ou ainda se um assassinato, um suicídio, a morte de uma mulher no parto, o nascimento de uma criança natimorta apresentam para a comunidade dos vivos o perigo de uma mácula. Esses mortos são geralmente considerados maléficos. Essa dimensão antropológica e universal do retorno dos mortos está presente, entre outras, na tradição ocidental, desde a Antiguidade, na Idade Média e até no folclore contemporâneo". (LE GOFF, 1999, p. 16).

As pessoas da Europa medieval como em outras épocas e lugares, temiam a assombração do mortos, mas também os respeitavam. Se hoje há gente que tem medo de passar diante de um cemitério, e muito menos iria a este durante a meia-noite, por temer ver uma alma penada, na Idade Média isso não era diferente, embora que nem todo mundo acreditasse em fantasmas ou possuísse medo deles. 

Na Idade Média os cristãos acreditavam que após morrerem suas almas iriam a três lugares: o Paraíso, o Purgatório (isso a partir do século XII, pois antes não havia ideia de Purgatório) e o Inferno. Todavia, em alguns casos, a alma mesmo tendo partido, ela poderia regressar ao mundo humano para pedir socorro, dizer algo ou assombrar. O historiador Jacques Le Goff na citação acima mencionou alguns casos nos quais as almas poderiam ficar presas entre a vida e a morte, mas além destes casos havia vários outros, variando de região para região e de acordo com a época. 

Não obstante, havia também a crença de que os mortos poderiam voltar através não apenas como fantasmas, mas como "zumbis" (embora que o zumbi daquele tempo seja diferente da visão atual que temos dos mortos-vivos, pois o zumbi necessariamente não estaria deteriorado e perdido o raciocínio), no caso de serem convocados por necromantes, ou voltarem como sugadores de sangue, como no caso dos vampiros. Embora que necromantes e vampiros não foram algo comum no medievo, sendo no final desse período que suas lendas começaram a se difundir, mas de qualquer forma, alguns cristãos medievais tinham medo de sair à noite pois temiam esses seres e outros monstros pudessem acometê-los. 


Gravura medieval retratando quatro mortos com instrumentos musicais. No imaginário medieval, não era incomum encontrar histórias de mortos em dadas épocas do ano, perambulando por aí e fazendo coisas de vivos, como tocar música. 
No entanto, os mortos nem sempre eram vistos como seres maléficos que saíam de seus túmulos para ir perturbar os vivos, a Igreja acabou difundido a crença de que alguns desses mortos eram pessoas que retornavam do Além para pedir ajuda, para que assim pudessem sair do Purgatório e prosseguirem para o Paraíso. 

"Doravante todo cristão podia esperar ser salvo, mas com a condição de sofrer depois da morte castigos reparadores cuja duração e intensidade dependiam, de um lado, de seus méritos pessoais (suas boas e más ações e seu arrependimento no momento da morte) e, de outro lado, dos sufrágios (missas, preces e esmolas) de que seus parentes e amigos lançavam mão para sua salvação. Na falta deles, o morto podia aparecer a um parente ou amigo para reclamar-lhe os sufrágios de que tinha a maior necessidade e pedir-lhe que cumprisse em seu lugar as obras pias necessárias à sua salvação. Preocupada em afiançar e organizar a solidariedade dos vivos e dos mortos, a Igreja deu então ampla repercussão aos relatos de fantasmas. Estes, longe de ser apenas esses mortos maléficos que se encontram em todas as culturas em razão das perturbações ou da ausência fortuita do rito de passagem dos funerais. longe de ser apenas produto de velhas crenças pagãs, exprimiram mais amplamente. por seu retorno nos fantasmas, nos medos e nos relatos dos vivos, as múltiplas disfunções possíveis da boa morte cristã". (LE GOFF, 1999, p. 17-18). 

Logo, para poder ajudar os mortos em sua trajetória para passar pelo Purgatório ou ir diretamente para o Paraíso (isso dependeria da integridade e da índole do indivíduo(a) em vida), a Igreja criou uma liturgia específica no intuito de ajudá-loas, mas também de promover a lembrança aos mortos, algo que se assemelha ao culto dos antepassados vistos em várias outras religiões. 


Na Idade Média após o século XII, surgiu a crença de que se deveria orar aos mortos para ajudá-los a saírem do Purgatório e ascenderem ao Paraíso. No caso daqueles que haviam ido ao Inferno, só Cristo ou Deus poderiam salvá-los.
Assim, ainda hoje a Igreja Católica realiza a missa do sétimo dia, a missa de trinta dias e a missa de um ano, como forma de lembrar a partida do morto. Além de ter um dia específico para se recordar dos mortos, o chamado Dia de Finados, celebrado em 2 de novembro, do qual voltarei a falar adiante. 

No entanto, embora a Igreja tenha instituído essas medidas litúrgicas para se celebrar a memória dos antepassados, não significa que ela tolerasse algumas práticas associadas com a morte. Por exemplo, convocar os mortos, falar com eles ou ouvi-los, começou a ser considerado bruxaria e feitiçaria, pois o cristão de bem no máximo poderia ver um morto, mas deveria evitar conversar com ele, e muito menos atender seus pedidos. Tal noção viria a contribuir para um retorno da imagem negativa do Halloween. 

O Dia de Todos os Santos:

Ainda nos primeiros séculos do Cristianismo, algumas comunidades cristãs prestavam homenagens aos mártires da sua religião, os saudando por mesmo perante o perigo e a ameaça de morte, não terem abjurado de sua fé. Por outro lado, também os saudavam pela dedicação que tiveram em propagar a palavra do Senhor e lutar para defender seus irmãos de fé; assim começou a surgir a celebração aos mártires, todavia, foi apenas no século VII, com o papa Bonifácio IV (608-615), o qual converteu o templo romano do Panteão, em igreja dedicada a Virgem Maria e os santos mártires, passando a atribuir a data de 13 de maio, como data litúrgica ao culto de Todos os Santos. 


O Panteão em Roma. Antigo templo romano dedicado a todos os deuses romanos, foi convertido em igreja no século VII, desde então é a Igreja de Santa Maria e os Mártires. 
Todavia, um século depois, o papa Gregório III (731-741) durante seu pontificado, alterou a data do Dia de Todos os Santos a retirando do dia 13 de maio, e passando-a para o dia 1 de novembro. Os motivos pelos quais o papa Gregório III mudou a data de celebração de Todos os Santos não são totalmente conhecidos, mas os historiadores do tema apontam que tal mudança deve ter sido influenciada pela celebração do Samhain, que era feita nessa mesma data. 

É preciso pensar que quando o cristianismo chegava a uma terra, não significava que de um dia para o outro, ou nos próximos meses e anos, sua população teria abandonado completamente suas antigas crenças. As vezes alguns ritos perduravam por séculos, mesmo numa comunidade já cristianizada. No caso do arquipélago bretão, o cristianismo chegou ao que hoje é a Inglaterra, ainda na época do Império Romano, todavia, foi a partir do século VI em diante que os missionários começaram a difundi-lo para a Escócia, País de Gales e a Irlanda. 

Mesmo com essa difusão, conversão e criação de igrejas, mosteiros e capelas, parte da população ainda continuava pagã, assim, os ritos celtas continuaram a coexistir ao lado dos ritos cristãos, e mesmo os celtas cristãos não abandonaram totalmente suas antigas crenças. No século VIII, o Samhain ainda era celebrado naquelas ilhas. Assim, o papa teria mudado a data para 1 de novembro como forma de inserir o rito de Todos os Santos no lugar do rito do Samhain, isso não foi nem a primeira e última vez que a Igreja alterou datas e adaptou crenças pagãs ao cristianismo; um dos maiores exemplos é a data do Natal

Na Bíblia não informa a data de aniversário de Jesus, todavia, no século IV alguns papas começaram a sugerir que o Natal deveria ocorrer no dia 25 de dezembro, pois era um período importante no calendário romano e de outros povos. Os romanos comemoravam por essa época as Saturnálias, festas dedicadas ao deus Saturno; os mitraístas, seguidores do Mitraísmo, celebravam o nascimento de Mitra no dia 25 de dezembro; neste caso, o mitraísmo era uma religião popular entre a elite romana, sem contar a versão derivada, o culto ao Sol Invictus, que era popular entre os militares, os quais também celebravam o nascimento do Sol Invictus no dia 25 de dezembro. O imperador Constantino, o Grande responsável por participar das principais reuniões para estabelecer o dogma cristão no século IV, foi antes de se converter ao cristianismo, um adorador do Sol Invictus e talvez do mitraísmo. 

Assim, retornando ao caso do Samhain e do dia de Todos os Santos, fica a hipótese de que o papa Gregório III querendo impedir que os celtas cristãos e os celtas não cristianizados ainda continuassem a manter suas práticas antigas, acabassem por optar em escolher o culto aos santos. Mas o que se celebra no dia de Todos os Santos?

De acordo com o site Catolicismo Romano, no Dia de Todos os Santos celebra-se:

"Segundo o ensinamento da Igreja, a intenção catequética desta celebração que tem lugar todo o mundo, ressalta o chamamento de Cristo a cada pessoa para o seguir e ser santo, à imagem de Deus, a imagem em que foi originalmente criada e para a qual deve continuar a caminhar em amor. Isto não só faz ver que existem santos vivos (não apenas os do passado) e que cada pessoa pode ser, mas sobretudo faz entender que são inúmeros potenciais santos que não são conhecidos, mas que da mesma forma que os canonizados igualmente veem Deus face a face, têm plena felicidade e intercedem por nós. O papa João Paulo II foi um grande impulsionador da "vocação universal à santidade", tema renovado com grande ênfase no Segundo Concílio do Vaticano".

Nota-se aqui que a ideia no século VIII era transferir o foco da atenção dos cristãos celtas para se aprofundarem ainda mais na devoção da sua nova fé. Se antes no Samhain celebrava-se os mortos no geral, agora com o dia de Todos os Santos, os mortos celebrados eram os santos e mártires conhecidos e desconhecidos. A diferença é que você passaria a celebrar homens e mulheres que foram cristãos devotos, os quais serviriam de modelo para sua boa conduta, assim como, inspiração de fé. 


Todos os Santos. Autor: Fra Angelico. Ano: 1423-1424.
Todavia, a medida do papa Gregório III não resultou em mudanças imediatas. Os celtas cristãos passaram a celebrar os santos como mandava a liturgia daquela data, indo as igrejas para assistir a missa, todavia, na véspera desse 1 de novembro, havia alguns que realizavam os antigos ritos do Samhain, e isso deu origem ao Halloween.

A véspera do Dia de Todos os Santos:

No século VIII, no dia 1 de novembro era celebrado como já dito o Dia de Todos os Santos (All Saints Day), todavia, alguns na véspera desse feriado litúrgico continuavam a realizar ritos associados ao Samhain, assim, passou a se chamar o dia 31 de outubro pelo nome de All Hallows Eve (Véspera do Dia de Todos os Santos). A palavra hallow significa venerar, consagrar, mas também é entendida como sinônimo para santo neste contexto. (BONWICK, 1984, p. 87). 

O problema que o venerar e consagrar que aquelas pessoas tinham em mente no século VIII e posteriormente, não dizia respeito aos santos católicos propriamente, mas ainda eram reminiscências das antigas crenças de culto aos mortos e aos ancestrais. Logo, não era incomum as pessoas acenderem fogueiras, realizarem banquetes, cantarem e dançarem e até mesmo deixarem oferendas aos mortos. O fato de hoje no Halloween as pessoas irem pedir comida ou se fazer doces para distribuir é algo que tem haver com essas práticas antigas. 

Sendo assim, os cristãos celtas ainda continuavam a manter antigas práticas pagãs, logo, qual foi a medida que a Igreja tomou para combater isso? Quase um século depois, o papa Gregório IV (828-844) instituiu como sendo rito universal do cristianismo, a celebração de Todos os Santos, após dedicar a Basílica de São Pedro, a todos os santos. No entanto, a medida do papa foi importante, pois antes disso o feriado não era regularmente celebrado. Após seu decreto todos os clérigos teriam obrigação de realizá-lo. Mas além dessa mudança, o papa também na prerrogativa de combater as práticas pagãs realizadas na véspera, instituiu uma vigília.

Com a instituição da vigília vespertina ou da madrugada, o intuito era manter os cristãos ocupados na vigília, onde eles realizariam orações e participariam de uma procissão pelas fazendas, vilas, feudos e cidades, indo em direção a igreja ou igrejas para assistir a primeira missa do dia 1 de novembro (DOUGLAS, 1948, p. 741). Como as principais celebrações do All Hallows Eve eram feitas durante à noite, os cristãos estariam ocupados com a vigília, logo não poderiam sair desta para participar daquelas práticas pagãs, ou pelo menos se pensava assim, mas na prática, algumas pessoas conseguiam se ausentar por algum momento e realizar os antigos ritos.

O Hallontide da Idade Moderna: 

No século XV, se conhece o termo Allhollawtide, posteriormente chamado Hallontide ou Hallowtide, que segundo Rogers (2002, p. 24) seria um termo anterior a Halloween, mas já apresentando-se como uma contração do termo All Hallows Eve. De acordo com Rogers, o Hallontide era um festejo celebrado do dia 31 de outubro ao dia 2 de novembro, percebe-se que as atividades do dia 31 eram estendidas por mais dois dias, o que revela a popularidade desse festejo. Neste caso o Hallontide na Idade Moderna, matinha algumas características interessantes, ainda influenciadas pela tentativa medieval de expurgar a influência pagã.

Em uma nova tentativa de combater o paganismo durante o All Hallow Eve, a Igreja no século XIII, instituiu o Dia de Finados (All Souls Day), em 2 de novembro. Ao longo da história do cristianismo percebe-se a manifestação religiosa de se orar aos mortos como comentado anteriormente neste texto, todavia, nunca houve uma data específica para se fazer isso. No século XI alguns papas recomendaram que os mortos fossem lembrados pelo menos uma vez ao ano. Todavia, apenas dois séculos depois é que começou a se instituir um dia específico para isso, e de acordo com os historiadores do tema, a data de 2 de novembro teria sido uma influência advinda do mosteiro beneditino de Cluny, na França; local administrado por São Odilo de Cluny (c. 969-1049) ao longo de 54 anos. São Odilo teria sido o responsável por designar o dia 2 de novembro como data para se prestar homenagem aos mortos. A escolha do dia 2 devia-se como forma de aproveitar o intuito de celebrar os santos e mártires no dia primeiro, e no dia seguinte continuaria-se com essa celebração, mas agora voltada principalmente para os familiares falecidos. 

Embora demorou tempo para se oficializar tal data, isso acabou ocorrendo ainda no medievo. Logo, Quando o Hallontide surge ainda no final da Idade Média, ele estava relacionado não apenas com o dia 31 de outubro, mas também com os dias 1 e 2 de novembro. No entanto, quais seriam as características dessas festividades?

Por exemplo, no Hallontide as pessoas realizavam vigílias, como também acendiam velas e fogueiras, além do fato dos sinos das igrejas tocarem de noite. O fogo, a luz e o badalar dos sinos seriam formas de amedrontar os maus espíritos, pois a crença de que durante aquela época os fantasmas poderiam aparecer ou os mortos poderiam sair de seus túmulos ainda existia em alguns lugares. Outras medidas também observadas eram se fazer uma visita ao cemitério, no qual o padre jogaria água benta e benzeria as lápides no intuito de impedir que os mortos se levantassem; neste caso, as pessoas que o acompanhavam também poderiam deixar flores, água, pão e até leite. Aqui se percebe que mesmo tendo sido cristianizado tal rito, ainda mantinha-se características pagãs como ofertar comida aos mortos (ROGERS, 2002, p. 23-24). 

Pelos séculos XVI e XVII outras práticas do Halloween foram surgindo, embora algumas fossem exclusivas de certas localidades. Por exemplo, os adolescentes usarem máscaras de pano para ir pedir pão, vinho e dinheiro, alegando que aquilo seria ofertado aos mortos ou seria dado a Igreja, embora que na maioria das vezes ficasse com eles mesmos. Em outros casos, homens mascarados aproveitavam para cantar, dançar e declamar poesia ou contar histórias, ver-se aqui reminiscências as práticas celtas do Samhain. No entanto, alguns desses mascarados poderia causar problemas ou confusão agindo de forma travessa, embora que as travessuras só começaram a ser algo habitual no final do século XIX. Na Inglaterra moderna, observava em alguns locais a peculiar prática de que durante o Hallontide, os amigos pediam dinheiro para ajudar um dos amigos que iria casar. (ROGERS, 2002, p. 25). 

Ao longo dos séculos outras práticas foram sendo desenvolvidas e outras foram sendo esquecidas, de qualquer forma, observa-se um sincretismo religioso, mas também uma laicização desse festejo. Pois com o tempo o rito aos mortos foi sendo deixado de lado, sendo substituído pela festa e depois as brincadeiras. Inclusive é preciso salientar que não foi apenas a Igreja Católica que criticou o Halloween, mas as igrejas protestantes também. 

Durante o século XVI, na Inglaterra, a Igreja Anglicana tentou abolir o Hallontide, inclusive alguns reis como Henrique VIII e Eduardo VI tentaram abolir o Hallontide, o Dia de Todos os Santos e o Dia de Finados, porém, tais práticas estavam tão impregnadas na sociedade que mesmo os éditos de proibição não surtiram efeito desejado, e a realização do Hallontide continuou pelos séculos seguintes, inclusive sendo levada pelos colonos ingleses para a América do Norte, de onde no século XIX, tornou-se o popular Halloween naquelas terras. 

Por que Dia das Bruxas?

Para os falantes de línguas anglo-saxãs, Witch's Day não é algo que soe como sinônimo de Halloween, mas como dito anteriormente, para os falantes do português e do espanhol, Dia das Bruxas é a interpretação dessa data, pois nem se pode falar em tradução, pois não consiste numa tradução. De qualquer forma a associação do Halloween com algo pernicioso data ainda do começo da Idade Média, pois vimos que a Igreja procurou formas de combater as práticas celtas do Samhain as adaptando para sua liturgia. Só que tais práticas ainda continuaram a serem realizadas e no final da Idade Média, elas passaram a serem interpretadas como manifestações associadas a bruxaria e o mal. 

Não se sabe exatamente quando o Halloween passou a ser visto como estando associado as bruxas, mas podemos aqui tentar trilhar esse caminho tomando como referência o contexto do final da Idade Média e do começo da Idade Moderna quando a caça às bruxas começou a se tornar algo mais comum. 

De acordo com Rogers (2002, p. 16-18) as práticas ritualísticas e mágicas celebradas durante o Samhain, em alguns casos eram feitas ou conduzidas pelos druidas, os sacerdotes celtas. Neste caso, existe um debate se as druidesas também participavam daqueles ritos, pois alguns consideram que a presença de druidesas possa ter inspirado a associação do Halloween com as bruxas. Por outro lado, existem historiadores que defendem que druidesas nunca existiram. Apenas os homens poderiam ser druidas. 


Druidas e talvez druidesas presidiam as celebrações do Samhain, mas será que eles continuaram a fazer isso durante o medievo, e teriam inspirado a associação do Halloween com as bruxas?
O problema dessa hipótese é que os druidas e druidesas praticamente despareceram da História antes da metade da Idade Média, e mesmo em vários locais o número desses sacerdotes era pequeno devido a conversão dos celtas ou a perseguição imposta pela Igreja, pois os druidas e druidesas foram associados com a bruxaria, feitiçaria e magia negra. 

Não obstante, outro motivo que põe em dúvida essa hipótese é o fato de que o Samhain foi sendo substituído pelo dia de Todos os Santos, mas algumas de suas práticas se mantiveram na véspera, o All Hallows Eve, entretanto, não podemos pensar que tais práticas seriam as mesmas no século I, ou no século VI, ou no século VIII, ou no século XV. O Halloween que hoje conhecemos é um produto do século XX, por sua vez sua versão no século XIX era diferente, e nos séculos anteriores também. Assim, não podemos atribuir necessariamente que a associação com a bruxaria deva-se a presença de druidas e druidesas nos ritos do Samhain vistos no final da Idade Antiga e começo da Idade Média. 

Por outro lado, provavelmente um dos fatores que levou a associar-se o Halloween com as bruxas advenha do preconceito, fanatismo e superstição cristãs com práticas pagãs. E um dos caminhos para entender isso, diz respeito ao misterioso ritual do sabá. A palavra shabbat é de origem hebraica e significa "descanso", "repouso", "cessar" etc. Tal palavra era usada para se referir ao último dia da semana, o Sábado. De fato o cristianismo adotou essa noção judaica de sete dias e até o termo shabbat passou a ser usado em alguns casos, porém em dado momento no século XV, ainda no medievo, a palavra sabá foi associada com bruxaria.

Além da palavra sabá, havia várias outras expressões que se referiam aos encontros noturnos de bruxas e bruxos: sagarum synagoga, strigiarum conventas, striaz, barlòtt, akelarre, etc (GINZBURG, 1986, p. 11). O curioso é que os termos sabá e sagarum synagoga visivelmente possuíam ligação com a cultura judaica, a qual era vista de forma perniciosa, pois em diferentes épocas da Idade Média, os judeus eram vistos com desconfiança, assim como os ciganos, ambos eram considerados trapaceiros, enganadores e místicos. E geralmente esse misticismo era visto como sendo bruxaria. 



Gravura retratando o imaginário cristão sobre o Sabá. Aqui se ver bruxas, demônios e animais como sapos e cobras, criaturas associadas a bruxaria. 
No final da Idade Média e começo da Idade Moderna, em alguns locais não era incomum ouvir as pessoas falarem que nas noites de Lua Nova e Lua Cheia, eram momentos nos quais as bruxas iriam se reunir para celebrar o sabá. O imaginário cristão sobre o sabá é demasiadamente sombrio e macabro, envolvendo rituais de magia negra, sacrifícios de animais e de pessoas, sangue, orgias, torturas, invocação do mortos e até mesmo oferendas ao Diabo.(DUNWICH, 2000, p. 120).

