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Leandro Vilar

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Ariano Suassuna e o mito do cabreiro

Ariano Suassuna e o mito do cabreiro


Maria Aparecida Lopes Nogueira


O processo que envolve a adjetivação armorial é uma tentativa de sobrevoar a obra de Ariano Suassuna. Parte do pressuposto de que as imagens se constituem em elementos potencializadores da compreensão, pois transbordam as objetivações explícitas do real. Por isso, logo de início, advirto que a vida e as ideias do autor ultrapassam os limites da categorização armorial e de quaisquer outras possíveis categorizações; pois trata-se de uma obra pulsante, aberta a recriações e bricolagens ad infinitum.

Ariano emerge de um quadro interpretativo da ordem do vivido, da corporificação, da encarnação. “Tudo que eu digo na minha literatura tem a ver com cabra”; afirma o autor, no documentário O Sertão Mundo de Suassuna, um filme armorial de Douglas Machado. Nesse âmbito, o Cabreiro é a metáfora viva que expressa a universalidade da obra; desdobrando-se em uma infinidade de significações, capazes de forjarem sentidos para sua existência, retroalimentando-o incessantemente:

“Eu sempre tive uma grande simpatia pela cabra. (...) Sempre achei que ela poderia ser a solução para uma total revitalização política, literária e econômica do sertão nordestino”2

Do mesmo modo que “a cabra é trancada por dentro. Condenada à caatinga seca”, segundo os belos versos de João Cabral de Melo Neto, reconheço que Ariano também o é, afinal são seres de mesma natureza. Trata-se de um tipo de antropomorfização que traz à tona a constante tensão entre natureza e cultura, deixando claro que as relações do homem com o meio natural desempenham, antes de qualquer coisa, um papel de objeto do pensamento.

Focalizar a intrincada teia que envolve o homem e a cabra significa participar do devir do Cabreiro. Através do que ouve e escreve, Ariano-Cabreiro saboreia a palavra; e, tal como as cabras, tresmalhou-se pelas encostas e mistérios em tempos imemoriais. Por isso sua palavra requer, sempre, um novo onirismo.

Nessa perspectiva, o transbordamento de imagens que ocorre a partir da estranha e forte fraternidade que religa Ariano e a cabra impõe uma ordenação ao caos primordial.  Os pastores de Virgílio e de Longo podem ser compreendidos, então, como arquétipos desse companheirismo.

Nosso autor é membro da Associação Brasileira de Criadores de Cabras. Em sociedade com o primo Manuel Dantas Vilar, o Manelito, sua criação tem como objetivos a preservação e regeneração da cabra nativa do sertão nordestino. Costuma reafirmar: “somos criadores de cabra ibero-brasileiras (como o povo brasileiro), vermelhas, brancas e negras-azuis”. As vermelhas possuem uma lista preta no dorso, em homenagem ao time de futebol que torce, o Sport Clube do Recife.

Acalentado por Dáfnis, um pastor – personagem do livro de Longo, “Dáfnis e Cloé” -, sua alma de Cabreiro entrega-se às malhas da tensão existente entre o real e o irreal; acredita que uma beleza invisível subjaz a todas as coisas.

O Cabreiro é um criador de cabras, um ser em vertigem que transita entre as margens do Mediterrâneo, a península ibérica, o Oriente, o sertão nordestino e as montanhas, onde tudo foi convertido em pedra. E “Se a serra é terra, a cabra é pedra”, segundo o mesmo poeta João Cabral. Por isso, não é simples coincidência que seu principal livro tenha como mote a pedra, a partir de um episódio sebastianista ocorrido no sertão pernambucano, em 1838.

Em seu “O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta”, Ariano, ou melhor, Quaderna, narrador e personagem principal, vê-se enredado em um processo; a narrativa se desenvolve enquanto ele presta um longo depoimento ao juiz-corregedor.

Mas não se trata de um romance histórico, pois o autor transfigura/poetiza a realidade: “São as duas enormes pedras castanhas a que já me referi, meio cilíndricas, meio retangulares, altas, compridas, estreitas, paralelas e mais ou menos iguais, que, saindo da terra para o sol esbraseado, numa altura de mais de vinte metros, formam a torre do meu Castelo, da Catedral encantada que os Reis meus antepassados revelaram como pedras angulares do nosso Império do Brasil. [...] As pedras e lajedos do nosso sagrado Cariri encontram-se, às vezes, em aglomerados que parecem Fortalezas ou Castelos arruinados.

