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Leandro Vilar

segunda-feira, 14 de abril de 2014

História magistra vitae

"A história é a testemunha dos tempos, a luz da verdade, a vida da memória, a mensageira da velhice, por cuja voz nada é recomendado senão a imortalidade do orador".
Da Oratoria, Cícero


Cícero
No século I a.C, Marco Túlio Cícero (106-43 a.C) proeminente político, advogado, orador, filósofo e escritor romano em seu livro Da Oratoria, obra dedicada a abordar a prática da oratória, algo bastante importante para o ofício de político, advogado e filósofo os quais Cícero exercera, nesse livro, ele falara em alguns momentos que a História seria a magistra vitae, ou seja, a "mestra da vida". Cícero quisera dizer que a função da História era ser um repositório, um manual, uma professora, que através dos exempla (exemplos, experiências) teria lições a ensinar as pessoas. Para ele, conhecer a História, era se deparar com as ações de várias pessoas, ações essas que repercutiram em êxito ou fracasso, em vitória ou derrota; na prática, a História teria uma função pedagógica, de instruir o individuo a pensar acerca de seu presente e planejar seu futuro tendo como base o passado, algo que o historiador alemão Reinhart Koselleck (1923-2006) chegou a chamar de "futuro passado"

A proposta deste texto é apresentar como o conceito de magistra vitae se tornou marcante na Europa e no Ocidente, já que tal conceito embora surgido no século I a.C, mantivera-se em uso até o século XIX, e ainda hoje existem pessoas que quando questionadas sobre a utilidade da História, respondem de forma parecida ao conceito de magistra vitae, embora muitas dessas pessoas talvez nunca tenham ouvido falar nesse termo. Pode parecer óbvio que não se trate de uma coincidência, pois seria um senso comum pensar assim em respeito a História, mas não podemos tomar o senso comum de hoje com o que foi há dois séculos, há mil anos, ou no caso de Cícero, há mais de dois mil anos. 

Um tempo cíclico: 

Para os antigos romanos e gregos, assim como também para outros povos como os astecas e maias, a concepção do Tempo era cíclica, ou seja, o tempo não seria uma linha, mas um círculo que em determinado momento chegaria ao seu fim, mas não consistindo num fim derradeiro, mas na realidade um reinício, um renascimento. Logo, se tomarmos o exemplo da mitologia grega, o Tempo era dividido em quatro fases: a era de ouro, a era de prata, a era de bronze e a era de ferro. Para os gregos antigos, estes se acreditavam que estavam vivendo na era de ferro, que marcaria o final desse ciclo, e o mundo recomeçaria novamente com a era de ouro. No entanto, esse fim do mundo não era conhecido, sabia-se que um dia ele iria acontecer, mas para os gregos, romanos e outros povos, pensar no fim no mundo não era algo importante, esse fato é notável quando se estuda as mitologias romana e grega e nota-se que não há mitos ou profecias de fim de mundo, não existe um elemento escatológico propriamente.

Logo, como era o presente que se interessava, e havia a possibilidade do futuro repetir o passado, então conhecer o passado era uma forma de está preparado para o futuro e até mesmo de prevê-lo? Ora se o tempo poderia se repetir, então essa ideia de magistra vitae não era errônea. Desde a Antiguidade algumas pessoas procuraram se inspirar em personagens históricos como forma de terem modelos para servirem de base para suas vidas. 

Alexandre, o Grande (356-323 a.C)  se inspirava em Aquiles e Héracles (Hércules), embora fossem heróis míticos, mas Alexandre acreditava que eles foram reais. Júlio César (100-44 a.C) chegara a admirar Rômulo, o suposto primeiro rei de Roma, e Alexandre, o Grande. O rei francês Luís XIV (1638-1715) se comparava a Alexandre. E assim se segue na História, pessoas se comparando aos seus "ídolos" do passado, diferente de hoje, onde normalmente se admiram os ídolos do presente. 


Apoteose de Luís XIV. Charles Le Brun, óleo sobre tela, 1677. Nessa pintura o rei Luís XIV foi representado como Alexandre, o Grande. 
A série Vidas Paralelas escrita pelo historiador, biógrafo e filósofo grego Plutarco (ca. 46-119/120), consiste numa série biográfica onde em cada livro se traz a biografia de um ilustre governante grego e de um ilustre governante romano, onde Plutarco ao escrever o relato biográfico procura comparar os feitos destes dois homens. Um dos volumes mais famosos dessa série é o que fala sobre Alexandre, o Grande e Júlio César. Tais biografias tinham a função de transmitir curiosidades, pois normalmente as pessoas tem interesse em conhecer aspectos da vida dos seus governantes, ou no contexto mais atual, dos famosos; além disso, a biografia era uma forma de se conhecer a glória destes homens; embora Alexandre e César tenham cometido erros, sua glória se mantém viva, isso era uma forma das pessoas admirarem esses homens e procurarem se inspirar pelos seus caráter ou feitos. 