James Bonwick (1984, p. 87-90), menciona um relato de um homem rico que em 1610, diz ter visto várias bruxas se reunirem num casarão, onde passaram o restante da noite em balbúrdia. Em 1691, o reverendo R. Kirk diz ter visto vários demônios surgirem durante à noite e falarem línguas estranhas. Kirk apontou que as bruxas eram culpadas de convocá-los durante suas profanas celebrações. Ambos os acontecimentos ocorreram na Irlanda, estando relacionados com o começo de novembro, ou seja a época do Hallontide, pois ainda naquele tempo acreditava-se que os mortos e maus espíritos saíssem à noite naquelas datas, fosse por conta própria, ou por invocação do Diabo ou de bruxas e bruxos. 

O problema é que o sabá como descrito e imaginado pelos cristãos necessariamente não era aquilo que ocorria. A Igreja sempre procurou associar aquilo considerado por ela como sendo errado, tratando-se de obra do Diabo. Neste caso a "magia branca" era tolerada, mas a "magia negra" era manifestação de Satanás, logo, deveria ser combatida (LOYN, 1990, p. 137). Assim, durante o Hallontide medieval e moderno, oferendas aos mortos ainda eram prestadas, além do fato das pessoas saírem de noite para fazer isso. A própria condição de fazerem isso à noite já conotava tratar-se de ser algo ruim, suspeito e pernicioso.

"A Bíblia já expressara essa desconfiança em relação às trevas comum a tantas civilizações e definira simbolicamente o destino de cada um de nós em termos de luz e escuridão, isto é, da vida e da morte". (DELUMEAU, 1989, p. 97).

Neste caso, o Hallontide chegou a ser mal visto pelos cristãos, estando associado ao sabá. E para embasar tais argumentos, alguns clérigos chegaram a remeter as Sagradas Escrituras para fundamentar que a bruxaria era algo malévolo.

"Entre ti não se achará quem faça passar pelo fogo a seu filho ou a sua filha, nem adivinhador, nem prognosticador, nem agoureiro, nem feiticeiro; Nem encantador, nem quem consulte a um espírito adivinhador, nem mágico, nem quem consulte os mortos; Pois todo aquele que faz tal coisa é abominação ao Senhor; e por estas abominações o Senhor teu Deus os lança fora de diante de ti". (Deuteronômio 18:10-12)

Dependendo da tradução da Bíblia, palavras como mágico e encantador são traduzidas como bruxas e feiticeiras, mas na prática observa-se todos aqueles que estivessem associados as artes mágicas da adivinhação, da comunicação com os espíritos e a "magia negra" eram condenáveis. O problema é que na prática isso nunca foi uma regra, pois como mencionado, a "magia branca" era tolerada, e havia cristãos que eram videntes, e nem por isso sofreram perseguição.

Todavia, não podemos considerar que o Hallontide sempre fosse mal visto; em alguns locais o Hallontide era celebrado e até mesmo realizado como uma brincadeira, como comentado anteriormente, porém essa ideia de bruxaria começou a ficar mais forte na Idade Moderna com o surto a caças às bruxas (LOYN, 1990, p. 136). Ainda assim não tem como se precisar quantas mulheres e homens foram acusados de bruxaria porque participavam do Hallontide.

O problema disso se deve ao fato de que o Hallontide estava restrito ao arquipélago bretão, e em alguns locais na França e na Alemanha. Nestas regiões não havia inquisição na Idade Moderna, o que resulta em falta de documentos, pois nas terras que a inquisição prevaleceu: Portugal, Espanha e Itália, existem milhares de relatórios inquisitoriais provenientes dos séculos que essas instituições estiveram em funcionamento. Muitos casos de bruxaria foram julgados pelas inquisições, mas devido ao Hallontide está fora dessa jurisdição, não dispomos de tais relatórios, pois mesmo as autoridades locais fossem clérigas ou laicas, não mantinham necessariamente registros sobre os casos de bruxaria. 

Não consegui identificar em que época o uso do termo "Dia das Bruxas" e "Dia de las Brujas" foram a primeira vez usados em Portugal e Espanha, mas é importante mencionar que o próprio Halloween americano acabou absorvendo tais noções no final do XIX, logo, em propagandas do Halloween no século XX, vemos imagens de bruxas.

De qualquer forma, é importante dizer que na prática, ao longo de séculos, o Halloween esteve mais associado aos mortos e fantasmas do que com bruxas, e no século XIX ele perdeu totalmente seus últimos resquícios religiosos referentes ao culto aos mortos. Desde então o Halloween é uma mera festa a fantasia.

Referências Bibliográficas:
BONWICK, James. Irish druids and old Irish religions. New York, Dorset Press, 1984. 
DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente. São Paulo, Companhia das Letras, 1989. 
DOUGLAS, George William. The American Book of Days. New York, H.W. Wilson Company, 1948. 
DUNWICH, Gerina. The Pagan Book of Halloween. Pensilvania, Penguin Books, 2000. 
GINZBURG, Carlo. História nocturna. Traduzido por Alberto Clavería Ibáñez. Barcelona, Muchnik Editores SA, 1986. 
KONDRATIEV, Alexei. Samhain: Season of Death and Renewal. An Tribhis Mhór: The IMBAS Journal of Celtic Reconstructionism, vol. 2, n. 1/2, 1998. 
LE GOFF, Jacques. Os Vivos e os Mortos na sociedade medieval. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo, Companhia das Letras, 1999. 
LOYN, H. R. (org.). Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990. 
POWELL, T. G. Os Celtas. São Paulo, Editora Verbo, 1974. 
ROGERS, Nicholas. Halloween: From Pagan Ritual to Party Night. New York, Oxford University Press, 2002. 

Fontes da internet:
All Hallows Eve - BBC
History of Halloween - History Channel
Catolicismo Romano

Saci, de Monteiro Lobato: Um Mito Nacionalista

Pela Lei Estadual de 11.669 de 13 de janeiro de 2004, aprovada pelo estado de São Paulo, Brasil, decreta que o dia 31 de outubro consista na data de celebração ao personagem do folclore brasileiro, o Saci Pererê. Embora não seja uma lei de aplicação nacional, ainda assim, presto uma homenagem a essa data, com o seguinte artigo da profa. Dra. Miriam Blonski. 

Saci, de Monteiro Lobato: Um Mito Nacionalista

profa. Dra. Miriam Stella Blonski


Monteiro Lobato foi um sonhador. Sonhou um Brasil progressista, transformador das realidades adversas que assolavam o País, como a doença e a verminose, a miséria econômica, especialmente entre as populações rurais. Empunhando suas grandes armas que eram o entusiasmo e a palavra, lança-se também em campanhas em prol do ferro e do petróleo nacionais, capazes, na opinião do escritor, de proporcionar aos brasileiros o progresso material de que necessitavam para vencerem os seus problemas. Acreditava ele, também, que era necessário descobrir e conquistar aquilo que constituía o cerne do povo, sua força, sua razão maior: a sua brasilidade.

Essa brasilidade podia ser traduzida, entre outras idéias, pelo rompimento com as influências estrangeiras, principalmente européias, e pela busca de autenticidade e pureza nas manifestações do povo. Segundo Lobato, era preciso acordar os brasileiros, demovê-los da prática nociva de camuflar os problemas do país, de enfeitar a desgraça, levando-os às atitudes positivas de buscar e praticar tentativas de solução para esses mesmos problemas.

O pioneirismo de Monteiro Lobato o fez privilegiar o Saci-Pererê como símbolo do espírito nacional, uma espécie de produto da fantasia imaginativa das três raças formadoras do povo brasileiro, importante mito da Cultura Popular e do Folclore.

O Saci inscreve-se num tema que pertence às raízes e ao patrimônio cultural do Brasil. Sua função é, principalmente, contribuir para a preservação da cultura brasileira.

Ao resgatar o mito do Saci-Pererê, Monteiro Lobato o cerca de características brasileiras, utilizando não apenas suas próprias pesquisas, mas os depoimentos que obteve por ocasião do inquérito realizado através do jornal O Estado de São Paulo. Nesse momento, preocupado com o nosso desenraizamento cultural, resgata para o povo urbano a sua consciência original, que se encontrava enfraquecida em decorrência da grande infiltração das idéias européias.

O ano de 1917, em que Lobato realiza o inquérito sobre o Saci, que recebeu o nome de “Mitologia Brasílica – Inquérito sobre o Saci-Pererê”, apresenta-nos um quadro de crescimento das cidades, de industrialização ascendente, fazendo surgir categorias profissionais típicas das zonas urbanas, como operários, profissionais liberais, militares, etc. provocando, cada vez mais, o afastamento das atenções, do cenário rural. Fazendeiros, colonos e sitiantes dirigiam-se para a cidade, em busca de oportunidades de trabalho. Enquanto isso, esquecido e isolado nos rincões do país, permanecia um tipo rústico, até certo ponto puro, que não se deixava contaminar pelas influências da vida urbana: o caboclo. Em sua autenticidade, mantinha-se fiel à cultura caipira, cujos ensinamentos lhe foram legados através dos seus ancestrais, e que ele continuava praticando e transmitindo aos filhos. Como parte da sua cultura podemos citar as crendices, as superstições, os mitos nos quais ele acreditava, e entre eles, o Saci-Pererê.

O cenário acima descrito propicia o fortalecimento, nas letras e nas artes, de um sertanismo nostálgico, que focaliza a vida rural como modelo idealizado de sociedade a ser preservado. Lobato não se mantém alheio a essa tendência, e concentra sua atenção no caboclo, personalizado pela figura do Jeca Tatu. Se, anteriormente, o escritor o descrevera como “selvagem, arredio, desconfiado, piolho da terra, parasita funesto, preguiçoso e maligno, inadaptável à civilização”, agora ele refaz sua opinião, passando a elogiar as qualidades do caboclo, tornando-se, dessa forma, seu aliado.

O inquérito de Monteiro Lobato, que obteve grande repercussão na época, foi constituído de vários depoimentos, reunidos pelo escritor em livro com cerca de 300 páginas e tiragem inicial de dois mil exemplares.

A capa do livro é vermelha, simbolicamente da cor do sangue, do fogo, e também do amor. Segundo o Dicionário de Símbolos, é a cor de Dioniso1. Dioniso e também o demônio são representados comumente com chifres, símbolo da força e do poder. Provavelmente por essa razão, José Washt Rodrigues, autor do desenho do Saci que nela aparece, optou por apresentá-lo com essa característica: chifres curvos. Na cabeça tem o gorro vermelho, olhos também vermelhos e a boca apresentando dentes serrilhados, ponteagudos, vampirescos, numa alusão provável ao hábito do Saci de sugar o sangue dos cavalos.

Sua expressão pode ser interpretada como irônica, zombeteira, e até um pouco maléfica. Tem o corpo de adulto, com uma perna só. Os dedos dos pés são apresentados abertos, mais animalescos do que humanos. Também podem ter sido apresentados dessa forma pelo hábito de andar sempre descalço e por longas caminhadas, o que deforma os dedos, engrossando-os e aumentando o espaço de um para o outro. Numa das mãos carrega uma espécie de pau, uma possível arma com que desfere bordoadas tanto em pessoas como em animais. Na outra mão, prende o costumeiro cachimbo aceso, fumegante.

Ao seu redor folhas e traços que dão a impressão de movimento circular, como nos rodamoinhos, e também simbolizando o corpo em movimento. Esse desenho é coerente não apenas com as descrições dos relatos sobre o Saci, que constam nos depoimentos do corpo do livro, mas também remete-nos novamente à mitologia, tanto com Dioniso como também com faunos e com Pã. (Figura 1)

Figura 1
Lobato faz duas dedicatórias na abertura do livro. A primeira delas, em tom de sarcasmo, é para o “Bar Trianon”, local onde se reunia, em São Paulo, a elite do Estado, que absorvia a cultura européia, sem sequer cogitar em levar em consideração e muito menos praticar as variadas formas das riquezas culturais brasileiras. Esta primeira dedicatória reflete bem a intenção inicial de Lobato com o Inquérito, ou seja, combater a invasão do “francesismo” e de tudo o que descaracterizasse o elemento nacional.

A segunda, num tom carinhoso, reconhecido e saudoso, é para a tia Esméria, e “de quanta preta velha nos pôs, em criança, de cabelos arrepiados com histórias de cucas, sacis e lobisomens...” Tia Esméria foi empregada na fazenda do pai do escritor, e freqüentemente contava histórias para a criançada, nas quais as personagens folclóricas eram presença obrigatória. Também aqui o escritor reforça seu combate, criticando o novo costume da sociedade, de entregar o cuidado dos seus filhos às governantas, muito bem pagas, denominadas por ele de “lambisgóias de touca branca, numa algaravia teuto-itálico-nipônica”. A função dessas governantas era, também, educar as  crianças, “civilizá-las” conforme os costumes e cultura estrangeiros, daí a revolta de Lobato.

As inúmeras cartas recebidas vieram de todo o país, mas principalmente de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Os missivistas eram pessoas que residiam tanto na zona rural quanto na zona urbana, alguns demonstrando cultura e erudição, outros se expressando de maneira simples, às vezes com o linguajar próprio do caboclo, eivado de expressões peculiares, fornecendo dados e descrições do Saci. Também houve a participação de negros ex-escravos e mesmo de seus descendentes. Até depoimentos de colonos italianos foram recebidos, o que comprova, em primeira análise, o conhecimento do assunto e a penetração do tema em várias camadas sociais, permanecendo vivo na lembrança das pessoas. Com os depoimentos ficou provado que as figuras míticas impregnam o imaginário do povo, especialmente dos habitantes de cidades do interior e da zona rural, mas também vivem entre os habitantes urbanos, fazendo parte de sua história de vida.

A publicação do livro representou uma espécie de depoimento-denúncia de  reafirmação da sua luta nacionalista, que se serviu, nesse caso, dos relatos dos depoimentos para estimular o nascimento de uma consciência nacional, ao mesmo tempo em que alertava para que se prestasse mais atenção no caboclo, desconhecido das populações citadinas e litorâneas, e na legitimidade do Saci-Pererê como representante significativo dos mitos, no Brasil.

O caboclo foi destacado por Lobato através da personagem Jeca-Tatu, uma espécie de símbolo do brasileiro, imagem do povo do interior. É preciso conhecer o povo, para melhor educá-lo. Quando ele se revela através de suas manifestações culturais, e entre elas as superstições, as lendas como a do Saci, está fornecendo elementos que possibilitarão idéias e estratégias para uma ação educativa que parta das suas reais condições e necessidades.

O Jeca Tatu é seu representante autêntico, imune às influências que não sejam as dos seus pares e as do ambiente em que vive. Quando a tristeza lhe corrói a alma, toma o violão e entoa as canções que o sentimento lhe dita. Tem a natureza, a mata e a simplicidade como suas companheiras. Identifica-se com elas, compreende-as, interpreta-as. Ao cair da noite, quando o silêncio impera, se o caboclo ouve um ruído que não identifica, logo lhe vem a suspeita de que se trata de algo acima de sua compreensão. Nesse momento fala o medo, fala o sobrenatural: “É o Saci!” E o seu olhar percorre o ambiente à procura da cruz, presa no batente da porta.

A importância do Inquérito sobre o Saci, realizado por Monteiro Lobato, é atestada por vários escritores e estudiosos em geral. Entre eles, pode-se mencionar o antropólogo e folclorista Luís da Câmara Cascudo, que assim se expressa:

Quando se fala no Saci sabe-se do “inquérito” que Monteiro Lobato dirigiu e que resultados extensos denunciou para a existência fantástica do duende negrinho.

Com o Sacy-Pererê – resultado de um inquérito, Lobato apresentou aos brasileiros um mito com características ora demoníacas, ora cruéis, perpassadas por manifestações de ironia, de deboche e até mesmo laivos de bondade. Um perfil bastante variado, e, até certo ponto, controverso, que lhe fora apresentado nas diversas correspondências recebidas. Embora esse livro não tenha sido reeditado pelo escritor, o tema se manteve presente no seu pensamento. Anos mais tarde ele volta ao assunto, desta vez na sua obra infantil.

Era necessário incentivar nos jovens o entusiasmo e a dedicação às causas brasileiras e ao País, o culto pelas origens e o amor pela terra, com destaque para a vida na zona rural, no campo, tão importante quanto a vida urbana. Desta forma, destacava-se também o homem que lá vivia, o caboclo, em continuidade às idéias defendidas anteriormente. No interior agreste habitava a lenda, a fantasia, o maravilhoso, a mula-sem-cabeça, e onde, às sextas-feiras de noite escura, podia surgir das trevas o lobisomem. Podia aparecer, ainda, cortando o vento e à garupa de um cavalo, o Saci-Pererê, iluminando a noite com seu capuz vermelho e com a brasa acesa do seu cachimbo.

Monteiro Lobato, no livro O Saci, publicado pela primeira vez em 1921, recria a personagem, suavizando-a. O nosso herói aparece, agora, com estatura de criança e atitudes brincalhonas, travessas. Suas peripécias são vividas no Sítio do Picapau Amarelo. A história é dividida em vinte e oito capítulos e narra desde a chegada de Pedrinho ao sítio, para passar as férias, seu encontro e aventuras com o Saci, até o encantamento de Narizinho, convertida em pedra pela Cuca, e o seu posterior desencantamento.

Todos os episódios são mesclados pelo surgir de outros mitos folclóricos, acompanhados da respectiva explicação, muitas vezes pormenorizada pelo próprio Saci, que ocupa o papel de regente principal dos acontecimentos. Este papel o coloca na posição de herói, de certa forma reabilitando-o de ações maléficas que os depoimentos do Inquérito lhe atribuíam, e mesmo das pequenas diabruras que fazia. Monteiro Lobato, desta forma, lembra-nos a dualidade bem/mal existente nas criaturas, bem como a possibilidade da retratação do mal através dos atos generosos, das boas ações. Coloca o Saci, inclusive, numa categoria privilegiada entre os mitos no Brasil. Justifica-se, assim, não apenas sua curiosidade ligada às memórias da infância, mas também o interesse do adulto estudioso e pesquisador.

O processo de suavização da imagem do Saci-Pererê é iniciado por Monteiro Lobato não apenas na síntese da descrição do moleque, que acontece no livro O Sacy-Pererê – resultado de um inquérito, mas também no desenho a nanquim que ele faz, e que retrata o capetinha numa versão de criança, sem chifres, sem o porrete e com expressão observadora, desconfiada. Não tem mais aquela aparência cruel ou ameaçadora. O pitinho permanece, e os pés adquirem o formato humano. Essa modificação deveu-se, provavelmente, ao fato de que o livro O Saci é destinado, prioritariamente, para crianças, e o autor não tinha intenção de atemorizá-las. (Figura 2)

Figura 2
Além de recriar a personagem, Monteiro Lobato descreve-a, servindo-se do negro velho, Tio Barnabé, personagem do Sítio do Picapau Amarelo, conhecedor dos mistérios que cercam o homem rural. Tio Barnabé assim fala do Saci:

O Saci – começou ele – é um diabinho de uma perna só que anda solto pelo mundo, armando reinações de toda sorte e atropelando quanta criatura existe... Azeda o leite, quebra a ponta das agulhas, esconde as tesourinhas de unha, embaraça os novelos de linha, faz o dedal das costureiras cair nos buracos, bota moscas na sopa, queima o feijão que está no fogo, gora os ovos das ninhadas. Quando encontra um prego, vira ele de ponta pra riba para que espete o pé do primeiro que passa. Tudo que numa casa acontece de ruim é sempre arte do Saci. Não contente com isso, também atormenta os cachorros, atropela as galinhas e persegue os cavalos no pasto, chupando o sangue deles. O Saci não faz maldade grande, mas não há maldade pequenina que não faça.

E segue sua narrativa, comentando o poder da carapuça vermelha, do hábito do cachimbo, das mãos furadas por onde passam pequenas brasas e ainda da peça que pregou no moleque, quando colocou pólvora dentro do próprio cachimbo, que o Saci gostava de usar. Ao começar o estouro foi uma risada só, e o Saci saiu correndo para não voltar por muito tempo. Falou da maldade que é feita na crina dos cavalos e do costume vampiresco de sugar o sangue dos pobres animais. Para evitar isso, usa-se colocar um “bentinho” no pescoço dos mesmos, protegendo-os. Convém explicitar que os bentinhos são escapulários que contêm gravuras de santos, pedaços de tecidos ou orações com o poder de proteção. Têm esse nome porque se benze para dar virtude. É comum encontrar escapulários no pescoço de crianças e mesmo de adultos da zona rural, ou mesmo em carteiras de dinheiro, costuradas a roupas, etc.

O objetivo de valorização da cultura nacional, que era uma constante em Monteiro Lobato, bem como o seu estudo sobre as personagens do folclore no Brasil, levaram-no a incluir no conto O Saci outras figuras do folclore, de conformidade com um dos aspectos de sua obra infantil: o caráter educativo. Aparecem, então, o Jurupari, o Curupira, a Iara, o Caipora, a Porca-dos-sete-leitões, o Negrinho do Pastoreio, a Cuca, o Boitatá, a mula-sem-cabeça e o Lobisomem.2

Lobato, ao destacar o Saci-Pererê e o Jeca Tatu, busca sugerir uma nova mentalidade nacional, e concentra seus esforços na literatura para crianças e jovens, cuja personalidade e caráter encontram-se em formação, e que pelo conhecimento mais apurado do povo e de seus costumes, poderia, mais tarde, elaborar projetos destinados à modernização e desenvolvimento do Brasil, calcados em bases nacionais e populares. Esta modernização traz implícita a característica do dinamismo, entendido como capacidade de adaptação e criação de novos valores e novos padrões culturais, para conviverem com novos tempos e situações.

Monteiro Lobato não fez apenas um registro da tradição oral mas, através do Saci, estabeleceu uma ponte entre o mundo da razão e as superstições e costumes próprios do povo, convidando-nos a uma reflexão sobre os elementos de resgate desse mito brasileiro, bem nacional. Procurar conhecer nossas lendas, mitos e costumes é uma forma de caminharmos para a independência cultural, ao invés de copiar e absorver passivamente os valores estrangeiros. Ao mesmo tempo é compreender que o Brasil possui elementos culturais próprios que, da mesma forma que nos individualizam, ligam-nos a todos os povos e países do mundo. Por outro lado, conhecer o povo é adquirir condições e criar formas de educá-lo. É possibilitar sua projeção para o futuro.