A partir daí, toda vez que eu lembrava dos dois rochedos gêmeos da Pedra do Reino, era como se eles fossem, além da Catedral Soterrada que os Reis, meus antepassados, tinham revelado, a Fortaleza e o castelo onde se fundamenta a realeza do nosso sangue” (1971:33-34).

A pedra-cabra irrompe como metáfora crua do sertão; possui forte couraça de aço a fim de resistir à caatinga. Sem dúvida, esse é um dos temas obsessivos que religam o conjunto da obra. A escrita forte, áspera e insana de Ariano ressoa na plenitude de um Quaderna que percorre ad infinitum o trajeto que vai da tragédia à comédia, reiterando uma tensão permanente.

Pode-se mesmo falar de um idioma pedregoso, especificidade daqueles que entreabrem um sertão alucinado, povoado de mitos, desejos, bifurcações, sonhos, delírios e devaneios: intensa busca de um Édipo interior que decifre os enigmas daquela terra-brasa:

“Minha história só será entendida integralmente por uma pessoa para quem a palavra ‘pedra’ representasse tudo o que significa para mim. Uma pessoa que, ao ouvir dizer ‘pedra´, entrasse imediatamente em um reino, pobre mas reluzente. (...) Arcanjos de quartzo e de cristal-de-rocha, me revelariam o Sentido do Mundo!” (1974b:80).

Em meio às pedras, homem e cabra ocupam a terra-seca – o sertão que é o mundo – com sua “alma-caroço”. Vale ressaltar que o ritual dionisíaco originou a tragédia. Em grego, tragos significa bode, animal sagrado. Os sátiros são homens-bode; o próprio Dioniso assumiu esta forma, em uma de suas metamorfoses para fugir dos Titãs; Zeus foi amamentado por uma cabra. Mas o mito se atualiza, por isso o Cabreiro pulsa em alguns momentos da obra de Virgílio, Longo, Raduan Nassar, João Cabral de Mello Neto e Ariano Suassuna, entre outros, reiterando sua universalidade e suas especificidades.

Ariano cria uma obra, ao mesmo tempo, tumultuada, insolente, aberrante, leve, risonha e delirante. Guarda consigo um tempo: o tempo da infância, quando ainda desfrutava da companhia do pai – o advogado, presidente da Paraíba e deputado João Suassuna -, assassinado covardemente no Rio de Janeiro, com três tiros pelas costas, durante os episódios que antecederam a Revolução de 30:

(Lembrança de Meu Pai) – Com Mote de Janice Japiassu
Aqui morava um Rei, quando eu menino
vestia ouro e Castanho no gibão.
Pedra da Sorte sobre o meu Destino,
Pulsava, junto ao meu, seu coração.
Para mim, seu Cantar era divino
Quando, ao Som da Viola e do bordão
Cantava com voz rouca o Desatino,
o Sangue, o riso e as mortes do Sertão.
Mas mataram meu Pai. Desde esse dia
eu me vi Cego, sem meu Guia,
que se foi para o Sol, transfigurado.
Sua efígie me queima. Eu sou a presa,
ele a brasa que impele ao Fogo, acesa,
Espada de ouro em Pasto ensangüentado. (1974:99).

O Cabreiro-Ariano também é lírico, contemplativo; seu ofício é ruminar as palavras e as mesmas lembranças tornadas pedras. É atravessado por uma força peculiar que reencontra o passado a todo instante, através da singularidade de uma cólera petrificada, ressonância da sabedoria e fortaleza de Dona Ritinha, sua mãe, quando impediu que os filhos e toda a família vingassem o assassinato do pai. Já não se percebe no tempo, revolve a terra magra, o corpo magro e sonha com um sertão, não importa qual. Há grandeza e orgulho nesse passado que teima em reencontrar: pai, mãe, irmãos e irmãs, tios, tias, primos, primas e amigos.