No caso do escritor e biógrafo romano Suetônio (69-141) embora tenha escrito seu famoso livro sobre a Vida dos Doze Césares onde ele aborda a vida de onze imperadores e mais a de Júlio César (lembrando que ele foi ditador e não imperador), diferente de Plutarco, Suetônio possuía um estilo mais mordaz e ácido de escrever; ao falar da vida dos imperadores ele não economizou em escrever sobre a devassidão, fofoca, conspirações, tramas, etc., que rolavam nos bastidores da política. Suetônio quis mostrar o lado ruim e vicioso dos grandes homens. No contexto da magistra vitae isso também é válido, pois você tem referências tanto positivas quanto negativas. 

"Assim, a história seria um cadinho contendo um objetivo pedagógico; ou, nas palavras de um dos antigos, a história deixa-nos livres para repetir sucessos do passado, em vez de incorrer, no presente, nos erros dos antigos. Assim, ao longo de cerca de 2 mil anos, a história teve o papel de uma escola, na qual se podia aprender a ser sábio e prudente sem incorrer em grandes erros". (KOSELLECK, 2006, p. 42). 

“Coletânea de exempla, ela é a ‘mestra da vida’ (magistra vitae). Visando formar o cidadão e esclarecer o político, ela deve também ser capaz de servir para a instrução do ser humano individual. Narrativa das inconstâncias da Fortuna, ela deve ajudar a suportar as reviravoltas de situação, propondo exemplos para imitar ou evitar. Transformando-se, desde então, de bom grado, em história de vidas, ela se mostra atenta a tudo o que não se vê imediatamente, a todos os indícios que Plutarco designa especificamente como os ‘sinais de alma’. Ela serve-se do encadeamento: admiração, emulação e imitação. História filosófica, ou seja, moral, ela é o espelho em que cada um, através dos retratos esboçados e do relato de episódios secundários, pode observar-se com o objetivo de agir em melhores condições e se tornar melhor”. (HARTOG, 2011, p. 178-179).

A magistra vitae entre o profano e o sagrado: 

"O círculo de influência de Cícero perdura até a experiência histórica cristã. O corpus de sua obra filosófica não raro foi catalogado, nas bibliotecas dos mosteiros, como coletânea de exemplos, sendo amplamente disseminado". (KOSELLECK, 2006, p. 44). 

Durante a Idade Média europeia, com a expansão do Cristianismo pelo continente europeu o conhecimento antigo, especialmente o que se referia aos gregos e romanos, foi renegado a população que além da sua grande maioria ser analfabeta, para completar os textos eram em latim ou grego, e muitos não sabiam nem se quer falar essas línguas. Por outro lado, a Igreja Católica reuniu os livros antigos e os armazenou nas bibliotecas monásticas, e tais livros ficaram pelo menos preservados, diferente de outras obras que se perderam. 

Todavia, no caso da magistra vitae surgiu uma questão problemática: Como encontrar utilidade na história profana, já que essa contava exemplos sobre pessoas pagãs, hereges e bárbaras? Ora, a história profana, termo que foi concebido para se referir a toda a história que não fosse a do cristianismo e da Igreja Católica, essa não deveria ter algo de útil para se ensinar aos cristãos. Os cristãos não deveriam aprender com aqueles hereges e pecadores, mas pelo contrário, os cristãos deveriam aprender com outros cristãos. 

Embora os santos e santas já existam desde o século I, foi durante a Idade Média (V-XV) que as hagiografias (biografias dos santos) se multiplicaram, da mesma forma que o número de homens e mulheres canonizados também crescia rapidamente. Sendo assim, por mais que a história profana fosse renegada por alguns clérigos, a ideia de magistra vitae foi adaptada para o cristianismo, ou seja, a história ainda era a "mestra da vida", mas para o bom cristão, esse deveria se inspirar na vida de homens da sua fé, como Jesus Cristo, os 12 Apóstolos, os santos e santas e até de alguns papas, cardeais, bispos, padres, freis e freiras, sem contar alguns personagens bíblicos. Mas, além desses homens religiosos, havia também os reis cristãos que serviram de inspiração, como foi o caso de Carlos Magno (742-814) e até mesmo reis judeus como Salomão e Davi, e reis lendários como o Rei Arthur e Prestes João


Uma página de uma edição do século XIV da Legenda Áurea, uma coletânea de hagiografias, formada no século XIII por Jacopo de Varazze, bispo de Gênova, e se tornou bastante popular por mais de um século. 
Por mais que a maioria da população cristã europeia não soubesse ler, o que incluía até mesmo os nobres, as hagiografias tiveram um papel muito importante em difundir entre os religiosos os conhecimentos sobre a vida e os feitos dos santos e santas e ate mesmo dos beatos, profetas bíblicos, papas, etc. Durante uma missa um padre poderia contar aos fiéis as histórias daquela hagiografia, além de remeter-se as histórias bíblicas. 