Monteiro Lobato, com o Jeca Tatu, o Saci-Pererê e exemplos da Cultura Popular e do Folclore, pretendeu acordar o povo brasileiro do seu estado de inércia, de inoperância, incitando-o à luta, a que ele próprio se entregou durante toda a sua vida. Uma luta em favor do “ressurgimento brasileiro de todos nós”. Seu combate legou à posteridade o exemplo de um homem que amou o Brasil como poucos, batalhando por sua terra e seu povo, legando aos brasileiros o tesouro de sua produção literária. Mostrou a todos o Saci-Pererê, que segundo as palavras do próprio escritor, é “pano de amostra, revelador de que esta terra tem uma alma”.

Notas:                                     
1. CHEVALIER, Jean;  GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 2. ed. Trad. Vera da Costa e Silva et. alii. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1990, p. 945. Dioniso (Baco), deus do vinho, era filho de Júpiter e de Sêmele. Não representava apenas o poder embriagador do vinho, mas também suas influências benéficas e sociais, de maneira que era tido como o promotor da civilização, legislador e amante da paz.
2. Informações sobre as personagens folclóricas podem ser encontradas, em sua maioria, em Luís da Câmara Cascudo, nos livros: Dicionário do Folclore Brasileiro e Geografia dos Mitos Brasileiros.

Referências Bibliográficas
CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 7. ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Ltda, 1988.
CASCUDO, Luis da Câmara. Geografia dos Mitos Brasileiros. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1983.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 2ª ed. Trad. Vera da Costa e Silva et alii. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1990.
LOBATO, José Bento Monteiro. Urupês. 11. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 196.
LOBATO, José Bento Monteiro. O Sacy-Pererê – resultado de um inquérito. Edição fac-similar. Rio de Janeiro: Gráfica J. B. S/A, 1998.
LOBATO, José Bento Monteiro. O Saci. São Paulo: Editora Brasiliense, 1973.NUNES, Cassiano. O sonho brasileiro de Lobato. Rio de Janeiro: Gráfica Olímpica Editora Ltda, 1979.

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sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Mitos e verdades sobre a "Idade das Trevas"

A proposta desse estudo foi abordar algumas questões consideradas verdadeiras ou lendárias em respeito a "Idade das Trevas", período que compreendeu parte da Idade Média (476-1453), sendo reconhecido na História como uma época de fanatismo religioso, submissão a Igreja, cegueira filosófica e científica, atraso social, moral e cultural. Na prática, a "Idade das Trevas" por si só já é um mito, um conceito elaborado de forma perniciosa ao longo da modernidade, como forma de manchar a história medieval, a considerando ingrata e pérfida. 

Porém, aqui procurou-se desconstruir essa visão pessimista do medievo europeu, pois a "Idade das Trevas" normalmente está associada a história europeia, deixando de fora o medievo asiático e africano, e até mesmo nem poderia ser aplicada, pois os motivos pelos quais os modernos julgavam o atraso filosófico, artístico, social, científico e cultural das sociedades medievais, não pode ser encarado da mesma forma para a Ásia e a África. 

Idade Média e Idade das Trevas:

“Se numa conversa com homens medievais utilizássemos a expressão “Idade Média”, eles não teriam idéia do que estaríamos falando. Como todos os homens de todos os períodos históricos, eles viam-se na época contemporânea. De fato, falarmos em Idade Antiga ou Média representa uma rotulação a posteriori, uma satisfação da necessidade de se dar nome aos momentos passados. No caso do que chamamos de Idade Média, foi o século XVI que elaborou tal conceito. Ou melhor, tal preconceito, pois o termo expressava um desprezo indisfarçado em relação aos séculos localizados entre a Antigüidade Clássica e o próprio século XVI. Este se via como o renascimento da civilização greco-latina, e portanto tudo que estivera entre aqueles picos de criatividade artístico-literária (de seu próprio ponto de vista, é claro) não passara de um hiato, de um intervalo. Logo, de um tempo intermediário, de uma idade média”. (FRANCO JÚNIOR, 2001, p. 9). 

a) Conceito de Idade Média

Em 1469 o bispo Giovanni Andrea usou o termo "media tempestas", para se referir a um período que separava a época dele da época do Império Romano. Em outras palavras, ele falava de um "tempo médio" ou "tempo do meio" (FRANCO JÚNIOR, 2001, p. 9). Tal expressão seria retomada em outras ocasiões, e posteriormente daria origem ao conceito de Idade Média.

No século XVII, o historiador e filólogo francês Charles de Fresne Du Cange (1610-1688), no ano de 1678, passou a usar a expressão "medium aevum" em seu livro Glossarium mediae et infimae Latinatius (Glossário de Latim da Idade Média e Moderna). Após Du Cange, foi a vez do historiador alemão Christoph Cellarius (1638-1707), o qual escreveu em 1688 o livro Historia Medii Aevi a temporibus Constantini Magni ad Constantinopolim a Turcis captam deducta (História da Idade Média, do tempo de Constantino, o Grande até a queda de Constantinopla pelos Turcos). 

Ao longo do século XVIII e XIX o conceito de Idade Média foi ficando cada vez mais comum, até passar a ser habitual usá-lo. Entretanto, um problema que se percebeu, foi a imagem negativa que se passou a ter do período medieval. 


“O século XVIII, antiaristocrático e anticlerical, acentuou o menosprezo à Idade Média, vista como momento áureo da nobrezado clero. A filosofia da época, chamada de iluminista por se guiar pela luz da Razão, censurava sobretudo a forte religiosidade medieval, o pouco apego da Idade Média a um estrito racionalismo e o peso político de que a Igreja então desfrutara. Sintetizando tais críticas, Denis Diderot (1713-1784) afirmava que “sem religião seríamos um pouco mais felizes”, Para o marquês de Condorcet (1743-1794), a humanidade sempre marchou em direção ao progresso, com exceção do período no qual predominou o cristianismo, isto é, a Idade Média. Para Voltaire (1694-1778), os papas eram símbolos do fanatismo e do atraso daquela fase histórica, por isso afirmava, irônico, que “é uma prova da divindade de seus caracteres terem subsistido a tantos crimes”. A posição daquele pensador sobre a Idade Média poderia ser sintetizada pelo tratamento que dispensava à Igreja: “a Infame””. (FRANCO JÚNIOR, 2001, p. 10-11). 

O próprio conceito de "Idade das Trevas" também contribuiu para reforçar essa visão negativa sobre o medievo, embora que no século XIX, os românticos tentaram retirar essa conotação negativa e sombria, e através da literatura criaram novas versões dos romances de cavalaria, assim como, idealizaram a imagem de Idade Média europeia que ainda hoje possuímos: castelos, princesas, cavaleiros, reis, guerras, feudalismo, justas, cruzadas, etc. 

b) Conceito de Idade das Trevas

O termo "Idade das Trevas" surge no século XIV com o escritor, poeta, filósofo e tradutor italiano Francesco Petrarca (1304-1374). Originalmente Petrarca concebeu tal ideia para se referir a pobreza literária do período medieval, assim segundo sua opinião, pois sendo um admirador da literatura greco-romana, Petrarca julgava que os escritores e literatos medievais pouco contribuíram no desenvolvimento da literatura europeia em um período de quase dez séculos. 

Nesse intuito, para Petrarca o qual viveu no início da fase do Renascimento, no século XIV, com a "redescoberta" e revalorização da cultura greco-romana, aquilo era um "momento de luz", enquanto o medievo foi um "momento de trevas". O pintor Rafael Sanzio (1483-1520) se referia a arte medieval a chamando de "arte gótica", sendo que a palavra gótico vem do nome do povo Godo, um dos povos considerados bárbaros pelos romanos. Logo, essa noção de gótico estava atrelado a esse conceito de bárbaro. De fato, Rafael considerava a arte gótica, bruta, rude, sombria, possuindo falta de beleza, curvas, elegância e charme como na arte greco-romana (isso para a arquitetura), além do fato, de que a arte gótica era bastante influenciada por motivos cristãos, principalmente na pintura. 

Durante os séculos XV e XVI, os clérigos protestantes durante o período da Reforma, sustentaram o argumento de que a Idade Média foi uma época de fanatismo e desvirtuamento da palavra de Deus, devido ao controle da Igreja Católica. Assim, eles consideraram que parte do medievo foi "sombrio", no sentido de haver muita superstição, crendices, guerras, fanatismo, usura, etc., por causa do fato de que os católicos haviam se distanciado dos verdadeiros ensinamentos de Cristo. 

Observa-se aqui um jogo político, pois mesmo os protestantes embora tenham concedido em alguns momentos liberdade para o pensamento filosófico e científico, não significa que todos pensassem do mesmo jeito. O próprio Martinho Lutero chegou a considerar a obra de Nicolau Copérnico, De revolutionibus orbium coelestium (Das revoluções dos mundos celestes) como sendo uma blasfêmia. 

Entretanto, outros estudiosos do Renascimento, acabaram adotando a ideia de uma "obscuridade" não apenas para a literatura e para a religião, mas para as artes em geral, a filosofia, a ciência, a moral, a sociedade, a cultura, etc. Porém, o termo "Idade das Trevas" só vai surgir depois, sendo influenciado pelo termo Saeculum obscurum, proposto pelo cardeal e bibliotecário César Barônio (1538-1607), o qual em seu livro Annales ecclesiastici (Anais eclesiásticos), obra na qual ele conta a história da Igreja Romana, ele chamou o período que compreende o século X, indo do papado de Sérgio III, iniciado em 904 até o papado de João XII em 964, o chamando de "saeculum obscurum", por se tratar de uma época sombria e moralmente decadente para o papado. Na visão de Barônio, aqueles foram anos conturbados e negativos para a história da Igreja, devido a falta de respeito que os papas e suas famílias tiveram na época, além de escândalos de corrupção, nepotismo, quebra de votos etc. 


Retrato do cardeal César Barônio, autor da expressão "saeculum obscurum", cujo termo daria posteriormente origem ao conceito de "Idade das Trevas". 
Percebe-se que Barônio não foi o responsável por criar o conceito de "Idade das Trevas", pois ele se referia a uma época específica e embasada no contexto da história eclesiástica, todavia, outros estudiosos com base em seu termo acabaram o adotando para se referir a toda a Idade Média, ou metade dela, como será explicado adiante.

No século XVII, o filósofo, historiador e bispo inglês Gilbert Burnet (1643-1715), em 1679 em seu livro The History of the Reformation of the Church of England, ele passou a empregar o termo "dark ages", para se referir a Idade Média. Posteriormente ele voltaria a empregar o termo nos outros volumes de seu livro, sempre se referindo a este de forma negativa, assinalando que o medievo foi uma época de superstições, crendices, corrupção moral e fanatismo. É preciso ressalvar que Burnet era um bispo protestante, e ele tomou para si o argumento da Reforma, concebido nos dois séculos anteriores. 

O conceito de Idade das Trevas hoje:

No século XIX, os românticos como dito, tentaram retirar essa visão negativa sobre o medievo construída desde o século XIV, todavia, acabaram não conseguindo obter êxito completo, mas conseguiram pelo menos romper a opinião generalizante de que todos os quase mil anos do período medieval foram de "trevas". Assim, por essa concepção a "Idade das Trevas", compreenderia a chamada Alta Idade Média, divisão historiográfica que representa a história que vai do século V ao século X. 

Por sua vez, a Baixa Idade Média, que compreende os séculos XI ao XV, não teria sido um período sombrio, mas já do prenúncio das luzes, pois no século XII tivemos o "Renascimento Carolíngio" e no século XIV começou o Renascimento Italiano. Ambas épocas nas quais as artes, filosofia e ciências começam a se reerguer. 

Dessa forma a historiografia inglesa, ainda hoje utiliza a divisão entre Idade das Trevas (Dark Age) para se referir aos séculos V e X; e, por sua vez, usa o termo Idade Média (Middle Age) para se referir aos séculos XI e XV. Pode parecer confuso, mas é apenas uma questão de nomenclatura. Fora do Reino Unido a maioria dos países não usa essa divisão, e considera o termo "Idade das Trevas", pejorativo, antiquado e impróprio. No entanto, fiz menção disso, para mostrar que ainda assim, ele é usado pelos britânicos hoje em dia.  

Sendo assim, explicado de forma breve a origem dos conceitos de Idade Média e Idade das Trevas, e o seu uso hoje em dia na historiografia, agora passamos para uma análise com base em algumas perguntas as quais nos revelam impressões equivocadas, pois o período medieval não foi tão sombrio, fanático, ignorante, conservador como se imagina e infelizmente ainda é transmitido dessa forma nas escolas. 

Pergunta: Todas as pessoas da Idade Média eram cristãos devotos?

Resposta: Não.

Para se compreender essa pergunta é preciso ter cuidado ao fazer uso das palavras "todo" e "tudo". Ora, estamos falando de um continente com vários Estados, povos, idiomas e culturas, e de um período de tempo de quase mil anos. Não se pode generalizar ao ponto de se dizer que o homem e a mulher do medievo teve o mesmo pensamento ao longo da Idade Média. (LE GOFF, 1989, p. 8). Como apontado pelo historiador francês Jacques Le Goff, um erro ainda comum visto no ensino sobre a história medieval é que as pessoas acham que a Idade Média, malfalada como "Idade das Trevas", foi uma época igual todo o tempo, e seus habitantes "sempre" foram pessoas "profundamente" crédulas e submissas ao dogma católico. 

A realidade não foi bem assim. A própria ideia de cristão no medievo foi se transformando ao longo da História, além do fato de que o cristianismo não se instaurou na Europa de um dia para o outro, mas foi um processo que demorou séculos. Para se ter uma noção de como o cristianismo demorou para se difundir na Europa, vejamos uma rápida explanação: 

Com a queda do Império Romano do Ocidente em 476, oficialmente a religião do Estado romano era o Cristianismo, o que significa que na teoria, todas as antigas regiões que eram províncias romanas, seriam terras habitadas por cristãos? Na prática não foi bem assim. De fato, embora o cristianismo já naquela época era a religião predominante do Estado romano, não significa que outras religiões não fossem profetizadas em suas terras, além do fato de que vários  povos  em seu período de migrações, adentraram as terras romanas várias vezes, e alguns ali se estabeleceram. Tais povos como os godos, vândalos, suevos, lombardos, alanos, gauleses, celtas, bretões, hunos etc., alguns se converteram a fé cristã, outros ainda mantiveram suas crenças pagãs. 


Mapa do Império Romano do Ocidente e do Oriente, mostrando a divisão por dioceses. Nos dois mapas menores, vemos a fronteira oriental e o nome dos atuais países que compreendiam naquela época territórios dos romanos. 
Sendo assim, após a Queda do Império Romano não significa que suas antigas províncias as quais se tornaram independentes ou não, se constituíram em Estados cristãos. Em algumas terras o grosso da população ainda se manteve naquela zona entre ser cristão, mas manter suas crenças anteriores ou até mesmo adotar seitas cristãs, vistas pelo papado como sendo heréticas. 

Em 508 o então rei dos francos, Clóvis I (c. 466-511) aceitou ser batizado e se converteu ao cristianismo. Clóvis era o terceiro soberano da Dinastia Merovíngia, e sob seu governo 481 a 511 ele conseguiu conquistar várias tribos francas, e assim formou o Reino da Frância, que anos depois daria origem a França. Mas não foi apenas seu êxito em ter unificado tribos francas, mas sim em ter legado aos seus sucessores a ideia de uma monarquia franca cristã, algo que seria seguido nos séculos seguintes contando com o apoio da Igreja. (ROSA, 2012, p. 309-310).


Pintura retratando o batismo de Clóvis I, rei dos francos, em 508. 
No século VI, a Irlanda em grande parte estava sob a religião celta. Todavia, um irlandês de nome Brandão de Ardfert e Conflert (c. 484 - c. 577) converteu-se ao cristianismo, de se tornou missionário. Após sua morte, foi canonizado. São Brandão é o padroeiro da Irlanda, tendo fundado várias igrejas, mosteiros e capelas, além de ter difundido o cristianismo pela ilha. Algumas lendas falam que São Brandão teria expulsado todas as cobras da ilha, daí até hoje não haver tais animais na Irlanda, além do fato que o santo teria também travado "batalhas mágicas" contra os druidas e empreendido viagens marítimas. 

No caso do território que hoje compreende a Espanha, no século VI eram terras governadas por reis visigodos, os quais ou eram arianos ou pagãos. Em 587, São Leandro de Sevilha (c. 534 - 600/601) conseguiu convencer o rei Recaredo I a se batizar e se converter. Por sua vez, o rei exigiu que seu povo viesse a adotar o cristianismo, assim em 589, no III Concílio de Toledo, presidido por São Leandro, os visigodos oficialmente aderiram ao cristianismo. Anos depois, o irmão mais novo de São Leandro, São Isidoro de Sevilha (c. 560-636) também atuou na conversão do rei Sisebuto, além de presidir o Quarto Concílio de Toledo (633). 

A Germânia (a grosso modo compreenderia Alemanha, Bélgica, Holanda, norte da França, oeste da Polônia), foi ao longo dos séculos VII e IX cristianizada, destacando-se o missionarismo de São Bonifácio (c. 672-754), o qual recebeu o cognome de "O Apóstolos dos Germanos", devido aos seus feitos de converter várias tribos para o cristianismo. 

O imperador franco Carlos Magno (742-814), teve um papel importante no caso germânico, pois realizou campanhas contra as tribos germanas do sul, a fim de expandir seu império, mas também de trazê-lo ao seio da cristandade. Carlos Magno foi um cristão devoto para época, possuindo ligação com o papado, e até mesmo foi coroado no ano 800, com o título de imperador dos romanos; sendo a coroação feita pelo papa Leão III, no dia de Natal. 

Subindo pelo mapa da Europa, chegamos a Escandinávia, formada pela Dinamarca, Suécia e Noruega. Durante o século IX, os vikings tiveram contatos com os cristãos de outras terras durante suas expedições e viagens, todavia, foi apenas no século XI, que bispados foram fundados na Escandinávia e na Islândia, e os vikings começaram a se converter em maior número ao cristianismo, antes disso as tentativas de converter todos os povos vikings não tiveram êxito. Santo Olavo (995-1030) foi o primeiro santo de origem viking, tendo sido rei da Noruega entre 1015 e 1028. Ele teve um papel importante para incentivar a cristianização de seu reino. 

No caso da Europa oriental, ocupada por povos de origem eslava, a cristianização ali demorou mais a adentrar. Encontramos focos nos principados de Novgorod, Moscovo e Vladimir, terras hoje pertencentes a Rússia; e no principado de Kiev, hoje na Ucrânia. As terras que hoje são Romênia, República Checa, Bósnia, Bulgária, Sérvia, Macedônia, Grécia e o restante dos países que compreendem a região dos Bálcãs (nome dado a península localizada no sudeste da Europa), foram cristianizadas desde a época romana, embora as terras mais ao norte como Romênia, Hungria e Ucrânia começaram a serem cristianizadas mais tardiamente, lá pelo ano X em diante. 

Em outras palavras, a cristianização da Europa durou séculos. (LE GOFF, 2007, p. 23). Logo, dizer que os medievais sempre foram cristãos o tempo todo, é um erro. Além disso, cristianizar um povo ou um país, não é o mesmo que cristianizar toda a população, tais termos são usados de forma generalizante. Só porque um rei aderia ao cristianismo e exigisse que seu povo fizesse o mesmo, não significa que todo mundo iria de imediato abandonar suas antigas crenças e adotar a fé em Deus, isso foi um processo lento, pois nota-se que o culto a natureza, o uso de práticas mágicas, sincretismos religiosos, etc., perdurou por anos e até décadas. (LE GOFF, 2007, p. 25). 

Além disso, é preciso lembrar que além dos pagãos (termo genérico usado pelos cristãos da Antiguidade à Modernidade, para se referir aos adeptos de religiões politeístas), havia judeus e muçulmanos vivendo na Europa. No caso dos judeus esses se espalhavam por vários países, e alguns fingiam ser cristãos-novos (termo de origem portuguesa, para se referir ao judeu que se converteu ao cristianismo, a pouco tempo), de forma para não levantar suspeitas, pois havia um grande preconceito religioso na época contra qualquer outra religião que não fosse o cristianismo católico. Caso alguém fosse descoberto sendo judeu, muçulmano ou pagão, as consequências poderiam levar até mesmo a morte. No caso dos muçulmanos, eles passaram a se concentrar na Península Ibérica, onde hoje são Espanha e Portugal, na ilha de Creta e em outras ilhas do Mediterrâneo. Inclusive os muçulmanos no século VIII, chegaram a invadir o sul da França, sendo repelidos por Carlos Martel, avô do imperador Carlos Magno

Por outro lado, mesmo em épocas nas quais o cristianismo fosse não apenas a religião oficial do Estado, mas também da sua gente, não significa que todo mundo era temente a Igreja e a Deus de forma cega, como alguns pensam. Se hoje os padres e pastores reclamam da falta de interesse das pessoas em irem a missa ou ao culto, no medievo isso não foi tão diferente; claro, que não foi na mesma escala de hoje em dia, mas acontecia. 

Jacques Le Goff (1989, p. 10) assinalava que a concepção de homem na Idade Média variou ao longo da sua história. Dos séculos V ao XII, a figura de Deus é bastante presente na vida das pessoas, principalmente a ideia de que Ele não é apenas o Deus que concede bençãos e milagres, mas também o Deus que pune. Assim, Le Goff aponta que nestes séculos, alguns cristãos medievais se sentiam mais preocupados com o pecado, no intuito de procurarem serem corretos, embora que na prática nem sempre conseguiam sê-los. Além disso, eles também temiam o Juízo Final. De fato, por volta do ano 1000 começaram a eclodir na Europa ocidental, seitas milenaristas, pregando o Apocalipse e o Juízo Final. Sobre isso comentarei adiante, mas o que o historiador chama a atenção, diz respeito a uma visão pessimista, na qual o cristão se reconhece como fruto do Pecado Original, condenado ao crime de Adão e Eva, assim, a vida seria uma penitência. 