Sua estética tem como uma das matrizes esse passado que carrega com tanto carinho, por isso considera, também, a beleza do feio e do desarmonioso:

(...) “Eu acho o Sertão bonito exatamente por causa daquilo que os delicados acham feio nele – o nosso Povo mameluco, tapuio-ibérico, de cara de bronze e pedra; o Sol implacável; os nossos estranhos heróis, personagens de uma Legenda obscura e extraviada; as estradas e Caatingas empoeiradas, pedreguentas e espinhosas; as casas-fortes quadradas, brancas, achatadas e baixas, meio mouras, de paredes de pedra-e-cal ou de taipa, e de chão de tijolo; e a Caatinga espinhosa e selvagem, povoada de répteis envenenados, de aves de rapina, escorpiões, marimbondos e piolhos-de-cobra” (1977:65).

Mas o homem que vive da cabra desconfia dela, pois segundo afirmam, tem parte com o diabo. Como todo sertanejo, desconfia de tudo, prisioneiro que é dos próprios dramas. Agora, novamente na condição de Secretário de Cultura do Estado de Pernambuco3, apesar da suposta fragilidade, sabe-se capaz de pedra, enfrenta as tormentas e críticas de forma incansável, com a sabedoria do Mestre que se tornou ao longo dos anos.

Como um Quixote, cavalga o Brasil inteiro na defesa da cultura nacional, sem xenofobia. Alerta os desatentos, des-desertifica os corações, sobe e desce de aviões, atravessa rios, matas, avenidas, para cumprir a missão que se impôs: semear sonhos de um país mais justo e mais fraterno. Costuma cantar o frevo de bloco “Madeira que o Cupim não Rói”, de autoria de Capiba, uma espécie de emblema da vitória da cultura brasileira:

“Madeira do Rosarinho
Vem à cidade sua fama mostrar.
E trás com seu pessoal
Seu estandarte tão original.
Não vem pra fazer barulho
Só vem dizer, e com satisfação:
Queiram ou não queiram os juízes,
O nosso Bloco é de fato campeão.
E se aqui estamos
Cantando esta canção,
Viemos defender a nossa tradição.
E dizer bem alto
Que a injustiça dói.
Nós somos madeira-de-lei
Que o cupim não rói”.

Como João Grilo e Chicó, desperta, rodopia, reinventa a vida restituindo ininterruptamente o dom do maravilhoso e da graça, pois Ariano-Cabreiro é uma criança risonha a desentranhar sonhos e brincadeiras. Em o “Auto da Compadecida”, sua peça mais conhecida, os referidos personagens não param de aprontar, sob as bênçãos de Nossa Senhora, a Compadecida. Segundo o próprio autor, é preciso compreender que as artimanhas expressam que a astúcia é a coragem do pobre; são as condições de escassez do sertão que fomentam uma aprendizagem arrancada na dureza da vida, aquela que ajuda a driblar a fome e a humilhação.

São eles, também, os palhaços-do-cotidiano, que ainda gargalham, desdenhando de si mesmos e da lógica econômica que – infelizmente – predomina na nossa sociedade. Exigem respeito, tolerância, dignidade, casa, saúde e educação, como qualquer homo sapiens sapiens. Apesar de tantos problemas a enfrentar, no diálogo a seguir, João Grilo e Chico nos ensinam a importância de mentir; ou melhor, de tingir com cores fortes o tom desbotado da vida:

Chicó:
Foi uma velha que me vendeu barato, porque ia se mudar, mas recomendou todo o cuidado, porque o cavalo era bento. E só podia ser mesmo, porque cavalo bom como aquele eu nunca tinha visto. Uma vez corremos atrás de uma garrota, das seis da manhã até as seis da tarde, sem parar nem um momento, eu a cavalo, ele a pé. Fui derrubar a novilha já de noitinha, mas quando acabei o serviço e enchocalhei a rês, olhei ao redor, e não conhecia o lugar em que estávamos. Tomei uma vereda que havia assim e saí tangendo o boi...
João Grilo:
O boi? Não era uma garrota?
Chicó:
Uma garrota e um boi.
João Grilo:
E você corria atrás dos dois de uma vez?
Chicó, irritado:
Corria, é proibido?
João Grilo:
Não, mas eu me admiro é eles correrem tanto tempo juntos, sem se apartarem. Como foi isso?
Chicó:
Não sei, só sei que foi assim (1989:27-28).