Outra mudança que o cristianismo trouxe além dessa readaptação da magistra vitae para o seus interesses, foi a mudança temporal de um tempo cíclico para um tempo linear. Nesse caso o tempo não voltaria a se repetir, ele é contínuo, reto, linear, progressivo. Contudo, além dessa mudança veio também com o cristianismo a importância dada a escatologia, nesse caso, ao fim do tempo, que na Bíblia é chamado de Apocalipse e o Juízo Final, embora também não seja um fim derradeiro, pois após o Juízo Final os bons viverão num mundo de bem-aventurança, e os maus arderão eternamente no Inferno. Mas de qualquer forma o mundo não será destruído, ele só sofrerá mudanças. 

"O estatuto da história no pensamento dos homens da Idade Média deu lugar a apreciações contraditórias. Para Étienne Gilson o cristianismo introduziu uma nova visão do devir humano. Quebrou a golilha antiga da visão cíclica da história, para impor uma concepção linear desta: a história humana começa com a Criação e comporta um momento central; está orientada para um fim (a Parusia, seguida do Juízo Final). O tempo já não é a imagem móvel da eternidade. A história é vista como um itinerário, uma marcha da humanidade para a sua realização, para o encontro da Jerusalém terrestre com a Jerusalém celeste". (BOURDÉ; MARTIN, 1983, p, 13). 

No entanto, por mais que a ideia de fim dos tempos se tornou recorrente para os cristãos, mesmo assim as pessoas ainda mantiveram os aprendizados da história magistra vitae em pauta, pois, por mais que o tempo não voltasse a se repetir, os exemplos ainda eram válidos, pelo simples motivo de que o ser humano sempre planeja algo para o seu futuro, e nesse planejar ele procura algo ou alguém em quem se amparar, em quem imitar ou se inspirar. Ao longo dos séculos em diferentes povos e épocas, as pessoas sempre procuraram formas de prever seu futuro, de descobrir se iriam realizar seus sonhos, ou se algum perigo os aguardava, ou se haveria alguma boa surpresa pela frente. 

É importante mencionar que além das hagiografias, na Idade Média escreveu-se história através de anais e crônicas, especialmente referentes a questões políticas, militares, biográficas e de desastres (invasões, incêndios, pestes, terremotos, fome, etc.). Todavia, os anais e crônicas tinham uma função mais em se preservar os acontecimentos e não servir de instrução, pelo menos não para a população em geral.

Koselleck [2006] assinala que após o Renascimento Cultural Italiano, parte da sociedade começou a resgatar a importância da história chamada profana ou pagã pela Igreja. Voltar a conhecer o passado inicialmente greco-romano, mas também de outros povos da África e da Ásia seria algo importante. Até mesmo alguns religiosos também passaram a defender a importância de se conhecer a história dos não-cristãos, pois embora fossem pagãos mesmo assim eles teriam algo de útil a se transmitir, isso é evidente quando vemos que as ideias de Platão e Aristóteles foram mantidas pela Igreja ao longo da Idade Média, claro que havendo adaptações.

Nicolau Maquiavel (1469-1527) chegara a dizer no Príncipe (1532) que os governantes deveriam conhecer a história de outros governantes, especialmente aqueles que foram "grandes", e aprender com seus acertos e erros. De fato, em seu livro Maquiavel faz referências a Alexandre, Júlio César, Aníbal Barca entre outros grandes nomes da Antiguidade. 


Capa de uma edição de 1550 do Príncipe e da Vida de Castruccio Castracini de Lucca
O filósofo, matemático e tradutor inglês Thomas Hobbes (1588-1679) em seu famoso livro o Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil (1651) onde ele defende sua teoria de uma monarquia absolutista, mas embasada na moral, costumes e leis cristãs. Na terceira e quarta parte do livro, Hobbes se dedica a fazer quase que uma história do que seria um Estado cristão para fundamentar seu argumento de se construir um Estado Eclesiástico e Civil. Embora ele não especifique propriamente os "grandes homens", mesmo assim a História se torna um referencial, um modelo. Hobbes chega a falar que os costumes cristãos haviam se distanciado da fé original (lembrando que ele era protestante), então a nova monarquia que deveria imperar na Inglaterra deveria resgatar esses preceitos antigos. 