"Na Alta Idade Média, Job é sem dúvida o modelo bíblico em que a imagem do homem melhor se encarnou. O fascínio da personagem do Velho Testamento foi tanto maior quanto o comentário ao Livro de Job, os Moralia in Job do papa Gregório Magno (590-604), foi um dos livros mais lidos, mais valorizados e mais utilizados pelos clérigos da época. Job é o homem que tem que aceitar a vontade de Deus, sem procurar outra justificação que não seja o arbítrio divino". (LE GOFF, 1989, p. 10).


Job on the Dunghill. Autor: Gonzalo Carrasco. Óleo sobre tela. Ano: 1881. Nos primeiros séculos da Idade Média, Job era a imagem de cristão ideal: o homem penitente, sofredor, e não dono de sua vontade e destino. 
A partir do século XIII, como continua dizendo Le Goff, o pensamento cristão muda, e com isso velhos valores são abandonados e outros são adotados, inclusive o fato de que algumas coisas antes tidas como terrivelmente profanas e imorais, perdem esse sentido. Alguns cristãos a partir do século XIII vão começar a ter em mente a importância do livre arbítrio em suas vidas, não considerando mais a ideia pessimista dos séculos anteriores. Os homens passam a se ver não como frutos do Pecado Original, mas como herdeiros de Adão no sentido de deterem o dom da razão e o poder de comandar os seres vivos, pois Adão foi posto no Jardim do Éden para reinar sobre os animais. 

Entretanto, essa ideia de livre arbítrio não apenas gera uma passagem de um pensamento pessimista para um pensamento otimista, mas a própria ideia de seguir a liturgia católica. Se antes já havia pessoas desinteressadas em ir as missas, em se confessar, em se fazer jejum, praticar peregrinações, participar de romarias ou realizar penitências, em 1215, o IV Concílio de Latrão instituiu como obrigação a todos os católicos que pelo menos fossem uma vez ao ano se confessarem e realizar a penitência após a confissão. Tal medida surge para tentar evitar que as pessoas deixassem de se confessar, o que significa que elas não estavam cumprindo com o dogma católico, por outro lado, significava que as pessoas estavam se distanciando da Igreja, e também não a temiam tanto como antes. 

Essa mudança de pensamento de que a pessoa seria dona de seu juízo e de suas escolhas, cabendo ela ser tentada ou não, a Igreja viu nisto um problema, pois significaria que seu rebanho poderia acabar se desgarrando de seus dogmas, como também a faria perder autoridade, influência e poder. 

Não obstante, é na Baixa Idade Média que as pessoas começaram a visualizar a ideia de Paraíso e o Inferno, que a salvação e a danação circundavam o espírito humano todo o tempo, e isso gerou alguns problemas de interpretação quanto a vida após a morte, e o que seria pecado? Blasfêmia? Heresia?

"Aceitar o recusar a graça que os salvaria, ceder o resistir ao pecado que o condenaria, compete ao homem, que age segundo o seu livre arbítrio. [...]. O homem é o local da batalha que se empenham, para sua salvação ou para sua condenação, os dois exércitos sobrenaturais, prontos a cada momento, para agredir ou socorrer, os demônios e anjos. O local da batalha é a sua alma". (LE GOFF, 1989, p. 12). 


Pintura medieval retratando São Miguel com uma balança na qual vemos uma mulher e um homem, sendo cada um puxado para um lado. A imagem simbolizava a ideia de que a pessoa poderia ceder as tentações do Diabo, no caso da pintura o homem sendo puxado por um demônio; ou a pessoa poderia seguir o caminho justo de Deus; na imagem representada pela mulher em posição de reza diante de São Pedro. 
Sendo assim, se cada pessoa era responsável por procurar sua salvação, lembrando que na teoria todos os cristãos querem ser salvos, querem ir para o Paraíso, no entanto, na prática, nem todos os cristãos se importavam em seguir a boa conduta de sua fé, e alguns tendiam a beirar a hipocrisia, tentando mostrar uma boa imagem, enquanto na realidade eram depravados; na Idade Média isso não foi diferente, e curiosamente os festejos que viriam dar origem ao carnaval, começaram a se tornar mais comuns na Baixa Idade Média, nessa época de mudança no pensamento cristão. 

É preciso lembrar que o carnaval ou pelo menos as festas que dariam origem ao carnaval, são originárias da Idade Média. A festa dos bufos, a festa do burro, a festa dos inocentes, festa dos loucos, etc,. eram festas esdrúxulas, obscenas, barulhentas, coloridas e até mesmo imorais, que ocorriam uma vez ao ano, normalmente nos meses de janeiro e fevereiro. As quais não apenas contavam com a participação da população em geral, mas até mesmo clérigos participavam daquela algazarra. 

"As Festas dos Loucos, “festum stultorumfatuorum” ou follorum”, do Burro e dos Inocentes, celebradas, consoante os locais, em diversos dias do referido período, quase se identificam e confundem. Promovidas pelo baixo clero, em particular pelos subdiáconos, são testemunhadas desde o final do século XII até ao do século XVI, com raros prolongamentos pelo século seguinte, quando as constantes condenações e proibições dos vários concílios episcopais, aliadas à intervenção de um poder real centralizado, que agora se leva mais a sério e dispensou já o espelho de verdade que era o bobo da corte, as restringem ou fazem desaparecer, pelo menos das igrejas, dando porventura origem às confrarias seculares, as “companhias dos loucos”, que, procedentes agora da burguesia, as continuarão sob a forma de festejos carnavalescos laicos". (BORGES, 2001, p. 32-33).


Gravura representando a festa dos bufos, especificamente durante o cortejo do "papa dos bufos". Percebe-se que o título de "papa dos bufos" era uma forma de afronta a Igreja, uma sátira. 
"Não são moderadas nem pudicas as manifestações carnavalescas em que, embora só uma vez por ano, é permitido ao povo miúdo comportar-se à margem de todas as regras; as sátiras para divertimento dos camponeses não poupam palavras obscenas nem descrições das várias vergonhas corporais. A Idade Média vive uma contínua contradição entre o que é afirmado, pregado e exigido como comportamento virtuoso, e os comportamentos reais, frequentemente não ocultados sequer por um véu de hipocrisia. Os místicos pregam a castidade e pretendem-na para os religiosos, mas os novelistas representam frades e monges glutões e dissolutos". (ECO, 2010, p. 15). 

Então vem a pergunta: se todas a pessoas medievais eram cristãs devotas, tementes a Igreja e a Deus, logo, tais festejos não deveriam existir, mas como visto não era bem assim. Inclusive até mesmo clérigos, como subdiáconos, diáconos, frades e até padres, participavam de tais festejos nas ruas, ou chegavam a realizá-los nos monastérios. Aqui se percebe uma divergência na opinião clerical. Os bispos, cardeais e papas eram contra tais festejos, mas não conseguiam bani-los completamente (de fato o carnaval até hoje existe), mas por outro lado, o baixo clero, não via nisso exatamente como algo profano ou imoral. Percebe-se a mudança de valores como comentado anteriormente.

“Como escreve, em 1445, o deão da Faculdade de Teologia da Universidade de Paris, numa carta condenatória dirigida aos bispos e cabidos de França: “Padres e clérigos podem ver-se usando máscaras e aparências monstruosas nas horas do ofício. Dançam no coro vestidos de mulheres, lacaios ou menestréis. Cantam canções licenciosas. Comem chouriços pretos no altar enquanto o oficiante diz a missa. Jogam aí aos dados. Incensam com um fumo fétido procedente da sola de sapatos velhos. Correm e pulam pela igreja, sem corar da sua vergonha. Viajam finalmente pela cidade e seus teatros em miseráveis carruagens e carroças; e suscitam o riso dos seus companheiros e circunstantes através de representações infames, com trejeitos indecentes e versos torpes e libertinos”. (BORGES, 2001, p. 33). 


Algo que deve espantar alguns leitores é o fato de clérigos participarem desses "festejos carnavalescos", pois se tem em mente que "todo" o clérigo deveria zelar pelo bom comportamento e ser um modelo de cristão devoto. No entanto, isso nunca foi uma regra mesmo no período medieval. No século XIII, quando São Francisco de Assis fez seus votos de pobreza, era uma forma de criticar o luxo da Igreja. De fato várias ordens procuraram seguir essa tendência da simplicidade e humildade, pois Cristo foi um simples carpinteiro, e porque sua "Igreja" deveria ser um antro de ostentação e luxo?

O já mencionado cardeal César Barônio quando criticou o pontificado dos papas no século X, desaprovou a vida mundana que os papas, cardeais e bispos levavam naquela época. Eles eram corruptos, cometiam o nepotismo, eram avarentos, gananciosos, não obedeciam o voto de celibato, possuindo amantes, esposas e filhos; viviam em luxuosas casas ou palacetes. Tal conduta imoral, ainda se manteve ao longo da Idade Média e da Idade Moderna. 

"De todas as contradições que a vida religiosa desse período apresenta a de mais difícil solução é a do confessado desprezo pelo clero, um desprezo que, como uma corrente não visível à superfície, se desenvolve paralelamente com o maior respeito pela santidade da vida sacerdotal. A alma das massas, ainda não inteiramente cristianizada, nunca esquecera a aversão que o selvagem sente contra o homem que não tem de lutar e que deve permanecer casto. O orgulho feudal do cavaleiro, campeão da coragem e do amor, fazia corpo, neste ponto, com o instinto primitivo do povo. A mundanidade dos mais categorizados membros do clero e a deterioração dos de mais baixo grau fizeram o resto. Daqui provinha que os nobres, os burgueses e os vilãos tivessem desde há muito alimentado esse ódio com sarcasmos dirigidos aos monges incontinentes e aos padres beberrões. Ódio é a palavra exacta a usar neste contexto, pois de ódio se tratava, latente, geral e persistente. Nunca o povo se cansava de ouvir criticar os vícios do clero". (HUIZINGA, 20 , p. 133-134). 

Mas além das críticas a falta de boa conduta dos clérigos, da falta de obedecerem os votos, principalmente os votos de celibato; de viveram no fausto; as pessoas também criticavam as ordens mendicantes, zombando seus votos de pobreza. 

"Há neste ódio especial aos frades pedintes a indicação de uma importantíssima mudança de ideias. A concepção formal e dogmática da pobreza tal como foi exaltada por S. Francisco de Assis e como foi seguida pelas ordens mendicantes já não estava de harmonia com o sentimento que começava a nascer. O povo começava a encarar a pobreza como um mal social e não como uma virtude apostólica. Pierre d'Ailly opunha às ordens mendicantes o «verdadeiro pobre», vere paupers. A Inglaterra, que primeiro que as outras nações se mostrou atenta ao aspecto econômico das coisas, deu, nos fins do século XIV, a primeira expressão do sentimento da santidade do trabalho produtivo nesse fantástico e comovente poema chamado The Vision of William concerning Piers Plowan". (HUIZINGA, 1978, p. 134).

O curioso que hoje em dia, as opiniões não mudaram tanto. Canso de ouvir as pessoas falarem que querem ficar ricas, e assim não precisariam trabalhar e aproveitariam a ociosidade e a vida mundana. Na Idade Média isso não foi incomum, pois pensar que os servos nos feudos eram contentes com sua vida pobre e penosa, é muita ingenuidade. Da mesma forma que os pobres de hoje querem ficar ricos, naquele tempo, eles tinham a mesma noção; assim como, oposto também ocorria; a nobreza não queria ficar pobre ou viver de forma contida e humilde, embora houvesse exceções como no caso do imperador Carlos Magno, conhecido por não ser afeito a ostentação, luxo e extravagâncias, mas ser um homem simples. 

Não obstante, essa mudança de pensamento também levou a surgir no século XII a ideia de Purgatório, pois se as pessoas procuravam seguir um caminho que oscilava entre o correto e o incorreto, entre o casto e o libertino, entre o bem e o mal, logo, nem todo mundo seria apto a ir ao Paraíso, estando a maioria da população aparentemente condenada ao Inferno, o que incluía os próprios clérigos. 


Quadro retratando as almas no Purgatório, enquanto rezam e imploraram para serem perdoadas.
Assim o Purgatório surge como um meio termo, um local no Além para o qual as pessoas boas, mas que cometeram excessos ou alguns pecados em vida, devem ir para serem purgadas (purificadas) em fogo, e assim ascenderem ao Paraíso. Tal noção apaziguava vários problemas por parte dos leigos e clérigos que haviam cometidos seus erros e excessos, e agora temiam que Deus não iria perdoá-los. Além disso, o Purgatório também era uma forma de convencer os pagãos nos quais não possuíam uma ideia clara entre Céu e Inferno, como foi o caso de alguns povos celtas, os quais concebiam uma ideia de pós-vida igual para todo mundo, independente de ser bom ou mal. 

Durante o pontificado de São João Paulo II (1978-2005) Bento XVI (2005-2013) ambos reconheceram que o Purgatório nunca foi um lugar físico, mas uma metáfora para se referir a um "fogo interior que queima em nós"; em outras palavras, o "purgatório" seria o nosso arrependimento em aceitar que falhamos com Deus, e agora devemos nos corrigir para voltar a ter a sua graça. 

Pergunta: As pessoas do medievo eram supersticiosas e fanáticas?

Resposta: Sim. 

Para se entender a resposta dessa pergunta deve se ter cautela. Superstições e fanatismos existem ao longo da História e ainda hoje estão presentes, mesmo num mundo cada vez mais dito "científico". Logo, dizer que a Idade Média foi a época de maior superstição e fanatismo religiosos é um equívoco, pois em dados momentos tais características eram mais visíveis e latentes, e outros momentos eram pouco claras e até pareciam ter sumido. Curiosamente a Idade Moderna, em alguns momentos foi mais conservadora e fanática do que a Idade Média. 

Na Idade Média como na Antiguidade e na Modernidade, as pessoas possuíam vários medos, neste caso, não foi incomum as pessoas evitarem de sair à noite, por não apenas temer o ataque de bandidos, lobos e ursos, ou acabarem tropeçando e se ferindo; mas também temer serem atacadas por bruxas, feiticeiros, fantasmas, demônios, zumbis, vampiros, lobisomens, etc. (sendo que as lendas sobre zumbis, vampiros, lobisomens e bruxas surgem no final da Idade Média, sendo mais comum eles terem medo de fantasmas e demônios). No medievo à noite foi associada ao momento sombrio do dia, pois era o momento no qual os servos de Satanás saíam do Inferno para aterrorizar a população.

"A Bíblia já expressara essa desconfiança em relação às trevas comum a tantas civilizações e definira simbolicamente o destino de cada um de nós em termos de luz e de escuridão, isto é, da vida e da morte. [...]. O próprio Cristo precisa atravessar a noite de sua paixão. Chegada a hora, entrega-se às ciladas da escuridão (João 11: 10), na qual se entranha Judas (13, 30) e se dispersam os discípulos". (DELUMEAU, 1989, p. 97). 


Pintura medieval retratando os cinocéfalos, os homens com cabeça de cachorro. O mito dos cinocéfalos advém da Antiguidade, vindo da cultura greco-romana, no entanto, tais histórias desse povo fantástico foram preservadas no medievo.
As pessoas também temiam ogros, duendes, fadas (dependendo do povo, as fadas não eram criaturas boazinhas), homens-selvagens e outros diferentes tipos de monstros, alguns bastante inusitados. Isso levou ao surgimento dos famosos bestiários, espécie de enciclopédia sobre animais e seres fantásticos. Nesses livros os autores representavam animais reais, os quais eram geralmente provenientes da África e da Ásia como elefantes, leões, leopardos, tigres, hienas, hipopótamos, rinocerontes, girafas, etc., sendo pouco conhecidos dos europeus; mas também representavam animais lendários e mitológicos. De fato não há como saber se quem lia ou via um bestiário achasse que todas as criaturas ali representadas fossem reais, porém, lenda sobre unicórnios, fênix, gigantes, anões, ogros, fadas, grifos, gárgulas, manticoras, basiliscos, sereias, dragões foram bastante populares. 


Imagem do Bestiário Harley (BL Harley MS 3244), datado entre 1236 a 1250. Nessa página se ver um elefante e um dragão. 
Além dos bestiários surgiram também os livros de demonologia, obras nas quais procuravam construir uma hierarquia sobre os demônios. Sem contar que se faziam o mesmo para os anjos. A obsessão do homem medieval pelo Céu e o Inferno levaram alguns clérigos a criarem obras bastante peculiares, como listas contendo o nome de anjos e suas hierarquias, e listas com o nome de demônios e suas hierarquias. 

Mas além dessa superstição acerca de uma gama de monstros, as pessoas do medievo ainda continuavam a temerem eclipses solares e a passagem de cometas. Embora que hoje em dia tem gente que se assusta com esses fenômenos celestes. Em vários momentos nos quais se viram eclipses e a passagem de cometas, há relatos de que algo de ruim depois ocorreu; talvez seja exagero dos cronistas clericais ou mera coincidência, mas o que se sabe é que tais fenômenos causavam medo em algumas pessoas ou poderiam ser interpretados com um bom presságio, mas em geral prevalecia a conotação negativa.


Detalhe da famosa Tapeçaria de Bayeux (séc. XI). Aqui se ver alguns homens no lado esquerdo apontando para um cometa. Em questão tratou-se do Cometa Halley, o qual passou pela Terra no ano de 1066. 
Na Tapeçaria de Bayeux o Cometa Halley foi interpretado pelos normandos, povo de origem viking, mas que habitava a Normandia no noroeste da França, como sendo um sinal de bom agouro. Posteriormente naquele ano o nobre Guilherme, o Conquistador (c. 1028-1087) invadiu a Inglaterra e derrotou o rei inglês, tornando-se o novo soberano do país. Sua vitória foi considerada um presságio do Cometa Halley. Todavia, para os ingleses a visão do cometa era de que algo de ruim estava por ocorrer (e de fato ocorreu). 

Mas como foi dito, em geral a visão de cometas era sempre associada a algo ruim. Em outra passagem do Halley, mas vários séculos antes, ocorrendo no ano de 530, os bizantinos consideraram que a grande seca e fome do ano de 536 foi culpa do cometa, mesmo ele tendo passado seis anos antes (LOYN, 1990, p. 101). 

Outra causa de superstição comum durante a Idade Média, foi o uso dos ordálios, que em termos práticos, seriam os julgamentos com base em intervenção divina, o chamado "juízo de Deus" ou "juízos divinos"

"Os ordálios têm uma história antiga e obscura: provavelmente chegaram da Índia à Europa central, onde foram adotados pelos povos germânicos. De qualquer modo, quando estes povos invadiram o resto da Europa e criaram seus reinos, o sistema germânico dos ordálios difundiu-se por todo o continente; tornou-se mais comum o "sistema probatório", tanto para controvérsias penais como para civis (também porque, em muitos casos, e por algum tempo, essa distinção não era totalmente clara)". (TARUFFO, 2012, p. 19). 

A base para o funcionamento do ordálio seria a fé, neste caso, a pessoa era sujeitada a passar por algum tipo de teste, caso ele ou ela estivesse dizendo a verdade, a pessoa não seria reprovada no teste, pois sua palavra era verdadeira e Deus não deixaria o inocente sofrer uma injustiça. 

Os testes de ordálio variavam de acordo com o lugar, época e a classe social, ou seja, os ricos não fariam os mesmos testes que servos. Além disso, os ordálios preferencialmente deveriam ser realizados na presença de um padre, o qual seria responsável por consagrar os objetos usados durante a prova. 

Entretanto os ordálios podiam consistir em provas que iam desde por a mão na água fervente, andar sobre brasas, pegar em uma barra de ferro incandescente, beber uma poção que lhe forçaria o vômito, ser jogado num rio ou lago e ter que afundar, resistir a exposição do frio, ser posto diante de uma cruz, duelar, etc. Se a pessoa não se ferisse, afunda-se, não vomita-se, não desistisse, etc., seria considerada inocente. Já que Deus não iria castigar aqueles que diziam a verdade.


A prova de fogo. Autor: Dierec Bouts, o Velho. século XV. Nessa pintura vemos uma mulher da nobreza segurando com a mão esquerda uma barra de ferro incandescente, enquanto na mão direita sustenta a cabeça de um homem. Não sabemos os detalhes da pintura, mas parece que a mulher estava se sujeitando ao ordálio, a fim de provar que não havia matado aquele homem.  
Mas além dos ordálios acima mencionados, o emprego de testemunhas ou grupo de testemunhas também foi usual, e em alguns casos os juízes preferiam fazer uso destes do que dos ordálios. O arcebispo de Lyon, Agobardo de Lyon (769-840) foi um forte opositor ao uso dos ordálios, escrevendo acerca destes como sendo superstição. Todavia houve vários clérigos ao longo do medievo que defenderam a racionalidade dos ordálios, pois significava um fator de fé; logo, os cristãos deveriam ter fé em Deus, para provar sua inocência. 

No entanto, a prática dos ordálios começou a cair desuso por volta do século XI e nos séculos seguintes foi proibida por decretos papais. Em 1215, no IV Concílio de Laterano, o papa Inocêncio III proibiu o uso de ordálios e a participação de clérigos nessas provas judiciais. (TARUFFO, 2012, p. 18). 

Outro motivo de superstição esteve associado a magia e a bruxaria. Bruxas, feiticeiras, magos, etc., existem desde a Antiguidade em vários cantos do mundo e necessariamente não estavam associados apenas a maldade, mas também ao bem. Todavia, o Cristianismo passou a reconhecer na magia um duplo sentido: práticas herdadas do paganismo, ou seja, superstição e crendice; mas também, práticas usadas para se fazer o mal; daí a bruxaria e a feitiçaria foram associadas ao Diabo (LOYN, 1990, p. 136). 