Não é segredo para ninguém a grande admiração que Ariano tem pelo mentirosos e doidos; que, segundo ele, são nossos Aedos, possuem a capacidade de tornar a vida mais bela e agradável. Um processo de identificação aproxima o autor desses personagens, dando a ver mais uma dimensão do nosso Cabreiro: a de contador de histórias, característica que herdou da família:

“Manoel Bento, um doido, morador de Taperoá, sertão da Paraíba, certa vez foi encontrado indócil, procurando algo: ‘Homem, está procurando o quê?’ Respondeu: ‘Uma carteira cheia de dinheiro!’ Mal
respondeu, viu-se rodeado por um bom número de pessoas, que também passaram a procurar a tal carteira. Depois de algum tempo, uma delas, já impaciente, perguntou a Manoel: ‘Você tem certeza que perdeu a carteira aqui?’ ‘Eu não perdi nada, não... Estou querendo é achar uma carteira cheia de dinheiro!’”.

Impregnado de uma oralidade profunda, as temáticas da insanidade e da mentira se repetem; elas delineiam os contornos de uma recusa em defrontar-se com o real, utilizando o humor como estratégia. Na condição de palhaço-contador de histórias ou poeta da vida, preserva na alma a ingenuidade e o frescor dos sentimentos encontrados nas Mil e Uma Noites, revelando a força de um imaginário nômade do deserto, que continua encantando todos nós:

“De outra vez, o mesmo Manoel Bento foi encontrado, numa manhã, com o ouvido encostado na parede. O curioso que o flagrou, resolveu imitá-lo. Já cansado, no final da manhã, lamentou-se: ‘Eu não estou
ouvindo nada’. ‘Pois é, desde cedo que eu estou tentando, e, até agora, também não consegui ouvir nada’”.

A contação de histórias pode ser percebida como um exercício de revitalização da palavra-imagem, tão cara ao escritor. É a palavra-imagem que possibilita o enfrentamento das intempéries, uma espécie de resistência à dor, ao sofrimento e às injustiças do mundo.
Por isso a oralidade permanece viva na produção, manutenção e transmissão do capital cultural, apesar do amplo leque de suportes de comunicação disponíveis nos dias atuais.

O Cabreiro-Ariano também é marcado por uma religiosidade profunda, que ressoa na sua alma de profeta, retroalimentada pelo Barroco. Como se fora o pastor amoroso de Fernando Pessoa, ou – mais especificamente – Alberto Caeiro, sua conversão ao catolicismo foi influenciada por Zélia, sua esposa, que conheceu aos vinte anos de idade, um encontro definitivo:

“Foi aí que, por sorte minha, surgiu diante de mim – como uma bênção que me tivesse sido enviada do Sol, como uma compensação à minha infância sangrenta e atormentada – a figura da Mulher, aquela que passará a ser o resumo ancestral e sagrado da vida. Foi uma espécie de revelação. Eu a via, gentil e sem afetação, como se estivesse em comunicação direta com a corrente subterrânea e sagrada do Mundo, com o dom da vida que somente ela era capaz de comunicar ao meu sangue ferido. Meu sangue iluminou-se e a crispação desapareceu.

(...) Era ela, a Mulher, mito e legenda do meu sonho. O corpo feminino aparecia-me identificado com uma clareira de Caatinga sertaneja, povoada de rosas selvagens, coroas-de-frade e macambiras.” (1999:171-172).

Segundo nosso autor, ainda hoje, boa parte dos grandes artistas brasileiros baseiam-se no Barroco; Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, José Lins do Rego, Joaquim Cardozo e João Cabral de Melo Neto, são apenas alguns deles:

“A grande coisa do barroco é que ele é um estilo de arte e uma visão de mundo, que se caracteriza pela unidade dos contrários, o que é muito importante para o Brasil. É a primeira manifestação romântica de dissolução do clássico. Por isso mesmo ele tem elementos clássicos e românticos, medievais e renascentistas, pagãos e religiosos, trágicos e cômicos. Eu sou religioso também, daí minha atração por isso. Mas não se esqueça de que esse lado religioso do barroco tem sua contrapartida nisso que eu estava chamando de picaresco. (...) Eu gosto mais do auto numa linha vicentina, onde se une o pensamento religioso e uma visão cômica e satírica. [É também] uma forma de religião que não deixa de lado a luta social.” (Revista Vintém, no. 2, 1998:5).

Como visão de mundo, o Barroco expressa o tecer junto, o pulsar simultâneo de elementos contraditórios, presente em toda a obra de Ariano. As bases de uma mensagem teológica são buscadas nas fontes populares e eruditas e no auto sacramental, como se pode perceber, por exemplo, nas peças A Pena e a Lei e no Auto João da Cruz, e no romance A Pedra do Reino.

Seu catolicismo sertanejo recusa a passividade, supõe atuação contínua na direção de uma fraternização, afinal, segundo ele, “todos nós possuímos nossos arraiais de Canudos. Quando humilhamos ou desrespeitamos nossos empregados, estamos repetindo o que aconteceu em Canudos: é o Brasil Oficial massacrando o Brasil Real”. Os integrantes do Brasil Real constituem, juntamente com outros grupos sócio-culturais de pobres e excluídos, espalhados pelo mundo, os Povos da Rainha do Meio-Dia.

A pulsão de Ariano é criar uma literatura que contenha as marcas da alma do povo brasileiro, dos povos da Rainha do Meio-Dia, por isso sua obra é – simultaneamente – tradicional e popular, clássica e barroca, uma fusão entre o trágico e o cômico:

“Quanto mais humanas e coletivas sejam as histórias, quanto mais vivos os personagens, tanto maior número de pessoas, seja em quantidade seja em qualidade, será afetado por elas, uma Arte que, sem concessões de nenhuma espécie, atinja profundamente tanto o público comum que vai ao teatro ver um espetáculo, como o rapaz pobre da torrinha, que vai ali em busca de alguma coisa que lhe é quase tão necessária quanto o sono, será sempre superior àquela que só atinja um ou outro” (In: FREIRE, 1962:477-478).

Ariano consolida sua linhagem literária dialogando com Homero, Cervantes, Shakespeare, Molière, Lope de Vega, Garcia Lorca, Gogol, Tolstoi e Dostoiévski; ou seja, com todos aqueles que concebem sua obra recriando os mitos nacionais e populares de seu povo.

A partir de todas essas matrizes nosso Cabreiro sonha com uma Arte Total, expressa de forma contundente no Movimento Armorial; substantivo que – através de suas mãos – se transformou em adjetivo:

“O Movimento Armorial pretende realizar uma Arte brasileira erudita a partir das raízes populares da nossa Cultura. Por isso, algumas pessoas estranham que tenhamos adotado o nome de ‘armorial’ para denominá-lo. Acontece que, sendo ‘armorial’ o conjunto de insígnias, brasões, estandartes e bandeiras de um povo, no Brasil, a Heráldica é uma Arte muito mais popular do que qualquer outra coisa. Assim, o nome que adotamos significava, muito bem, que nós desejávamos ligar-nos a essas heráldicas raízes da Cultura popular brasileira” (O Movimento Armorial, 1974:7-9).

A reflexão estética do Movimento recusa a hierarquia social de valores estéticos. Portanto, não se trata aqui de fazer concessões à arte popular, pois ela possui um alto grau de qualidade, sofisticação e complexidade semelhante à erudita, devendo ser apreciada em si mesma.

Fiel a esse ideário, segue seu ofício de Cabreiro, às vezes com um estranho sentimento de quem é percebido como alguém fora do seu tempo. Mesmo embebido pela ciclicidade dos mitos, pelo eterno retorno, imprime as marcas do contexto sócio-histórico à sua criação; convicto de que é na caminhada que o homem encontra sentidos para viver, e que deve exercer uma severa auto-crítica, reconhecer os possíveis erros e modificar-se.

Que tenho sido?... Que ventos meus doces antepassados têm me soprado?... Qual o fogo esquenta o tacho das horas que desfruto com minha mulher, filhos, netos, amigos e alunos das aulas-espetáculo?... Talvez essas sejam algumas entre as tantas questões que o Mestre Ariano se põe. Atento ao reino da cidade de Taperoá, no estado da Paraíba, espaço sagrado de sua literatura, faz escorrer em nós o leite dos rios sertanejos, mesmo dos rios assoreados. Abre valas, descobre nascentes de água, e acompanha seus filetes, marcando o caminho com sua infinita sabedoria: é a arte de ensinar.

O Cabreiro é um sábio, mesmo à sombra, retira lições luminosas, que a memória guardará para sempre. A serenidade e peraltice aos 82 anos4 desvelam um Ariano sensibilizado com o sol, o sal, a macambira, a terra molhada, o cheiro de cabra, o canto dos aboiadores.