Entretanto, a magia depois foi reavaliada pelos cristãos, dando origem a chamada magia negra (usada para o mal) e a magia branca (usada para o bem). Essa mudança se deu pelo fato de que os cristãos também praticavam magia, lembrando que durante a conversão dos pagãos, estes não abandonaram suas antigas crenças, e a magia sempre foi algo associado a várias religiões do mundo. Assim, apenas se fazia uma conversão, um sincretismo ou hibridismo religioso. 

A magia branca era aquela magia associada a esfera do religioso e do erudito. O uso de amuletos de proteção; medalhões de boa sorte; uso de plantas ou objetos para espantar mal-olhado, fantasmas, demônios, etc.; a ideia de que símbolos religiosos como a cruz e o crucifixo deteriam poderes mágicos para expulsar demônios, conjurar luz nas trevas ou afugentar monstros; a ideia de que relíquias sagradas ao serem tocadas poderiam proporcionar cura instantânea; o toque de cura dos reis taumaturgos, nos quais supostamente os reis ao tocarem os doentes os curaria.

Na esfera do erudito a magia branca esteve associada aos estudos principalmente da astrologia e da alquimia, conhecimentos pseudocientíficos levados a sérios por vários estudiosos laicos ou clérigos. No século XIII, o frade inglês Roger Bacon (1214-1294), ficou conhecido por ter sido um clérigo dedicado aos estudos da filosofia, matemática, geografia, física e da alquimia. Sua vocação a erudição lhe rendeu o título de Doutor Mirabilis (Doutor Admirável). Outros dois clérigos que também demonstraram interesse pela alquimia (não significa que praticassem alquimia, mas gostavam de ler a respeito) foram São Alberto Magno (ca. 1193-1280) e São Tomás Aquino (1225-1274). 

Embora é importante salientar que a Igreja possuía uma opinião dividida quanto ao estudo da alquimia e da astrologia. Ora alguns se mostravam mais conservadores, principalmente antes do século XIII, houve uma forte resistência dos clérigos em reconhecer a alquimia e astrologia como saberes não heréticos, profanos e supersticiosos. Por exemplo, São Alberto Magno tinha interesse em astrologia, mas Santo Agostinho de Hipona (354-430) foi contrários ao estudo da astrologia, considerando-o superstição de povos pagãos, farsa, crendice e até chegou a cogitar ser algo criado pelo Diabo (LOYN, 1990, p. 85-86). 


Dois homens debatendo acerca de astrologia ou astronomia, pois na Idade Média os dois saberes eram indissociáveis. Foi a partir do século XVII que começou a se separar a astrologia da astronomia. 
Embora Santo Agostinho tenha vivido antes da Idade Média, vários clérigos adotaram sua opinião nos séculos seguintes. Os estudos astrológicos só começaram a despontar no medievo no século XIII em diante, quando ocorreu as mudanças de opinião e postura da Igreja sobre o mundo, ao mesmo tempo que textos gregos e romanos começaram a serem traduzidos, saindo da esfera da biblioteca monástica para entrar na biblioteca particular e ali ser traduzido para um público pequeno, mas que tinha interesse e curiosidade. 

"No período final da Idade Média, a astrologia foi usada em grande escala para predizer acontecimentos: em 1337, por exemplo, Godofredo de Meaux previu fome e distúrbios em conseqüência do aparecimento de um cometa e, como tantos outros, atribuiria a Peste Negra a uma conjunção planetária maligna. A Guerra dos Cem Anos também proporcionou aos astrólogos uma oportunidade de ouro para prever acontecimentos, e Carlos V da França tinha muitos a seu serviço. O uso de prognósticos astrológicos em medicina também era generalizado, e influía em matérias tais como o diagnóstico e a cura de doenças, assim como a data mais propícia para efetuar uma cirurgia. Entretanto, críticos como Tomás de Aquino tiveram seus sucessores. No começo do século XIV, o papa condenou algumas noções astrológicas como parte de sua ofensiva contra a magia e a bruxaria; e, cerca de 50 anos depois, Nicolau d’Oresme negou com veemência a influência do oculto e criticou a astrologia do seu tempo como perniciosa e desorientadora". (LOYN, 1990, p. 87).

Todavia, também foi a partir do século XIV que as ideias de bruxaria e feitiçaria se tornaram mais claras e até mesmo passaram a serem reconhecidas e normatizadas pela Igreja, pois antes disso, embora houvesse perseguição a bruxas, feiticeiras, magos, necromantes, etc., as pessoas as vezes não sabiam como identificar uma bruxa de uma pessoa normal, pois o imaginário das bruxas como mulheres velhas, feias, narigudas e com verrugas é uma construção desenvolvida por volta do século XV e continuada posteriormente. Embora que a associação do gato preto e da vassoura datem do século XIII. 

"Tornou-se corrente a noção de que os possuidores de saber, ou magos, podiam invocar espíritos, controlá-los por meio de conjuros ou feitiços, e usá-los para seus próprios planos e desejos. Tal desenvolvimento foi vigorosamente atacado pela Igreja: o papa João XXII, na bula Super Illius Specula, promulgada na década de 1320, condenou a magia ritual como diabolismo e heresia. A sociedade ocidental estava cada vez mais propensa a sentir-se insegura e ansiosa a respeito dos poderes do Mal e, como as provas apresentadas no julgamento de supressão dos Templários (1307-14) pareciam demonstrar, menos inclinada a rechaçar a magia como irreal. Como o processo provou, o ataque clerical à magia foi um importante fator na formação de idéias posteriores sobre bruxaria. As crenças populares sobre magia sempre tinham existido, indo desde a magia branca até a feitiçaria. Na tentativa de incutir um certo nexo a esse conjunto amorfo de idéias populares durante o século XIV, a Igreja chegou gradualmente à conclusão de que toda a feitiçaria envolvia um pacto implícito com o demônio. Em 1398, a Universidade de Paris condenou a bruxaria como idolatria e heresia, e vinculou assim, de modo inelutável, a bruxaria ao diabolismo". (LOYN, 1990, p. 137-138). 

Embora a caça às bruxas pelo Cristianismo tenha se iniciado na Idade Média, foi na Idade Moderna que ela alcançou seu auge como veremos adiante, quando for tratado a questão das Inquisições. Ainda no medievo houve várias bruxas que foram perseguidas, banidas e mortas, mas tal perseguição necessariamente não era feita apenas pela Igreja, a população cristã no geral, se considerasse uma mulher ser suspeita de bruxaria, poderia com as próprias mãos enforcá-la, decapitá-la ou queimá-la, sem necessitar da intervenção da Igreja ou de algum clérigo. Vemos aqui o fanatismo religioso agindo de forma cruel e inconsequente. 

Pintura medieval do século XIV, retratando a tortura e execução de bruxas na fogueira. 
O problema é que muitas mulheres inocentes foram dadas como bruxas. Lembremos do famoso caso de Santa Joana D'arc, queimada viva na fogueira pela Inquisição episcopal da Normandia, no ano de 1431. Na ocasião entre os crimes de bruxaria pelos quais foi acusada, não esteve o de praticar magia, mas por ouvir vozes as quais Joana dizia ser de anjos, mas os bispos interpretaram como sendo a voz do Diabo. Em 1456, o papa Calisto III reconheceu que a inquisição havia gravemente errado, e Joana foi acusada e morta injustamente. 

Geralmente curandeiras e parteiras, ou seja, mulheres que tinham conhecimentos de medicina natural, pois sabiam fazer medicamentos, emplastros, poções, infusões, etc., saberes esses, antigos e difundidos pelos povos pagãos, foram considerados por muitos cristãos como sendo magia, pois o médico era o profissional "oficial" para tratar dos doentes, o curandeirismo era supersticioso e mágico como se pensava na época (e embora que ainda hoje se pense assim também). Logo com a associação da magia negra como sendo algo do mal, as mulheres que eram suspeitas de bruxa, em geral era mortas. 

No entanto, como Loyn (1990, p. 137) chamou a atenção: não podemos generalizar que toda mulher curandeira e parteira fosse vista como bruxa. Dependendo do local, o fanatismo poderia ser grande ou poderia nem existir. Loyn aponta para regiões da Inglaterra, onde a magia era vista como algo normal e a ideia de bruxa necessariamente não nera negativa.

Outro motivo que reforçava a crendice de que mulheres estranhas, que tinham conhecimento botânico e medicinal poderiam ser bruxas, advém do próprio preconceito que a Igreja medieval desenvolveu com as mulheres. Pois embora houvessem bruxos, magos, feiticeiros e necromantes, em geral as pessoas perseguidas por causa de magia negra eram mulheres. Isso se deve ao fato de que alguns clérigos mais radicais enxergavam na mulher uma figura de tentação: a mulher é o caminho para a luxúria; a luxúria é um dos pecados capitais; o pecado é obra do Diabo. Mas além dessa associação ao pecado da luxúria, a tentação e a sedução, a mulher que praticava magia negra, era diabolizada e associada como seguidora de Satanás (visão essa que se tornou mais comum no século XV, pois antes não havia essa associação direta). 

Um outro aspecto associado ao imaginário medieval foi o medo da Peste Negra, a qual no século XIV foi uma das maiores calamidades que se abateu sobre a Europa. Como a população cristianizada era bastante influenciada pela ideia do divino e do sobrenatural, uns alegavam que a peste era uma punição enviada por Deus para assolar a humanidade por causa de suas ofensas e pecados; outros diziam que Deus era bom demais para fazer isso, e a peste era uma maldição enviada por Satanás; mas havia aqueles que independente de se foi Deus ou o Diabo que enviou a peste, se perguntavam onde estava Cristo e Deus naquele momento de terror? Porque deixavam seus filhos perecerem de forma tal agonizante?


O triunfo da morte. Peter Brugel, 1562. Nesse quadro o pintor tentou imaginar como teria sido o macabro cenário durante os surtos da Peste Negra, os quais os relatos falam sobre centenas e até mesmo milhares de mortos em questão de semanas. 
No entanto, além da imagem de Deus e do Diabo, outras supostas referências a peste surgiram. O historiador Jean Delumeau (1989, p. 112-130),  estudou esse imaginário sombrio sobre a Peste Negra, também chamada de "A Morte Negra". Algumas pessoas diziam que a peste era causada por gases venenosos vindos do subterrâneo; outros falavam de um misterioso fogo fátuo que sobrevoava os campos ou pairava no céu; uns falavam que haviam visto anjos ou demônios atirando setas envenenadas; outros falavam que a peste era resultado da tristeza, sendo um "ar ruim" que assolava as pessoas tristes; outros culpavam os estrangeiros, dizendo que ciganos e judeus haviam disseminado aquela praga. 

Um outro aspecto que remete também a superstição e ao fanatismo dizia respeito a chegada do Apocalipse. O último livro da Bíblia, o Livro do Apocalipse ou Livro das Revelações escrito por São João, é um dos livros mais polêmicos da Bíblia, por falar do fim dos dias terrenos, a chegada do Armagedon e o Juízo Final. O problema é que o Apóstolo João nunca disse em que ano o Apocalipse irá ocorrer, apenas deixou através de metáforas e simbolismos, pistas de sinais que indicariam a chegada desse tempo. Todavia, ao longo da história cristã até os dias de hoje sempre houve/há gente, seja clérigo ou leigo dizendo que teve visões ou sinais de que Deus havia lhe revelado o dia do Apocalipse. Na Idade Média isso não foi diferente. 

Os falsos profetas causaram problemas na época, aterrorizando a população e dando trabalho para a Igreja, a qual procurava desmentir essas falsas profecias e combater esses charlatões que as vezes acabavam por criar suas próprias seitas e "igrejas". Tais movimentos surgiram ao longo do medievo em distintos locais, as vezes estavam associados a eventos naturais como eclipses solares, passagem de cometas, surtos de fome, pragas, invernos rigorosos, etc., os quais os falsos profetas entendiam como sendo "sinais do Apocalipse", então passavam a pregar para suas comunidades que o dia do Juízo Final estava à caminho. Tais movimentos foram chamados de milenarismo

"Crenças milenaristas ou quiliásticas (termos derivados das palavras latina e grega para um milhar) existiram na Igreja primitiva e receberam renovado impulso quando se avizinhou o ano 1000. As principais idéias envolvidas estavam relacionadas com “a segunda vinda do Cristo”, a noção de um período apocalíptico de luta entre o Cristo e o Anticristo, entre o Messias e Satã, e o estabelecimento de uma nova Jerusalém na Terra. Elementos do pensamento milenarista subsistiram ao longo de toda a Idade Média, na maioria dos movimentos reformistas religiosos, e estavam normalmente associados a uma excessiva austeridade, a uma expectativa de um final catastrófico para a sociedade existente, e coincidindo, com freqüência, com períodos de intensa convulsão econômica e social". (LOYN, 1990, p. 519). 

Houve vários movimentos milenaristas, alguns bem pequenos, ocorrendo em localidades isoladas e outros maiores, os quais ganharam adeptos em vários países. Hilário Franco Júnior (1999, p. 40) aponta que embora a principal base desses movimentos milenaristas fosse o Livro do Apocalipse de São João, ele salienta que no medievo havia pelo menos outras 20 versões apócrifas que faziam referência ao Apocalipse. Algumas desses livretos mesclavam as profecias do livro bíblico, e outros apresentavam visões e acontecimentos bem diferentes, mas todos tinham em comum a vinda do Anticristo, de Jesus Cristo e de Satanás. 

Assim, dependendo do lugar onde os movimentos milenaristas se formavam, seus líderes e seguidores poderiam fazer uso dessas distintas versões e até mesmo usar várias delas. Porém, como em geral as pessoas não sabiam ler, logo, eles acreditavam no que os líderes dessas seitas diziam, além de haver também esculturas e pinturas que faziam referência ao Apocalipse. 

Nos últimos anos do século X, os movimentos milenaristas começaram a ganhar mais força, pois acreditavam que a chegada do ano 1000, daria início aos chamados "mil anos do governo de Satanás na Terra" e os "mil anos do governo de Jesus Cristo", pois terminado esse milênio, daria-se início ao Juízo Final. O problema é que a Igreja recusou totalmente essas crenças, alegando que na Bíblia não havia data para quando iria ocorrer o Apocalipse, e as pessoas estavam interpretando errado aquela profecia. 

Com a passagem do ano 1000 e com o suposto início do Apocalipse não ocorreu, um novo bafafá se instaurou entre as seitas e as pessoas que aguardavam aquele momento, logo, começaram a predizer novas datas, entre as quais o ano 1033, o qual fazia referência aos mil anos após a ressurreição de Cristo. Todavia, o século XI terminou e nada do fim dos tempos ter chegado, mas isso não impediu que novos movimentos e seitas surgissem nos séculos seguintes. 

"São de inspiração apocalíptica os movimentos dos flagelantes, que surgem em Itália no século XIII, num clima de ortodoxia, e se transferem para a Alemanha como movimento anárquico-místico de fundo revolucionário; de clara derivação apocalíptica serão os Irmãozinhos do Livre Espírito, ou beguinos, que se difundem na Europa do século XIII em diante, e os amauricianos, sequazes de Amaury de Bène… A Idade Média é várias vezes percorrida por estes ventos de revolta, em que um grupo se considera a única igreja legítima – legitimando-se com o seu rigorismo (que, estranhamente, desembocava com frequência na licença, como se a consciência da sua perfeição espiritual lhes consentisse maior despreocupação no trato com as misérias da carne)". (ECO, 2010, p. 20). 

Seita dos Flagelantes, bastante em voga nos séculos XIII e XIV. A seita ou movimento surgiu no final do século XIII, na Itália, se espalhando por vários Estados italianos e depois migrando para Áustria, França, Sacro Império (Alemanha), Polônia, Hungria, etc. 


Gravura representando uma procissão de flagelantes. Ainda hoje em alguns locais do mundo ocorrem tais procissões. 
Os flagelantes como eram chamados, costumavam fazer apresentações públicas de autoflagelação, eles ficavam numa praça, num terreno aberto ou percorriam as ruas, enquanto açoitavam as costas durante todo o tempo que ali permaneciam. A ideia era que através da dor intensa, isso expiaria seus pecados e Deus os salvaria. Em momentos de crise como a Peste Negra, grupos de flagelantes surgiam a todo momento, pois acreditavam que daquela maneira ou conseguiriam sobreviver a peste, ou caso morressem, iriam para o Céu, pois lembrando que alguns achavam que a peste era uma praga do Diabo. 

Por outro lado, em meio a essas histórias sobre o advento do Apocalipse, do Juízo Final pregado por alguns clérigos e por leigos, que deram origem a seitas ou movimento, histórias sobre o Anticristo também se tornaram recorrentes. 

"No texto bíblico, antichristus aparece somente quatro vezes, usado por um único autor, e apenas em sentido genérico, indicando qualquer adversário de Cristo. No entanto, diante do crescimento das expectativas apocalípticas, a palavra passou a designar um personagem específico, ao qual se atribuiu uma biografia. Esta foi construída com dados de origem variada. Alguns vinham de antiquíssimas tradições orientais, outros foram extraídos do Antigo Testamento, outros vieram da literatura apocalíptica judaica, outros de apocalipses apócrifos cristãos, outros, enfim, eram adaptações ou inversões de referências relativas à vida terrena de Cristo". (FRANCO JÚNIOR, 1990, p. 42-43). 


Gravura em madeira, de 1498, retratando o Anticristo e seus seguidores. 
Algumas lendas medievais instituíram toda uma cronologia acerca do Apocalipse, logo, encontram-se relatos falando do governo do Imperador dos Últimos Dias, um líder cristão que iria governar sobre vários povos cristianizados e inclusive levaria o cristianismo a outros povos. Seu reinado seria de 112 meses ou 12 anos, mas sendo pacífico e próspero, e com o término deste, o Anticristo iria tomar o seu lugar e daria início ao seu breve governo de mentiras (algumas fontes falam que ele governaria por apenas 3 anos). Durante o governo do Anticristo muitos judeus e cristãos seriam iludidos, mas quando ele fosse desmascarado por Jesus ou São Miguel, Satanás entraria em cena, dando início ao Apocalipse (FRANCO JÚNIOR, 1990, p. 42-44, 54-55). 

Um último aspecto a abordar sobre o fanatismo religioso no medievo diz respeito as Cruzadas, pois das inquisições falarei adiante em específico. As Cruzadas mais famosas foram travadas entre o século XI e XIII, cujo projeto inicial era retomar o controle da Terra Santa das mãos dos muçulmanos. Mas além desse projeto religioso de se reaver a posse de Jerusalém e suas cercanias para a cristandade, houve também interesses políticos, econômicos e pessoais (FRANCO JÚNIOR, 1989, p. 10).

Todavia, o que quero destacar aqui diz respeito ao fanatismo por parte de alguns clérigos e militares. Não podemos considerar que todo homem que lutou nas Cruzadas fosse ele soldado, arqueiro ou cavaleiro, fosse fanático ou lutou por fé. Não. De fato, o exército era uma forma de conseguir emprego e uma maneira de "fuga". Em alguns locais da Europa, as pessoas estavam passando por dificuldades, logo, alguns homens enxergavam o alistamento voluntário como uma fuga daqueles problemas, e também um emprego temporário até que conseguissem arranjar outra coisa (FRANCO JÚNIOR, 1989, p. 12-13). Assim, encontramos homens que partiram para as Cruzadas, motivados por questões pessoais de honra, glória e riqueza.


Pintura medieval representando a tomada de Jerusalém em 1099 durante a Primeira Cruzada (1096-1099). 
Porém, havia aqueles que eram motivados por questões de fé, os quais acreditavam que as Cruzadas eram "guerras justas" e/ou "guerras santas"; que eles estavam seguindo a mando de papas ou de reis para salvar a Terra Santa, e converter os judeus e muçulmanos. Mas alguns fanáticos não tinham interesse em salvar os chamados "infiéis" ou "hereges", mas de massacrá-los por serem considerados "inimigos da Igreja de Deus", como foi o caso do próprio papa Urbano II o qual decretou a Primeira Cruzada em 1096. No discurso feito por ele no ano anterior, a fim de convocar a nobreza europeia para partir na Cruzada, Urbano II proferiu um discurso de intenso ódio contra os muçulmanos. 

"As relações homem-Deus passaram a ser concebidas como relação vassalo-senhor feudal. O homem recebera a Terra como feudo do Senhor (como o vassalo recebia a terra do seu senhor), e em troca precisava, como qualquer vassalo, ser-Lhe fiel e prestar serviço militar (combatendo os inimigos de Deus)". (FRANCO JÚNIOR, 1989, p. 29). 

Pelo viés do pensamento fanático religioso, as Cruzadas foram uma forma pelas quais os homens pecadores poderiam ter seus pecados perdoados caso decidissem ajudar naquela "nobre missão". No próprio discurso do papa Urbano II ele salienta isso ao dizer que todos aqueles que deixassem suas casas, famílias e terras, e pegassem a espada, o escudo e vestissem o manto da Igreja, estando dispostos a arriscarem suas vidas pela glória de Deus, saibam que os anjos iriam levar sua alma ao Paraíso. Se hoje criticamos a chamada "lavagem cerebral" que alguns terroristas muçulmanos sofrem para se dedicarem de corpo e alma aos planos do grupo que pertence, nas Cruzadas há mais de setecentos anos, isso não foi diferente.

Pergunta: A Igreja Católica sempre foi hegemônica durante a Idade Média?

Resposta: Não. 

Para responder essa pergunta temos que vê-la de dois pontos de vista: um o que seria hegemonia? Seria dizer que a Igreja sempre controlou os Estados cristãos? Que a Igreja nunca teve sua palavra questionada por alguma autoridade monárquica ou até mesmo eclesiástica? Segundo, hegemonia significa que toda a Europa estava o tempo todo, sob a tutela da Igreja Romana?

A partir desses dois pontos de vista podemos prosseguir com a explanação dessa pergunta. Nos seis primeiros séculos da história do cristianismo, várias vertentes cristãs surgiram, o que revela uma desconexidade de opiniões e interpretações dos Evangelhos, pois cada vertente deu origem a seitas e/ou "igrejas" as quais possuíam opiniões contrárias a Igreja Romana e as demais seitas. Com isso a Igreja Romana as declarou seitas heréticas, por pregarem o cristianismo de forma distorcida. 

Neste caso, muitas dessas seitas prevaleceram durante a Idade Antiga, na Europa, África e Ásia, não chegando a atingir o medievo, mas algumas delas chegaram aos primeiros séculos da Idade Média, vindo a causar problemas para a Igreja Romana. Entre as várias seitas heréticas da época, destacaremos as principais.

Do século V ao VII o número de arianos, ou seja os seguidores do Arianismo, seita desenvolvida por Ário (c. 250-336) em Alexandria, rapidamente ganhou adeptos na Europa e na Ásia, embora que na mesma época a Igreja a reconheceu como uma heresia, e chegou a excomungar Ário. O foco principal da doutrina defendida por Ário, era que Jesus Cristo foi apenas um homem imbuído de realizar milagres, mas não possuindo seu lado divino. Assim sendo, ele não seria a encarnação terrena de Deus, mas seria um homem santo. Neste ponto, Ário negava a Trindade. 

Todavia, o Arianismo embora tenha sido condenado como heresia no século IV, ele ainda ganhou muitos adeptos principalmente na Ásia Menor e no leste europeu, logo, os padres responsáveis pela catequização de alguns povos germânicos como foi o caso dos Godos, os doutrinaram com base na doutrina ariana, não sendo à toa, que no século VI, São Leandro teve que combater a propagação do arianismo entre os visigodos na Hispânia (Espanha). Após o século VI o arianismo praticamente sumiu. 


São Leandro de Sevilha foi responsável por combater o arianismo bastante difundido entre os visigodos cristãos da Espanha. No final do século VI, ele conseguiu que os visigodos gradualmente passassem para o catolicismo.
O Nestorianismo foi uma seita desenvolvida por Nestório (c. 386-451), Patriarca de Constantinopla (428-431). Embora não tenha se difundido muito na Europa, o nestorianismo foi bastante forte na Ásia a ponto de ter perdurado por séculos, inclusive no século VII deu origem a igrejas cristãs, chamadas "Igrejas do Oriente", as quais eram embasadas na doutrina nestoriana, que por sua vez não reconheciam a autoridade da Igreja Romana.

Mas no caso das heresias surgidas durante a Idade Média na Europa, podemos destacar: 
  • Iconoclastia: movimento surgido no século VIII, no Império Bizantino, que perdurou até o século seguinte. Alguns clérigos mais radicais começaram a atacar o uso de imagens de santos, da Virgem Maria e de Jesus, alegando que se tratavam de objetos para idolatria. A iconoclastia num período de quase cem anos foi bastante forte, embora teve sua área de atuação quase que limitada a Europa oriental e a Ásia Menor. Nos períodos de maior eferverscência, igrejas e santuários eram invadidos e suas imagens de qualquer tipo, eram destruídas. 
  • Bogomilismo: seita gnóstica cristã surgida com o padre búlgaro Bogomilo, a qual se difundiu pelo século X. Sua doutrina pregava ideias maniqueístas quanto a Deus; que Jesus não teria possuído um corpo físico, logo, não teria sofrido na cruz; criticava os dogmas católicos, etc. 
  • Milenarismo: consistiu em vários movimentos pequenos ou grandes que pregavam ideias comuns sobre a chegada do Anticristo, o início do Apocalipse, o reino terreno de Jesus, o Juízo Final, etc. Foram bastante atuantes entre os séculos X e XI. 
  • Henricianismo: seita surgida com Henrique de Lausanne (c. 1030-1148) na França do século XII. Lausanne começou a pregar por conta própria por volta de 1116, apresentando uma doutrina que destoava dos dogmas católicos, levando seus seguidores a não obedecerem a Igreja Católica. 
  • Valdemismo: seita surgida com um comerciante francês de nome Pierre Vaudés, o qual no ano de 1176, largou toda a sua riqueza, passando a fazer voto de pobreza. Por sua vez, como era homem letrado e de posses, encomendou uma Bíblia, e passou a pregar pessoalmente a sua comunidade, mesmo não sendo clérigo de formação. Além de pregar por conta própria, Vaudés procurou romper com a Igreja não reconhecendo sua autoridade e sua liturgia, inclusive foi crítico ao uso de imagens nas igrejas. 
  • Catarismo: seita cristã surgida no sul da França no século XII, influenciada pelo Bogolismo e o Paulicianismo (oriundo da Armênia). Basicamente os "cátaros" defendiam a ideia da existência de "dois Deuses", o "Deus do Antigo Testamento" e o "Deus do Novo Testamento", sendo que o "Velho Deus" foi associado a Satanás; logo, Satã era reconhecido como uma deidade, tendo sido responsável não apenas pela maldade, mas pela criação do mundo físico. Recusavam o santos, a eucaristia e o batismo. Pregavam uma livre interpretação das Escrituras, e realizavam apenas um tipo de cerimônia, o Consolamentum. O catarismo foi duramente combatido ao longo do século XII, mas ainda conseguiu se manter até o XIII, sendo talvez a seita herética mais influente do medievo. 
  • Fraticelli: seita de origem franciscana formada por dissidentes dos Frades Menores da Ordem dos Franciscanos. Eram clérigos mais radicais em defender uma Igreja humilde, assim como, defender piamente os votos pregados por São Francisco de Assis a todos os clérigos. Criticaram a Igreja como antro de ostentação e riqueza, alegando que o poder secular havia se corrompido com as riquezas materiais. Foram banidos no século XII, mas ainda continuaram a existir até pelo menos o século XV, mas em pequeno número. 
Embora algumas dessas seitas tenham surgido com base em leigos, não significa que não houve a adesão de clérigos católicos a tais seitas, algo que complicou ainda mais a situação para a Igreja. Diáconos, frades, monges, padres e até bispos aderiram a algumas dessas seitas e passaram a pregar seus ensinamentos durante as missas, e em suas igrejas e dioceses. 

"Por volta de 1149, o primeiro bispo cátaro estabeleceu-se no Norte da França; anos mais tarde, outros estabeleceram-se em Albi e na Lombardia. A autoridade destes bispos não estavam bem definida. O Bispo Nicetas dos bogomilos visitou o Ocidente em 1167, chegando à Lombardia e ao Sul da França. Nos anos seguintes, mais bispos foram se instalando na Itália, e no fim do século já havia onze bispados no total: um no Norte da França, quatro no Sul (Albi, [Pg. 039] Toulouse, Carcassonne, Val d‟Aran), outros dois foram acrescentados mais tarde, e seis na Itália (Concorezzo, perto de Milão, Desenzano, Bagnolo, Vicenza, Florença e Spoleto)". (FALBEL, 1976, p. 39). 

Até aqui vimos que no caso de várias das seitas heréticas surgidas na Idade Média, a maioria questionava a autoridade do clero secular da Igreja Católica, o que revela que diferente do que se pensa, nem todo mundo foi temente a autoridade papal, houve muita gente determinada a confrontar seus dogmas e leis. Mas além dessas seitas houve outros dois casos que abalaram a autoridade da Igreja. No ano de 1054 ocorreu o Cisma do Oriente, no qual a Igreja foi dividia em duas: no Ocidente com sede em Roma, permaneceu a Igreja Católica Apostólica Romana; no Oriente com sede em Constantinopla (atual Istambul), surgiu a Igreja Ortodoxa Grega. Não irei abordar os motivos do cisma, pois é um assunto extenso e demandaria um texto próprio para ser debatido. Mas um dos fatores que levou a essa separação deveu-se a críticas internas quanto ao posicionamento da Igreja Romana em estar se afastando dos ensinamentos bíblicos. 

O outro caso que abalou a autoridade da Igreja, foi a Santa Sé de Avignon. No ano de 1309, o então papa Clemente V recém-eleito para o pontificado, conseguiu vencer o conclave graças a influência política do rei francês Filipe IV, o Belo. Mas se não bastasse ter conseguido "empossar seu próprio papa", o monarca francês exigiu que Clemente V deixasse Roma e fosse para a França, alegando que ali estaria mais seguro, pois problemas políticos e militares ocorriam na Itália daquele tempo, mas isso foi apenas uma desculpa esfarrapada para que o monarca pudesse manter em seu território a Santa Sé. 


Retrato do papa Clemente V, o primeiro pontífice a se mudar para Avignon. 
Mas a situação foi tão problemática, que de 1309 até 1377 todos os papas governaram a partir de Avignon, cidade no sul da França. O que significa que por um período de 68 anos 6 papas realizaram seus pontificados a partir de Avignon. E um fato a mencionar é que com a morte de Clemente V em 1314, o trono de São Pedro ficou dois anos vagos, pois os cardeais franceses e italianos não chegaram a um consenso para eleger o novo papa, pois o rei francês tinha interesse de eleger um papa de sua nacionalidade. E de fato, o papa eleito, João XXII, era francês. 

Todavia, em 1378, com a morte de Gregório XI em visita a Itália, um novo conclave ocorreu. O eleito foi o papa Urbano VI, mas os italianos queriam que a Santa Sé retornasse a Roma. E assim foi concedido, e Urbano VI mudou-se para Roma. O problema é que sua nomeação ao cargo de papa não agradou a todas as alas dissidentes da Cúria Romana, e posteriormente se elegeu-se de forma ilegal outros dois papas: Clemente VII e Bento XIII. O primeiro passou a governar em Avignon e o segundo em Pisa. Os dois papas eleitos de forma ilegal, foram chamados de antipapas, e governaram teoricamente no mesmo mandato de Urbano VI, pois cada um se declarava ser o verdadeiro papa escolhido por inspiração do Espírito Santo, e acusava os outros de serem falsários. 

Esse embate entre o papa oficial contra seus dois antipapas, perdurou até 1417, e esse período ficou conhecido como Cisma do Ocidente (1378-1417), anos nos quais haviam três clérigos que se reconheciam como pontífices da cristandade. Em 1417, com a eleição do papa Martinho V, colocou-se fim a disputa entre papas e antipapas, a qual durou quase 40 anos, o que contribuiu para fragmentar o poder secular da Igreja Romana, assim como, desbancar sua autoridade e hegemonia. 

Entretanto os problemas de hegemonia vivenciados pela Igreja Católica não se deveram apenas com conflitos internos e com o surgimento de seitas heréticas, mas também se deu em alguns momentos com os Estados europeus. No século XII, o então sacro-imperador Frederico I Barbarossa (1122-1190) possuía a pretensão de reaver os domínios do Sacro Império Romano-Germânico sobre a Itália, pois teoricamente desde o ano 800, quando o rei Carlos Magno foi coroado imperador dos romanos, Carlos havia fundamentado um pacto com a Igreja de defendê-la contra seus inimigos, assim como, estender seus domínios e sua autoridade à Itália.


Iluminura do século XIII, retratando o rei Frederico Barbarossa e seus filhos. 
O Império Carolíngio de Carlos Magno seria a base do vindouro Sacro Império, assim, embora alguns imperadores não tiveram interesse em ajudar o papado quando este estava em perigo, por outro lado, alguns nunca deixaram de manter nítida, principalmente no norte da Itália, a ideia de que aquelas terras pertenciam ao Sacro Império, e eles eram seus súditos.

No entanto, retomando a época de Barbarossa, este pretendia conquistar toda a Itália para o seu império, e não apenas ficar com a região da Lombardia, localizada no norte. De início o papa Alexandre IV solicitou a ajuda do imperador para ajudá-lo contra seus inimigos, Barbarossa viajou para a Roma, derrotou os opositores do papa. Em 1155 foi coroado em Paiva, com o título de Rei da Itália. Mas não bastava ter apenas um título, era preciso assegurar o poder. 

Nos anos seguintes Barbarossa marchou pela península itálica subjugando todos aqueles que se opunham a sua autoridade. É preciso lembrar que a Itália era dividida em vários Estados, e muitos não quiseram perder sua independência. Mas a guerra promovida pelo imperador germânico não apenas afetou a nobreza desses Estados, mas também o papado, pois para Barbarossa, os Estados Papais, nome dado as terras pertencentes a Santa Sé, também deveriam passar ao seu império, e isso pôs novamente o papa em colisão com o imperador. 

As desavenças foram tão grandes que o imperador apoiou o antipapa Vítor IV, a fim de que ele tomasse o poder de Adriano IV. Porém, Adriano IV temendo que isso pudesse vir a acarretar em sua deposição do cargo, decidiu convocar os líderes que eram contrários ao imperador germânico e assim formaram a Liga Lombarda e a Liga de Verona para combater o exército imperial. Frederico Barbarossa foi derrotado apenas em 1176, então decidiu formalizar uma trégua e se retirou da Itália. No entanto, nota-se aqui o caso de um monarca que ousou confrontar o papado, e ameaçou ao ponto de destituí-lo, diferente do caso do papa Clemente V que foi um "fantoche" nas mãos do rei francês Filipe IV. 

Frederico Barbarossa voltaria anos depois a firmar aliança com a Santa Sé, pois decidiu participar da Terceira Cruzada (1189-1192), embora tenha morrido a caminho de Jerusalém. Todavia, as desavenças iniciadas por ele entre o Sacro Império e a Igreja ainda seriam retomadas nos séculos seguintes por alguns imperadores. Por exemplo, no século XIV, o famoso poeta, escritor, filósofo e político Dante Alighieri, autor da Divina Comédia (1321), era um monarquista assumido, ou seja, ele defendia a intervenção do Sacro Império na Itália. Tal postura levou Dante a arranjar problemas com a oposição que era papista. Além de sofrer perseguição política dentro de Florença, onde vivia e trabalhava no Estado, Dante também se desentendeu com o papa Bonifácio VIII, que lhe custou quase a prisão e a vida, embora ele acabou sendo exilado. 

De qualquer forma, em seu livro Da Monarquia, Dante apresentava sua opinião de que o papa deveria apenas cuidar de assuntos espirituais da Igreja e deixar de dar maior atenção a questões políticas e econômicas. É preciso lembrar que ao longo da Idade Média e Moderna, muitos papas atuavam como reis, e em alguns casos, eram mais conhecidos por serem hábeis políticos do que teólogos. 

Devido a essa atuação na esfera do poder político, alguns papas entraram em conflito contra reis, duques, condes e príncipes, por esses não propriamente lhe questionarem acerca de assuntos religiosos, mas por assuntos políticos-econômicos. Não importava se ele fosse "representante de Cristo e de Deus", pois os próprios reis também se sentiam no mesmo patamar, logo, se viam em pé de igualdade. 

Pergunta: A inquisição foi mais cruel na Idade Média do que na Idade Moderna?

Resposta: Não.

Embora a inquisição tenha sido criada no medievo, seu auge se deu na Idade Moderna, algo curioso e que ao mesmo tempo espanta as pessoas. Afinal, a modernidade foi a época do Renascimento, da Revolução Científica e do Iluminismo, períodos que se sucedem, e nos quais se pensa que as pessoas se desprenderam das "amarras" do fanatismo religioso do medievo e da sua ignorância. Pesadelo ou não, a verdade é que a Inquisição conviveu com as artes, as ciências e as filosofias da Idade Moderna, e nem por isso deixou de existir e de exercer suas funções. 

No entanto, comentarei alguns aspectos históricos sobre o surgimento da inquisição na Idade Média até finalmente ela se tornar três poderosas instituições na Idade Moderna. 

A inquisição medieval foi criada no ano de 1184, para inquerir sobre crimes de heresia e blasfêmia os quais estavam sendo difundidos principalmente por duas seitas heréticas, o Catarismo e o Valdenismo, ambas as quais mencionadas no tópico anterior. A Igreja já estava observando essas seitas algum tempo e até havia tomado medidas cabíveis para investigar quem eram os líderes e os disseminadores daquelas heresias, como o resultado não foi satisfatório e as reclamações dos clérigos do sul da França e do norte da Itália, principais regiões onde essas duas seitas atuavam, ainda eram recorrentes, a Santa Sé decidiu fazer algo. 

No ano de 1184, através da bula Ad abolendam, o papa Lúcio III com o apoio do imperador Frederico Barbarossa decretava a criação de um tribunal especial, o tribunal inquisitorial, o qual já existia na Igreja, mas tratava de assuntos internos a instituição. O tribunal decretado pelo papa, seria de caráter externo e seu comando seria dado aos bispos locais, daí o nome de tal inquisição ser Inquisição episcopal

Mediante a essa autorização, os bispos das regiões na quais ocorreria o inquérito, eram nomeados para presidir todo o processo inquisitorial de seu começo ao fim. Aqui já se desmente algumas ideias errôneas as quais diziam que os tribunais inquisitoriais foram criados para caçar às bruxas. Na verdade o crime de bruxaria só seria julgado pelas inquisições séculos depois. Não obstante, a grande caçada às bruxas vai se iniciar propriamente no século XV, já no período moderno, onde alcançou o seu auge entre 1450-1455 e 1480-1485, e curiosamente ocorreu por fanatismo popular e os tribunais civis, não sendo a inquisição responsável por isso na maioria dos casos (LOYN, 1990, p. 139). Tais ideias equivocadas acabaram por gerarem uma imagem ainda mais sombria da inquisição naqueles primeiros anos. 

"A própria existência da heresia é, sem dúvida, sinal demonstrativo da vida religiosa dos tempos medievais. Por isso, não se deve estranhar a violência gerada no combate à ela, violência com profunda base popular. Nem sempre o extermínio dos heréticos cátaros era executado pelos funcionários que deviam justiçá-los, mas por iniciativa do populacho fanatizado que não tolerava a heresia “filha de Satã”. E temos exemplos em que, por descuido ou não da justiça, os heréticos eram arrancados das prisões e queimados sem piedade. Foi o que ocorreu em 1120, em Soissons, quando o Bispo Lisiardo prendeu suspeitos de heresia e, na sua ausência, os burgueses dessa cidade os queimaram". (FALBEL, 1976, p. 42). 

A inquisição criada em 1184, foi instaurada no sul da França, principalmente para atuar na região de Albis, onde proliferava os cátaros e valdenses, os quais foram genericamente chamados de "albigenses". Os juízes delegados pelos bispos tinham que realizar um processo investigativo contra os disseminadores daquelas heresias, assim como, também identificar seus adeptos. Quando os heréticos eram identificados, tentava-se convencê-los de seus erros, além de passarem medidas corretivas, mas nada de execuções (FALBEL, 1976, p. 43).

Entretanto, essas medidas mais brandas não surtiram o efeito desejado. E embora outras inquisições episcopais foram convocadas, pois elas não eram duradouras, pois após a conclusão do inquérito, elas eram dissolvidas; em 1208, o então papa Inocêncio III vendo que os tribunais inquisitoriais não estavam conseguindo evitar a continuidade e propagação daquelas heresias, decidiu apelar ao povo, então convocou os senhores feudais franceses para que realizassem uma cruzada. 

A chamada Cruzada Albigense (1209-1244), a qual consistiu numa série de conflitos promovidos pela nobreza francesa no intuito de por um fim através das armas ao catarismo. Percebe-se aqui, o fato da inquisição ser branda naquele momento, ao ponto do papa tomar uma medida radical e convocar uma guerra contra os heréticos. Todavia, mesmo essa cruzada não surtiu efeito rápido como o desejado, tendo se prolongado por vários anos. 


Cátaros sendo expulsos de Carcassonne, França, em 1209. 
Em 1230, o papa Gregório IX através da bula Excommunicamus, decidiu reformular a inquisição episcopal, criando a Inquisição Papal, a qual passaria a estar sob sua direção, mas delegou como seus agentes os dominicanos, conhecidos por sua atuação há vários anos em combater os heréticos (FRANCO JÚNIOR, 2001, p. 186). Além disso, foi decidido que os inquisidores deveriam ser melhor instruídos para realizar suas atividades, como também decretou-se normas para a organização dos tribunais. Em 1252, o papa Inocêncio IV através da bula Ad extirpanda, autorizou oficialmente o uso da tortura no processo inquisitorial. E neste ponto é importante mencionar que vários instrumentos de tortura supostamente atribuídos a Idade Média, são na verdade, invenções da Idade Moderna. 

"Gregório IX tentou introduzir um certo grau de racionalidade legal nos procedimentos inquisitoriais: seriam instalados tribunais presididos por dois
juízes locais nomeados pelo papa; os processos exigiam o depoimento de duas testemunhas que permaneciam no anonimato e não podiam ser diretamente impugnadas; o suspeito fazia seu depoimento sob juramento. Em 1252, Inocêncio IV permitiu o uso de tortura para obter uma confissão. Se a confissão era feita, o indivíduo podia ab-jurar e recebia uma penitência canônica; se ele se mantivesse relapso, era entregue ao poder secular que habitualmente executava os hereges na fogueira". (LOYN, 1990, p. 426).

Mas embora a tortura e a execução tenha sido instituídos não significa que todo mundo era torturado e morto. Dependendo da heresia pela qual a pessoa estava sendo acusada, não seria necessário o uso de torturas e nem a pena de morte, ambos os casos eram reservados aos crimes mais graves. Logo, pensar que todo mundo era queimado na fogueira por qualquer desfeita, é um erro. 

A maioria dos acusados eram sentenciados a abjurarem publicamente que estavam errados, assumirem sua culpa, e pedir clemência a Deus, e sair do tribunal prometendo não mais cometer aquela heresia e/ou ajudar alguém a acreditar naquelas doutrinas erradas. Pois se houvesse reincidência, a situação se tornaria pior. Além disso, aqueles que eram acusados a morte, poderiam ser enforcados ou garroteados, e não necessariamente queimados vivos. 

Em outros casos o herege tinha que participar dos autos-de-fé, procissões inquisitoriais que só surgiram na Idade Moderna, mas era uma forma de humilhação pública, pois toda a população da cidade veria que você havia cometido heregia. Em outros casos, o herege pagava uma multa em dinheiro, bens ou propriedades ou poderia ser sentenciado a prisão domiciliar ou ir para a cadeia. Normalmente se pegava poucos anos de prisão. 