Um dos desejos que o movem é escrever e falar uma linguagem saborosa, com gosto de quero-mais: caju, sopa, canjica, coalhada, mel. Recobre as árvores desfolhadas do sertão com pavões super-coloridos; na madrugada, agasalha os frios corredores da antiga casa da infância com o forte canto da acauã. São imagens intensas, de extrema delicadeza, que transformam Ariano em um ser do devir, aquele que se quer “imorrível”.

Não quer saber das regras do tempo, apenas mergulha nas tramas tecidas pelos mitos. Rever seus escritos, suas peças, elabora novos textos, concede entrevistas, escreve um romance que está sendo gestado há mais de vinte anos. Faz mil planos, projetos; alguns deles pretende finalizar aos 200 anos de idade.

“Ô de casa!” Grita alguém na calçada. Rapidamente levanta e diz: “É um suplicante; vou atendê-lo!” Afinal, o homem pode estar com fome: não pode esperar; a fome não espera. Após uma rápida conversa, retorna consternado com o fato de que ainda existam tantos suplicantes no mundo. Fala baixinho, para si mesmo: tenho esperança que isso um dia vai acabar! O tempo não o fez curvar-se. Continua esguio, caminhando com desenvoltura; no olhar, a franqueza e a ternura dos desassombrados. Ariano, o Cabreiro Tresmalhado, não teme o espelho. A obra forja uma dialogia profunda entre a rouquidão e a limpidez, o silêncio e o ruído, entre o que se mostra e o que se oculta. Aí está sua festa: dança, canta, chora, dá cambalhotas e gargalha. E Ariano, enfim, grita um viva para a vida, expresso de forma contundente no Auto da Compadecida:

Palhaço:
Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo, praga de sua igreja, o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais do que ninguém, que sua alma é um velho catre, cheio de insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo, baseado no espírito popular de sua gente, porque acredita que esse povo sofre, é um povo salvo e tem o direito a certas intimidades.
Atores, respondendo ao canto:
Perna fina no meio do mar.
Palhaço:
Oi, eu vou ali e volto já.
Atores, saindo:
Oi, cabeça de bode não tem que chupar”. (1989:23-25).

Notas:
1 Antropóloga, Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Coordenadora do Núcleo Ariano Suassuna de Estudos Brasileiros e Pesquisadora e Vice-Líder do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre o Imaginário/UFPE; Pesquisadora do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Complexidade, Interdisciplinaridade e Desenvolvimento Humano (LAPIDEH-Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães/FIOCRUZ).
2 As falas de Ariano Suassuna que estão presentes nesse texto foram “retiradas” do convívio da autora com o próprio Ariano Suassuna, nos mais diversos momentos da convivência entre ambos.
3 Em 2009, Suassuna assume pela segunda vez este cargo. Anteriormente havia sido secretário do governo de Miguel Arraes. Antes disso, também fora Secretário Municipal de Cultura em Recife, na década de 70.
4 Ariano Suassuna nasceu em 1927.

Referências Bibliográficas
MELO NETO, João Cabral de (2003). Poema(s) da Cabra In: Quaderna. Obra Completa. Volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
NOGUEIRA, Ma. Aparecida L. (2002). O Cabreiro Tresmalhado – Ariano Suassuna e a universalidade da cultura. São Paulo: Palas Athena.
PESSOA, Fernando (1971). O Pastor Amoroso. In: Seleção Poética. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro.
SUASSUNA, A. (1962). Teatro, Região e Tradição In: Gilberto Freire: sua ciência, sua filosofia, sua arte. Rio de Janeiro. p. 474-487.
______________ (1971). Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta. Rio de Janeiro: José Olympio.
______________ (1974a). Seleta em Prosa e Verso. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL.
______________ (1974b). O Movimento Armorial. Recife: Universidade Federal de Pernambuco/Editora Universitária.
_____________ (1977). História d'O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão: Ao Sol da Onça Caetana. Rio de Janeiro: José Olympio.
_____________ (1990). Auto da Compadecida. 24ª ed. Rio de Janeiro: Agir.
_____________ (1998). Uma Dramaturgia da Impureza, da Misturada. Vintém – Ensaios para um teatro Dialético. Especial Dramaturgia. São Paulo: Hucitec. Companhia do Latão, n. 2, maio/jun./jul., 1998. p. 3-8.

_____________ (1999). Poemas. Seleção, organização e notas Carlos Newton Lima Júnior. Recife: Editora Universitária.

Fonte: NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. Ariano Suassuna e o mito do cabreiro. Aurora, n. 6, 2009. 

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