Por exemplo, Galileu Galilei nas duas vezes que foi acusado pela inquisição, na primeira ele abjurou diante dos inquisidores que havia cometido um grande erro, e perdia perdão por aquilo, em ter se defendido o modelo heliocêntrico em detrimento do modelo geocêntrico. Na segunda vez que teve que comparecer ao tribunal, os inquisidores não estavam tão convencidos da inocência de Galileu, mas devido a sua velhice, decidiram sentenciá-lo a prisão domiciliar. 

As inquisições episcopais e a inquisição papal ainda continuariam a atuar até o fim do medievo, sendo a inquisição papal de caráter contínuo. Assim, as inquisições episcopais eram dissolvidas e instauradas quando houvesse necessidade. Após o século XIV, a convocação de inquisições caiu, pois as principais seitas heréticas haviam sido combatidas, e os casos menores de heresia eram julgados pelos bispos ou nos tribunais civis, os quais detinham direito de julgar casos assim. 

No século XV e XVI as inquisições ganharam caráter institucional e permanente, assim surgiram a Inquisição Espanhola (1478-1834), a Inquisição Portuguesa (1536-1821) e a Inquisição Romana (1542-1800). As inquisições episcopais foram abolidas e a inquisição papal foi substituída pela romana. Esses três poderosos tribunais agiram por séculos, e no caso da espanhola e da portuguesa, sua área de ação ia para além da Europa, se estendendo sobre as colônias nas Américas, África e Ásia. Não obstante, foi entre os séculos XVI e XVII que as inquisições estiveram no auge, como também coincide com a época de maior número de inquéritos, perseguições e execuções.

Pergunta: O conhecimento foi reprimido pela Igreja?

Resposta: Sim.

Porém, para compreender essa resposta exige-se cautela, para não se interpretá-la com equívocos, achando que "todo" clérigo era intolerante e a Igreja foi o tempo toda "ultraconservadora". 

Quando o Cristianismo foi instituído como religião oficial do Império Romano em 393, pelo imperador Teodósio, o Grande, uma das medidas que o monarca tomou, foi fechar todos os locais associados ao paganismo: templos, academias, escolas, ginásios, bibliotecas, santuários, etc. Tais locais foram gradativamente sendo fechados ou destruídos, e seus usuários foram expulsos, perseguidos, banidos e em alguns casos mortos. 

Por exemplo, a célebre filosofa Hipátia de Alexandria, no século V, foi expulsa da escola onde lecionava no Templo de Serápis em Alexandria. O local era conhecido por difundir os ensinamentos gregos e até possuir uma corrente neoplatônica, mas o governador cristão de Alexandria decidiu acatar a medida do imperador Teodósio, e mandou que a escola fosse fechada e o templo demolido. 

No caso da Idade Média algo de similar ocorreu em dados momentos, principalmente na Itália, na Grécia, Egito e na Ásia Menor, locais onde proliferaram os centros de estudo do mundo greco-romano, os quais estavam sob domínio do Império Bizantino. Mesmo os bizantinos que eram herdeiros dos romanos e do gregos, isso não impediu que imperadores e bispos conservadores mandassem fechar academias e escolas que ainda preservavam os ensinamentos clássicos.

"Para a História da Ciência, a contribuição da cultura dos Impérios Romano do Oriente e Bizantino ao desenvolvimento do espírito científico foi nula, dados os aspectos políticos, sociais, culturais e religiosos que condicionaram sua evolução. Os grandes centros de ensino e especulação filosófica, como a Biblioteca e o Museu de Alexandria, a Academia de Platão e outras instituições tradicionais da Grécia pagã, foram fechados, e seus ensinamentos, por contrários e perigosos à ortodoxia oficial, proibidos. As Ciências não foram cultivadas, nem priorizadas, não tendo surgido, ao longo dos mil anos de História, nenhum vulto do porte de um Hipócrates, de um Eratóstenes, de um Aristarco, de um Apolônio, de um Euclides, de um Arquimedes. Não ocorreria nenhum progresso no conhecimento científico, limitado ao estudo, por uns poucos, das realizações da civilização helênica". (ROSA, 2012, p. 273).

"As características do Império Bizantino não eram favoráveis ao desenvolvimento de um espírito científico, investigativo, analítico e crítico. A dúvida intelectual e filosófica não existia em um ambiente dogmático, de cultura teocrática. As vantagens linguística e geográfica, além do domínio político de grandes e tradicionais centros culturais, não foram capazes de suplantar as desvantagens impostas por um sistema autocrático inibidor de uma atitude e de uma curiosidade criativas. Justiniano, em 529, fechou a Academia de Platão e outros centros de cultura, em Atenas, determinando que o ensino deveria ser ministrado exclusivamente por cristãos, sob controle da Igreja, de acordo com a doutrina oficial do Estado. A Paideia fora substituída pelo Quadrivium, sintoma evidente do abandono bizantino da concepção grega de ensino. O ensino público só seria restaurado no século IX, pelo Basileu Teófilo (829-842)". (ROSA, 2012, p. 283-284). 

A situação só não foi pior porque alguns bizantinos eram admiradores da cultura helênica, logo, algumas pessoas procuraram preservar papiros e pergaminhos contendo obras de teor filosófico, matemático, astronômico, físico, químico, arquitetônico, geográfico, histórico, biográfico, literário, etc. Alguns desses trabalhos foram preservados em bibliotecas particulares e outros nas bibliotecas reais e da própria Igreja. Alguns padres e bispos eram leitores da obra de Platão e de neoplatonistas, embora que isso gerou problemas para eles, pois os clérigos conservadores desaprovavam o uso de tal "filosofia pagã", a qual nada oferecia de útil a doutrina cristã. 

Todavia, não podemos pensar que os bizantinos nada contribuíram. De fato no campo das ciências exatas, suas contribuições foram ínfimas, no entanto, na literatura, pintura, arquitetura, história e teologia eles deixaram importantes contribuições, das quais voltarei a falar a respeito na pergunta seguinte. 

Mas não foi apenas na Europa oriental dos bizantinos que o conhecimento foi reprimido, na Europa ocidental o mesmo ocorreu. Após a fragmentação do Império Romano e o surgimento dos "reinos bárbaros", o conhecimento se viu diante de um grande problema: os povos germânicos desconheciam muito do saber antigo, e por sua vez não tiveram interesse em preservá-lo; já a Igreja, detinha ciência desses saberes e optou em guardá-los, mesmo que fosse para negar acesso a população. 

Assim, dos séculos V ao VIII a situação do desenvolvimento do conhecimento científico e filosófico na Europa esteve quase que estagnado. Grande parte da população era iletrada, o que incluía até mesmo a nobreza, restando a alguns poucos letrados laicos e os clérigos, a leitura de pergaminhos, papiros e livros antigos, o que por si só já evitava o acesso a tais saberes. Por outro lado, as ordens monásticas ficaram conhecidas por preservarem muito desse material escrito nas bibliotecas de seus mosteiros, mas o acesso a tais obras era praticamente nulo para quem não fosse clérigo.

E mesmo os clérigos não faziam muito uso desse material escrito. A principal função deles era guardá-los e copiá-los quando necessário. Alguns chegavam a lê-los e até tinham interesse em algumas doutrinas ali apresentadas, mas eram poucos aqueles que tinham o interesse de não apenas ler, mas também de estudar. 

"No campo cultural, a degradação se evidenciaria, nesses primeiros tempos medievais, com o fechamento de escolas, a alarmante redução do nível de alfabetização e escolaridade, inclusive nas classes dirigentes e no Baixo Clero, e o desconhecimento dos avanços intelectuais da Antiguidade Clássica. Poucos, muito poucos, foram os intelectuais e eruditos dessa época, devendo citar-se Cassiodoro (468-552), autor de Instituição das Letras Humanas, enciclopédia das sete Artes liberais, que consagraram o curriculum de ensino medieval Trivium (Lógica, Gramática e Dialética) e o Quadrivium (Aritmética, Geometria, Música e Astronomia); Boécio (480-524), chamado de o último dos Romanos, autor de Consolo da Filosofia e tradutor de Aristóteles; o monge inglês Beda (673-735), que se interessou pela Astronomia, Aritmética, estudou as marés e os ventos, e escreveu a História Eclesiástica do Povo Inglês (731). Não houve, contudo, obras de valor no domínio científico; não haveria pesquisa nos diversos ramos do conhecimento, mas mera reprodução de opiniões de autoridades do passado, sem críticas ou comentários". (ROSA, 2012, p. 307).

"A Idade Média seria o Período dos Teólogos, dos Doutores da Igreja, mas não dos cientistas. Ao longo desses sete séculos, não surgiriam nomes da Ciência, nem haveria progresso na evolução do espírito científico. Agostinho não escreveria nada em matéria de Ciência, não consta ter feito qualquer observação científica, defenderia a prioridade da Fé sobre o conhecimento, que, por seu turno, era divino, e se esmerou em denegrir, desacreditar e combater qualquer iniciativa tendente a cultivá-la". (ROSA, 2012, p. 315-316).  

No entanto, não podemos generalizar ao ponto de que a Igreja reprimiu completamente o acesso ao conhecimento, pois aqui ocorre um viés interessante. Muitos dos responsáveis ao longo da Idade Média de propagar o conhecimento e até mesmo de estudá-lo e realizar pesquisas, foram clérigos, pois sendo eles membros da instituição que era detentora dos maiores acervos que havia, essa era a possibilidade para aqueles de espírito mais curioso e investigativo realizar seus estudos. 

Além disso, a situação da Igreja com os saberes antigos começou a mudar na Baixa Idade Média, pois nos séculos XII e XIII temos um "despertar" que irá culminar no Renascimento. Percebe-se nesse período que a Igreja não se importava tanto em inibir o acesso aos textos antigos, ao mesmo tempo em que passou a considerar o estudo do mundo físico como algo sem problemas para a doutrina, desde que não apontasse nada que fosse considerado impróprio ao pensamento cristão da época, tipo como defender a ideia do modelo heliocêntrico em detrimento do modelo geocêntrico, o qual era apoiado como correto pela Igreja. 

Por outro lado, a ideia de que no medievo os padres queimavam todos os livros ou listavam o que deveria ser ou não lidos, isso é falso. O INDEX, a lista de livros proibidos da Igreja Católica, só foi criada no século XVI. Não obstante, a queima de livros só começou a ocorrer na Idade Moderna, embora não fosse algo autorizado propriamente pelos papas, mas ações singulares de alguns padres e bispos. 

Além disso, é preciso lembrar que no medievo a maioria das pessoas não eram letradas, os pergaminhos e livros eram restritos e já estavam de posse dos clérigos, logo, não havia necessidade de promulgar a proibição e a queima de tais livros, pois a ideia de queimar livros é inibir o acesso a estes. Porém, as pessoas já não tinham acesso a eles mesmos. 

Pergunta: O conhecimento nunca se desenvolveu na Idade Média?

Resposta: Não. 


Uma ideia que normalmente é transmitida diz respeito ao fato de que o conhecimento artístico, filosófico e científico não se desenvolveu ao longo da Idade Média, vindo apenas a ocorrer isso com o início do Renascimento. Só que o próprio Renascimento começou na Idade Média, e com isso, já se põe abaixo essa ideia de nenhum desenvolvimento do conhecimento ocorreu durante o medievo. No entanto há algumas ressalvas a serem feitas para se ter cuidado ao usar tais concepções.

O poeta, escritor, filósofo e tradutor Petrarca (1304-1374), considerado um dos expoentes da primeira fase do Renascimento, chamada de Trecento, considerava que os séculos que vão da Queda de Roma até o século que o antecede, ou seja, o século XIII, seriam a "Idade das Trevas". Tal fato se deve há condição de que na época de Petrarca não existia ainda o conceito de Idade Média, ele mesmo não se dizia ser um "medieval", isso é uma construção posterior que começa a surgir no século XV em diante. 

Sendo assim, no século XIX quando a cronologia das eras históricas é estabelecida em Idade Antiga, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea, o final da Idade Média é estipulado no ano de 1453, quase cem manos depois da morte de Petrarca. Assim, usando essa cronologia habitualmente utilizada pelos historiadores no mundo todo, o Renascimento começou no século XIV, ou pelo menos as bases dele, pois alguns historiadores dizem que o Renascimento só começou de fato no século XV, mas ainda consiste final da Idade Média. 

Percebemos aqui que com o início do Renascimento ainda nos tempos medievais, já desmente essa ideia de que os saberes nunca se desenvolveram durante a Idade Média, e "sempre" ficaram restritos as bibliotecas monásticas e a Igreja "sempre" procurou ocultá-los. De qualquer forma, além do Renascimento abordarei outros aspectos do medievo, os quais desmentem essa ideia equivocada. 


Uma das ideias propagadas acerca da "Idade das Trevas" diz respeito de que a Igreja sempre renunciou a qualquer forma de conhecimento de origem pagã. Isso não é verdade. Tivemos vários casos de clérigos que se embasavam no platonismo e no neoplatonismo para analisar a própria doutrina cristã, e a relação entre o mundo físico e o mundo espiritual. 

"A filosofia só aparece na história do cristianismo no momento em que certos cristãos tomam posição em relação a ela, seja para condená-la, seja para absorvê-la na nova religião, seja para utilizá-la em função da apologética cristã. O termo "filosofia" apresenta, desde essa época, o sentido de "sabedoria pagã", que conservará durante séculos. Mesmo nos séculos XII e XIII, os termos philosophi e sancti significarão diretamente a oposição entre as concepções do mundo elaboradas por homens privados das luzes da fé e as dos Padres da Igreja falando em nome da revelação cristã. Não é menos verdade que o cristianismo teve bem cedo de levar em consideração as filosofias pagãs e que, segundo seus temperamentos pessoais, os cristãos cultos dos primeiros séculos adotaram atitudes bastante diferentes em relação a elas. Alguns deles, que só se converteram ao cristianismo bastante tarde e depois de terem recebido uma educação filosófica grega, eram ainda menos inclinados a condená-la em bloco pelo fato de sua própria conversão se lhes apresentar antes como a peripécia final de uma busca de Deus começada por eles com os filósofos". (GILSON, 1995, p. 1). 

"Aurélio Agostinho (354-430), convertido ao Cristianismo por Ambrósio, foi nomeado bispo de Hipona (396), cidade onde morreu durante o cerco dos vândalos; tornou-se Doutor da Igreja, e, seguramente, o mais prestigioso teólogo da Idade Média europeia. Influenciado pelo platonismo e pelo neoplatonismo de Plotino, incluiria certas noções do pensamento filosófico grego na Teologia cristã em formação, e procuraria orientar a visão do Homem medieval sobre a relação entre a Fé Cristã e a Filosofia Natural. A síntese agostiniana do pensamento platônico e cristão, expressa em sua diversificada obra (escritos, cartas), consta, principalmente, de Da Doutrina Cristã, Confissões e A Cidade de Deus, e dominaria a Filosofia medieval até a formulação de uma nova síntese, com a introdução do pensamento de Aristóteles, por Tomás de Aquino, no século XIII". (ROSA, 2012, p. 308).

Percebe-se nessa citação acima dois casos famosos de importantes doutores da Igreja, nas figuras de Santo Agostinho e de São Tomás, os quais ambos leram obras de filósofos gregos e até mesmo se valeram dessas para redigir seus trabalhos. A obra dos dois santos influenciou profundamente a concepção da filosofia escolástica do medievo. 

No entanto, não cabe aqui comentar acerca do desenvolvimento filosófico na Idade Média, pois é um assunto bastante extenso, mas recomendo a leitura do livro A Filosofia na Idade Média do filósofo e historiador Etienne Gilson, o qual trabalhou esse tema em seu volumoso livro de quase mil páginas, analisando o desenvolvimento da filosofia do começo ao fim da Idade Média. 

Entretanto, não foi apenas as concepções filosóficas dos gregos que ainda continuaram a serem usadas pelos clérigos, outros trabalhos de diferentes áreas também se mantiveram. Por exemplo, as noções sobre os seres vivos, a natureza e o céu (aqui no sentido astronômico), foram bastante influenciadas pelas obras de Aristóteles (384-322 a.C). No caso da geografia e também da astrologia e astronomia, temos os trabalhos de Cláudio Ptolomeu (90-168), que inclusive chegou a ser mais apreciado do que outros geógrafos também gregos, como EstrabãoErastótenes

No âmbito da matemática, Pitágoras e Euclides ainda era as principais referências; nos âmbitos da física e da química essas duas ciências praticamente sumiram ao longo do medievo, vindo a retomar sua importância a partir do século XIII em diante, sob a influência de autores muçulmanos como Avicena (c. 980-1037) e Averróis (1126-1198), cujos trabalhos foram traduzidos para o vernáculo (língua nacional de um país), que acabaram influenciando alquimistas europeus, que por sua vez, passaram a retomar o estudo da física e da química. Por outro lado, também não podemos deixar de mencionar que a medicina medieval foi amplamente influenciada pelos estudos de Galeno, mesmo pelos erros que ele cometeu. 

Já na literatura, clássicos da poesia épica greco-romana como a Ilíada e a Odisseia de Homero, e a Eneida de Virgílio, ainda eram lidos no original, ou seja, grego e latim. Além desses autores, os poetas romanos Ovídio e Horácio entram na lista.

No Império Bizantino, não foi incomum usar-se a leitura dos poemas homéricos da Ilíada e da Odisseia para a alfabetização das crianças. Em determinadas épocas, tais poemas estavam em alta, e as pessoas da elite chegavam a decorar versos para se mostrarem como sendo "eruditos". (DIEHL, 1961, p. 180-185). Mas além desses poemas atribuídos a Homero, os bizantinos também apreciavam as peças de Aristófanes, Sófocles, Ésquilo entre outros dramaturgos. 

No âmbito histórico destacam-se Heródoto, Tucídides, Tito Lívio, Suetônio, Políbio, Flávio Josefo, Cassiodoro, Dionísio de Halicarnasso, Plínio, o Velho e Plínio, o Jovem, etc. Tais historiadores ainda continuaram a serem lidos pelos eruditos medievais.

"Os bizantinos sempre apreciaram a história, e, do século VI ao século XV, desde Procópio, Agatias e Menandro, até Frantzés, Ducas e Critóbulo, cada século da história literária de Bizâncio, conheceu historiadores eminentes. Pela inteligência, muitas vezes pelo talento, eles se mostram bem superiores aso que, pela mesma época, escreviam no Ocidente livro de história, e alguns dentre eles mereciam lugar de destaque não importa em que literatura". (DIEHL, 1961, p. 183).

Ainda falando acerca dos bizantinos, além do apreço pelas obras de história e biografia, as hagiografias (biografias de santos), foram bastante populares não apenas no Império Bizantino, mas no restante da Europa cristã. 

"Próximos dos historiadores e até mais numerosos foram os biógrafos. Estes eram quase exclusivamente hagiográfos. Desde que Atanásio escreveu sua Vida de Santo Antônio, raro o eminente eclesiástico que não foi objeto de uma Vida, em geral variando de mérito de acordo com a posição do herói". (RUNCIMAN, 1977, p. 190).

É preciso pensar que embora houvesse esse apreço pela cultura grega antiga, estamos falando de uma sociedade já profundamente cristianizada, não sendo a toa que Runciman (1977) apontara que as hagiografias eram usadas até mesmo no ensino religioso e laico, como modelo de vida para um bom cristão. Mas também nesse âmbito influenciado pela religião, não podemos deixar de mencionar o desenvolvimento do direito canônico e da teologia, os quais tiveram grande ênfase ao longo do medievo.

O direito canônico por volta do século IX, tornou-se o resultado da mistura de três bases de jurisprudência: o direito romano, o direito secular e o direito germânico. Um bom exemplo disso, diz respeito as leis do Império Carolíngio de Carlos Magno, nas quais se percebe a junção desses três direitos para compor o chamado "Direito Carolíngio"


O Império Carolíngio foi talvez o primeiro império europeu da Idade Média, a possuir um código legislativo que mesclava o direito romano, o direito canônico e o direito germânico. 
O direito canônico seria alterado ao longo dos séculos, sendo que no contexto medieval as maiores alterações se dariam na Baixa Idade Média, tendo como exemplos, os ordálios seriam banidos e a inquisição seria instaurada, dois aspectos da jurisprudência católica que afetariam o direito. Não obstante, não se pode esquecer de dizer que com o Cisma do Oriente, o direito canônico foi dividido em direito canônico católico e direito canônico ortodoxo, cada um tomando rumos diferentes. 

No âmbito da teologia, como já foi dito, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino são referencias, no entanto, houve vários outros teólogos de destaque: São Jerônimo (331-420), embora tenha vivido antes da Idade Média, sua teologia foi bastante influente nos séculos seguintes; São Gregório Magno (540-604), papa conhecido por ter copilado os "Sete Pecados Capitais"; São Isidoro de Sevilha (c. 560-636), homem de vasto conhecimento, procurou conciliar seus estudos entre a doutrina cristã e os saberes clássicos. São Beda, o Venerável (c. 673-735), o qual redigiu livros de história sobre a Bretanha, além de escrever sobre teologia e outros assuntos. 

Santo Anselmo da Cantuária (c. 1033-1179), conhecido por seus trabalhos que defendiam que o conhecimento da natureza e do universo seriam uma forma de conhecer também a Deus; São Bernardo de Claraval (1090-1153), notório por sua retórica e sua complacência em resolver disputas, participou da organização de concílios, no combate as seitas heréticas no sul da França; reformou a Ordem de Cister, defendeu o reconhecimento da Ordem dos Templários, como também foi delegado para promover a Quarta Cruzada. São Alberto Magno (c. 1193-1280) assim como São Isidoro, foi um célebre erudito, o qual procurou promover os estudos naturais, os conciliando com a doutrina cristã, promovendo a ligação da razão com a fé. 

Por mais que obras de filósofos, escritores, poetas gregos e romanos fossem lidas, a Igreja ainda mantinha sua postura centralizadora e controladora do conhecimento. As pessoas poderiam até estudar aqueles trabalhos, mas deveria-se ter em mente que o importante era viver como um bom cristão e se submetendo a liturgia do poder secular (mas como vimos no início desse trabalho, isso nem sempre foi assim).

No entanto, até aqui vimos que os saberes antigos não foram totalmente reprimidos e banidos pela Igreja, pois houve gente que ainda continuou a lê-los, copiá-los e até escrever comentários, mas em termos de desenvolvimento do conhecimento, o processo foi mais lento para o âmbito cientifico, pois na filosofia escolástica, na teologia e no direito houve bastante desenvolvimento. Em geral os eruditos não iam além do que os velhos estudiosos da Antiguidade haviam chegado, se contentavam em expressar suas opiniões sobre as obras deles, no entanto, houve alguns casos singulares de homens que tentaram desenvolver ou pelo menos propagar o conhecimento filosófico e científico.

"Poucos, muito poucos, foram os intelectuais e eruditos dessa época, devendo citar-se Cassiodoro (468-552), autor de Instituição das Letras Humanas, enciclopédia das sete Artes liberais, que consagraram o curriculum de ensino medieval Trivium (Lógica, Gramática e Dialética) e o Quadrivium (Aritmética, Geometria, Música e Astronomia); Boécio (480-524), chamado de o último dos Romanos, autor de Consolo da Filosofia e tradutor de Aristóteles; o monge inglês Beda (673-735), que se interessou pela Astronomia, Aritmética, estudou as marés e os ventos, e escreveu a História Eclesiástica do Povo Inglês (731). Não houve, contudo, obras de valor no domínio científico; não haveria pesquisa nos diversos ramos do conhecimento, mas mera reprodução de opiniões de autoridades do passado, sem críticas ou comentários. As prioridades do momento eram, evidentemente, a sobrevivência na Terra e a salvação na vida eterna". (ROSA, 2012, p. 307).

"Mas além de Cassiodoro, Boécio e São Beda, nesse período inicial também destacou-se São Isidoro por seu trabalho enciclopedista realizado na Etymologiae. "Etimologia, enciclopédia, em vinte volumes, dos quais dezessete versavam sobre Aritmética, Geometria, Astronomia, Geografia, História, Mineralogia, Medicina, Gramática, Dialética, Filosofia, Retórica, Teologia, etc.; a obra, inspirada em Plínio, seria de consulta durante vários séculos"". (ROSA, 2012, p. 308).


Estátua de São Isidoro de Sevilha, um dos últimos estudiosos clássicos no começo da Idade Média. 
"Ainda que iletrado, Carlos Magno fomentou a cultura, considerando alguns historiadores ter havido um “curto renascimento artístico e cultural” (Renascença carolíngia) no século IX, pelo estudo de textos latinos. O latim seria incentivado como língua culta, e na condição de idioma da religião e do governo, estabeleceu a unidade linguística dos países europeus ocidentais. Dessa fase cabe registrar o erudito inglês Alcuíno (735-804), que dirigiu o sistema educacional carolíngio com o Trivium e o Quadrivium como bases do currículo, fundou a Escola de Escribas de Tours e elaborou um método condensado de escrita (minúscula carolíngia), ancestral das letras minúsculas. Outro importante governante dessa época foi Alfredo, o Grande (849-900), Rei inglês que lutou contra o invasor dinamarquês (vikings), manteve metade da Ilha sob o domínio saxão e fortaleceu o poder central. Procurou elevar o nível educacional e cultural da população, tendo, inclusive, traduzido obras latinas para seu idioma". (ROSA, 2012, p. 310). 

Também nessa época, destacou-se os trabalhos do frade, filósofo, teólogo, professor e tradutor islandês João Escoto Erígena (810-877), o qual serviu na Corte do rei Carlos, o Calvo, um dos netos de Carlos Magno. Erígena ficou conhecido por ter traduzido algumas obras do grego para o latim, além de lecionar na Schola Palatina criada pelo rei, criação essa baseada no governo de seu avô, pois Carlos Magno ordenou a criação de escolas para educar a nobreza. Mas além de seus trabalhos como professor e tradutor, Erígena é conhecido por suas polêmicas no campo da filosofia e da teologia, chegando a renunciar a ideia de "Predestinação", a negar a existência do Inferno físico, redefinir a ideia de criador e criação, tentar conciliar as ideias neoplatônicas das quais era adepto, com a doutrina cristã, etc. (KENNY, 1998, p. 172-173).

Nos séculos X e XI teremos outros poucos estudiosos de destaque, todavia, a mudança propriamente dita começou a ocorrer no século XI em diante. Neste caso será nesse período de reformulação da filosofia escolástica, da teologia e do direito canônico, que alguns clérigos e eruditos laicos passaram a dispor de maior liberdade para poder estudar as ciências. Santo Anselmo foi um dos expoentes que defenderam essa posição de que o estudo da natureza seria uma forma de melhor compreender a criação de Deus. 

"A reação a esse estado de coisas, que começou a se esboçar nos séculos XI e XII, proveio de alguns membros da própria Igreja, única instituição capaz de contar com pessoas suficientemente cultas e motivadas intelectualmente para buscar entender, racionalmente, a Fé. Não se tratava de questionar as verdades religiosas, mas de sujeitá-las à análise. Anselmo resumiria magistralmente, pela primeira vez, esse anseio: “Parece-me descuido se, depois de firmarmos a nossa fé, não lutarmos para compreender aquilo em que acreditamos”. São, ainda, de Anselmo, Monológio ou O Fundamento Racional da Fé e o Proslógio ou A Fé buscando apoiar-se na Razão". (ROSA, 2012, p. 316).

"O uso da Razão para defender a Fé foi tese, igualmente, de Abelardo, professor de lógica e autor de Sim e Não, Introdução à Teologia, Tratado sobre os Gêneros e as Espécies. Eruditos e teólogos importantes, como Silvestre II (Gerberto 940-1003), Anselmo (1033-1109), Gilberto de la Porrée (1070-1154), Abelardo (1079-1142), Bernardo de Chartres (século XII), Thierry de Chartres (? - 1150), Hugo de São Vítor (1097-1146) e João de Salisbury (1120-1180), devem ser citados como exemplos pioneiros dessa atitude inovadora, responsável por decisivos desdobramentos do processo da evolução mental. Apesar da resistência, e mesmo oposição, da Igreja, as novas ideias e atitudes receberiam crescente número de adeptos". (ROSA, 2012, p. 317-318). 

Ainda no século XI começaram a surgir a primeiras universidades medievais propriamente ditas, embora que no Império Bizantino já houvessem nos séculos VIII e IX instituições que alguns defendam como sendo "universidades". Além disso, no mundo islâmico, em Bagdá e no Cairo desde o século X já havia universidades. 

De qualquer forma no século XI, podemos mencionar a Escola de Chartres na França, a Escola da Bolonha (1088) a qual viria a se tornar na Universidade da Bolonha, na Itália. No século XII temos o surgimento da Universidade de Salamanca (1134), Universidade de Paris (1170) e da Universidade de Oxford (1186); já no século XIII, o número de universidades começou a aumentar; Universidade de Cambridge (1209), Universidade de Pádua (c. 1222), Universidade de Nápoles (1224), Universidade de Valladolid (1241), Universidade de Coimbra (1290). No século XV o número de universidades cresceu mais do que nos três séculos anteriores. 

Embora as universidades europeias tenham surgido ainda no medievo, elas diferem bastante das universidades de hoje em dia. Naquele tempo, todas as instituições eram subordinadas a Igreja e seus professores eram clérigos. Sendo assim, embora fosse um local para debates filosóficos, teológicos, científicos, etc., cenário no qual Santo Alberto Magno esteve presente, por ter estudado em algumas dessas universidades, além de ter sido professor de teologia na Universidade de Paris, ainda assim, havia restrições quanto ao que poderia ser pesquisado e estudado. Teorias polêmicas e assuntos considerados heréticos ficavam de fora. 

"Os estudiosos viviam numa atmosfera que inibia o desenvolvimento de uma mentalidade aberta à controvérsia, frustrando o ressurgimento da pesquisa, da investigação e da experimentação científicas. Desconheciam-se a Filosofia e a Ciência gregas. No pobre cenário cultural da Idade Média, a Ciência seria a grande ausente". (ROSA, 2012, p. 318).

O surgimento das universidades nos séculos XI ao XIII não alavancou de um dia para o outro o desenvolvimento do conhecimento, mas contribuíram para que ele fosse difundido para um maior número de pessoas o que incluía homens de fora do clero. Por outro lado, as universidades necessitavam de material de estudo, e isso foi um dos motivadores para que o número de cópias e de traduções crescesse vertiginosamente entre estes séculos. 

"Assim, do século X ao XII, as traduções de obras gregas e árabes serviram de intermediários entre a Ciência grega e o Ocidente. Por eles passou a grande massa de textos que, no século XII, estiveram na base da renovação intelectual do Ocidente. Essa transmissão abrangeu diversas disciplinas: Matemática, Astronomia, Mecânica, Óptica, Medicina. Ao mesmo tempo, a tradução de obras árabes trouxe ao Ocidente conhecimentos que não constavam do saber helênico, como numeração decimal, procedimentos algébricos e elementos trigonométricos na Matemática, e investigações no campo da Alquimia. Como transmissores de conhecimentos orientais (China, Índia), principalmente hindus,
os árabes prestaram uma contribuição adicional ao desenvolvimento científico ocidental". (ROSA, 2012, p. 322). 

No campo artístico, a arte gótica ou estilo gótico surgem no campo da arquitetura e da pintura, concedendo uma renovação artística a arte do medievo. Na pintura destacaram-se os italianos Cimabue (c. 1240-1302) e Giotto (1266-1337), os quais concederam luz, perspectiva, cor e formas para a pintura sacra.

"Giovanni Cimabue, pintor florentino e mosaicista, foi um precursor da Renascença. Há poucos detalhes registrados de sua vida, mas ele viajou a Roma em 1272, onde a reforma política e religiosa estava no ar no reinado do papa Gregório X. [...]. Em Roma, Cimabue descobriu que até mesmo os artistas buscavam mudanças. Pintores de murais exploravam várias formas de trazerem mais realismo as suas obras". (GERLINGS, 2008, p. 36).

"Seu mestre, Cimabue, trabalhou para representar a forma em seu próprio espaço, mas foi Giotto quem finalmente descartou a tradição bizantina e, sem imitar ninguém, levou o retrato da humanidade a novos patamares. Há uma autenticidade de expressão nos olhos de suas figuras, e cada gesto é convincente porque corpos reais habitam suas vestimentas". (GERLINGS, 2008, p. 76). 


Interior da Capela delle Scrovegni, Igreja de Pádua. Os afrescos que adornam as paredes e o teto foram obra de Giotto, um dos mestres da pintura gótica medieval. 
A arte bizantina que prevaleceu ao longo do medievo, como principal referência para a arte sacra cristã, foi no século XIII substituída pela arte gótica. Embora Cimabue e Giotto não fossem muito favoráveis ao estilo bizantino, não podemos negar que eles tiveram seu mérito principalmente na construção das catedrais e nos mosaicos. No entanto, não se pode esquecer que a arte medieval foi um conjunto de vários estilos: romano, grego, bizantino, árabe, franco, celta, germânico, saxão, etc. 

Na arquitetura gótica as imponentes catedrais góticas francesas de Notre-Dame de Paris, Notre-Dame de Laon, Catedral de Chartres, Catedral de Amiens, Catedral de ReimsCatedral de Metz; na Inglaterra,  Abadia de BeverlyCatedral de Winchester, Catedral de Ely, Catedral de Lincoln; na Itália, a Catedral de Santa Maria de Fiore, em Florença. Nota-se aqui, que na pintura gótica, os italianos foram as principais referências, na arquitetura gótica, foram os franceses que se destacaram. 


Catedral de Reims, França. Uma das obras-primas da arquitetura gótica medieval. 
No campo da literatura em versos e prosa, muitas obras singulares são de autoria anônima, uma prática comum no medievo, pois não existia a ideia de livro fechado como hoje concebemos, além do fato de que os autores temiam retaliação por parte da Igreja ou alguma autoridade. Neste caso, a literatura medieval anteriormente era transmitida através da oralidade, foi a partir do século XI que começou a se registrar algumas dessas histórias. De qualquer forma, a literatura da Baixa Idade Média foi bastante diversificada, pois tínhamos obras sobre aventura, romance, drama, tragédia, comédia, folclore, mitologia, sátiras, contos eróticos, livros de normas e conduta moral, relatos sobre viagens à África e Ásia, relatos sobre viagens ao Inferno, Purgatório e Paraíso, livros sobre os milagres de santos, poemas sobre virtudes ou tentações, anedotas, fábulas, etc.

Alguns exemplos são: o poema saxão Beowulf (c. 1000) de autoria desconhecida, o qual narra a aventura do guerreiro escandinavo Beowulf, consistindo no maior poema em inglês antigo, apresenta elementos pagãos e cristãos, sobre uma história que se passa na Dinamarca. Beowulf na narrativa enfrenta monstros. 

A Canção de Rolando (séc. XI), uma das mais célebres gestas (histórias de cavalaria), baseada no cavaleiro Rolando, o qual serviu a Carlos Magno. De autoria desconhecida, a obra foi escrita em francês e inspirou várias outras gestas e adaptações. É um típico romance que fala sobre aventura, honra, nobreza, fidelidade e tragédia.  A Canção dos Nibelungos (c. 1200) de autoria desconhecida, escrita em alto alemão, baseada em mitos germânicos, entre os quais o mito dos Nibelungos, um povo de anões. Tristão e Isolda (séc. XII), famosa história sobre o amor cortês do cavaleiro Tristão e a princesa Isolda. Possui várias versões em distintas línguas, no entanto, hoje se conhece principalmente as versões francesas do século XII, pois as anteriores ou se perderam ou só foram achados fragmentos. 

O Ciclo Arturiano (séc. XII-XIV), conjunto de vários textos envolvendo as histórias do Rei Arthur e a criação de sua lenda. Nestes textos e livros originam-se os personagens de Guinevere, Lancelot, Merlin, Percival, Morgana, Mordred, entre outros; Camelot, a espada Excalibur e a famosa Távola Redonda. Entre os principais autores da época, destacaram-se o clérigo galês Geoffrey de Monmouth (c. 1100 - c. 1155) e o poeta francês Chrétien de Troyes (c. 1135 - c. 1191). Além do Rei Arthur, o famoso fora-da-lei Robin Hood começou a surgir na literatura inglesa no final do século XIV. 

Na Islândia destacam-se a Edda em prosa (c. 1226) atribuída ao poeta Snorri Sturluson e, a Edda poética (séc. XIII) conjunto de poemas de autoria desconhecida. Ambas as Eddas são obras que versam acerca da mitologia nórdica, principalmente associada a Era Viking (VIII-XI), contando histórias sobre Odin, Thor, Loki, Asgard, Midgard, anões e gigantes. Além disso, datam também da época, várias Sagas islandesas, as quais trazem histórias sobre rixas familiares, origens genealógicas de dinastias, jornadas, guerras, mitos etc. A Islândia no século XIII e XIV foi um importante centro de compilação de manuscritos. 

Na Itália destacaram-se dois grande poetas no século XIV. Dante Alighieri (1265-1321) com sua assombrosa e controversa Divina Comédia (1321), obra de impacto cultural nas artes, na sociedade e na história ainda hoje sentido. Neste vasto poema, Dante narra sua fictícia jornada pelo Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Escrita em italiano, foi considerada a primeira grande obra da língua italiana. Giovanni Boccaccio (1313-1375), poeta e crítico literário, grande admirador de Dante. Boccaccio é principalmente lembrado por sua polêmica obra Decamerão (1348-1353), escrita em toscano, narra várias novelas cujo o tema afrontavam a moral medieval da época, por versar sobre sexualidade, adultério, traição, hedonismo, mundanismo, etc. 

Ainda na Itália não podemos deixar de citar Marco Polo (1254-1324), mercador veneziano que serviu por cerca de quinze anos na Corte do imperador Kublai Khan na China. Ao retornar para casa, Marco anos depois publicou suas memórias de viagem no Livro das Maravilhas (séc. XIV), pois embora não seja uma obra ficcional, foi um dos mais famosos relatos de viagem sobre a Ásia por vários anos. O próprio Cristóvão Colombo quando em 1492, viajou no intuito de chegar às Índias, levava consigo uma cópia do livro de Polo. 

Na França além da popularização dos romances de cavalaria, livros de horas que versavam sobre condutas morais, se popularizou por volta dos séculos XIII ou XIV, os fabliaux, contos de teor satírico, cômico e até erótico que advinham da tradição oral. Eram histórias curtas que continham preceitos morais, mas contados com o linguajar do povo, usando-se gírias, palavrões, sarcasmo, humor ácido e erótico. Algumas dessas narrativas satirizavam os padres, os cavaleiros, os nobres, o senhorio, as mulheres, a virgindade, o sexo, o casamento, etc. Essas sátiras poderiam ser mais escancaradas e afrontosas, ou sutis. A nobreza se interessou por tais histórias, e os fabliaux começaram a serem escritos. 

Chiara Frugoni (2007) comenta que na Idade Média tivemos a invenção do óculos, do livro, das universidades, da pólvora, do relógio, dos bancos, empréstimos, lojas de penhor, crédito, prensas, técnicas de costura, notas musicais, corais, etc. Passou a se adotar também a heráldica, o uso de brasões e bandeiras para representar famílias, autoridades públicas, militares e eclesiásticas, adoção de técnicas de costura, adoção de costumes a mesa (etiqueta), etc. Por tal viés o medievo europeu não foi um local ausente de inventos ou chafurdado em barbárie e atraso. 

Assim, percebemos que o conhecimento se desenvolveu na Idade Média, embora que em algumas áreas como o direito, a teologia e a filosofia escolástica foram mais acentuadas, em outras áreas como as ciências exatas e da natureza o processo foi quase inexistente ao longo de séculos. Apenas na Baixa Idade Média é que isso começou a mudar, ainda assim, de forma lenta. 

Considerações finais:

Após a leitura dessas perguntas e suas respostas, espero que os leitores pelo menos passem a ter novos olhares sobre a Idade Média, mesmo que alguns eventualmente venham a dizer que ainda considerem que o medievo foi uma "Idade das Trevas", você está livre para argumentar em defesa. 

De qualquer forma, a Idade Média europeia foi uma época de contrastes entre o sagrado e o profano, entre o dito divino e o mundano, entre o espiritual e o natural. Se em alguns momentos a Igreja proibiu uma série de assuntos, e em outros ela permitiu. Não obstante, foram os próprios clérigos que iniciaram ou foram responsáveis por realizar mudanças significativas nas estruturas do pensamento religioso. Como visto, muitos dos eruditos que antecedem o século XIV, foram religiosos os quais pensavam diferente do dogma católico. Até mesmo casos importantes como Santo Anselmo e Santo Alberto, foram homens que procuraram defender o estudo da natureza como forma de se compreender a criação de Deus, ideia essa retomada por clérigos e laicos na Idade Moderna. 

Por outro lado, não podemos negar que a Igreja reprimiu o conhecimento, algo que perdurou por séculos, pois como visto, apenas uma ínfima parcela da população cristã teve acesso ao pouco de conhecimento que era compartilhado. Além disso, a Igreja também foi responsável por banir superstições e até mesmo adotá-las e fundamentar as suas próprias superstições. 

A ideia de que os cristãos medievais sempre foram submissos, como mostrado é equivocada, embora não seja errado em dizer que muitos eram supersticiosos e até foram fanáticos. No entanto, é nítido que esse pensamento se deu na Baixa Idade Média, logo, foram necessários quase 600 anos para isso vir a ocorrer. E além dessa mudança de pensamento acerca do comportamento e da moral, várias outras mudanças ocorreram ou se sucederam. O medievo começou a se transformar do ano 1000 em diante. A Idade Média não foi uma "Idade das Trevas", talvez estivesse mais para um crepúsculo ou um longo dia nublado. 

NOTA: Embora o movimento gótico de hoje em dia, siga uma tendência a transmitir que sempre foram sombrios e desvinculados de alguma religião, na prática, a arquitetura gótica de fato era sombria, e predominava na construção de catedrais e não de castelos, como alguns pensam. Mas na pintura, prevalecia a luz e os motivos religiosos cristãos. Essencialmente, a arquitetura e a pintura gótica sempre estiveram de alguma forma ou outra, atrelada ao cristianismo. 
NOTA 2: Em fins da Idade Antiga entre os séculos IV e V, as tribos godas se dividiram em dois ramos: os ostrogodos (godos do oeste) e os visigodos (godos do leste), tendo recebido tais nomes devido as áreas as quais eles ocuparam. Os visigodos se assentaram na Hispânia, quanto aos ostrogodos seguiram para a Itália e depois os Bálcãs. 
NOTA 3: A Tapeçaria de Bayeux possui 70 metros de comprimento, tendo sido confeccionada supostamente por alguns monges, após a conquista da Inglaterra por Guilherme, o Conquistador. 
NOTA 4: A história de que o papa Calisto III teria excomungado o cometa Halley em 1456, é hoje considerada fantasiosa. Tal menção a tal fato só é conhecida vários anos depois em uma de suas biografias, e curiosamente nos relatos de seu pontificado não há nenhuma menção a passagem do cometa. 
NOTA 5: Acerca de um pouco mais sobre a questão do Apocalipse, Juízo Final, Anticristo e as ideias pessimistas e esperançosas da Idade Média, recomendo ler o pequeno livro O ano 1000 de Hilário Franco Júnior, no qual ele foca sobre tais assuntos. 
NOTA 6: A Igreja Ortodoxa Grega recebe esse nome pelo motivo de que a língua oficial do Império Bizantino era o grego, isso também servia como uma forma de diferenciar da Igreja Católica, cuja língua oficial era o latim. A Igreja Ortodoxa possui seu próprio papa e subdivisões. 

Referências Bibliográficas: 
BORGES, Paulo Alexandre Esteves. Da loucura da cruz à festa dos loucos. loucura, sabedoria e santidade no cristianismoCadernos Vianenses, tomo XXIX, jan. 2001
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TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. Tradução de Vitor de Paula Ramos. São Paulo, Marcial Pons, 2012.

Links relacionados:
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