Durante o Iluminismo, o filósofo, escritor e compositor suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e seu famoso tratado político O Contrato Social (1762) o qual defende sua visão e pensamento acerca do conceito de contrato social, Rousseau depois de explanar suas ideias ao longo de quase todo o livro, ele dedica a última parte a tratar sobre a República Romana (509-27 a.C), não a contar a história da república dos romanos, mas falar sobre sua organização política. Na época de Rousseau e até mesmo ainda hoje no século XXI a república romana é um referencial para o republicanismo atual, assim como, a democracia ateniense é um referencial para a democracia atual, embora sejam governos instituídos há mais de dois mil anos, se tornaram bastante influentes na história do Ocidente e até em parte do Oriente. De qualquer forma, ao mencionar a Roma antiga, Rousseau utilizava essa menção para reforçar seus argumentos políticos e também como forma de apresentar um modelo que realmente existiu e deu certo em alguns aspectos. 

Ora, Rousseau escreveu seu livro 27 anos antes da Revolução Francesa (1789-1799) e suas ideias serviram de referencial durante o governo revolucionário. Roma foi tomado como um modelo antigo a ser imitado pelo menos em alguns aspectos, se bem que nesse ponto a história francesa e romana se comparam no quesito de governo: ambos os Estados se iniciaram como monarquias, mas Roma se tornou uma república que durou quase cinco séculos, para depois retornar a monarquia agora como um império; no caso da França ela do começo do medievo se mantém como uma monarquia até 1791, para então se tornar uma "república temporária" até 1804 quando Napoleão se proclama imperador e da início ao seus império. 

De qualquer forma esse três exemplos filosóficos e teóricos políticos, cada um da sua forma mostra a importância da História como um repositório de exemplos para serem seguidos. O imperador Frederico II, o Grande (1712-1786) da Prússia chegou a dizer em suas memórias (Denkwürdigkeiten) que a História era a escola dos governantes (KOSELLECK, 2006, p. 46). Após os três exemplos dados, acho que fica evidente essa contribuição da História para a formação dos governantes, se bem que hoje em dia acredito que muitos políticos não devam saber quase nada sobre história e para completar, o povo sabe ainda menos. Tal aspecto possui um bom exemplo que Koselleck nos forneceu:

Em 1811 numa reunião em Charlottenburg na Prússia, durante essa reunião o Ministro das Finanças, Oelssen defendia que para contornar a crise econômica que o país vivenciava deveria-se imprimir papel-moeda sem fundo (todo o dinheiro impresso em um país só pode ser impresso se houver fundo monetário, caso contrário estará se emitindo dinheiro sem fundo, algo parecido com os cheques sem fundo), contudo, Friedrich von Raumer secretário do rei, discordou da medida proposta pelo ministro e começou a argumentar contra. No entanto, o ministro não se convenceu daquilo, e por fim, Raumer apelou para a História. 

"Mas senhor Conselheiro Privado, o senhor certamente se lembra que já Tucídides falava do mal que sucedeu quando, em Atenas, decidiu-se imprimir papel-moeda em grande quantidade". (KOSELLECK, 2006, p. 41). 

A verdade é que Raumer pregou uma mentira já tendo em mente que embora fosse uma mentira ela teria resultado positivo. Tucídides viveu entre os séculos V-IV a.C, o papel-moeda foi inventado pelos chineses na Idade Média, mais de mil anos depois de Tucídides, todavia Oelssen não sabia desse fato e acreditou que fosse verdade, então desistiu de sua ideia. Mesmo que o ministro Oelssen desconhecesse com precisão essa história, a concepção de que a História era a "mestra da vida" ainda estava em voga naquele tempo, então ele decidiu não se arriscar. 

O questionamento sobre a magistra vitae no século XIX:


Koselleck fala que em 1750 na Alemanha alguns historiadores abriram o debate acerca de se repensar a utilidade da História e como se estudá-la, escrevê-la e pesquisá-la. Ainda naquela época a palavra alemã para história que era Historie foi substituída por Geschichte, essa mudança não ocorreu apenas no campo semântico (estudo dos significados), mas também da epistemologia (teoria do conhecimento). O antigo termo Historie que consistia numa tradução da palavra grega ἱστορία (historía) possuía um significando bastante enfatizado na ideia de narrativa, mas não narrativas quais queres, mas especialmente narrativas sobre os grandes homens e os grandes acontecimentos. Ao mesmo tempo, a palavra Historie também estava imbuída de um sentido literário.

"Historie expressava a concepção clássica de História, um conceito plural, no qual o passado compreendia um conjunto de histórias e não uma história una como começamos a ter a partir do século XIX. Ao considerar o passado um repositório de histórias variadas, relatos que recolhiam a memória dos feitos notáveis, extraordinários e que serviam de modelos num sentido pedagógico e ético para orientar procedimentos e condutas, reconhecia-se, implicitamente, uma continuidade temporal e cultural - um 'espaço de experiências' contínuo que possibilitava esse caráter instrutivo em relação ao futuro". (MONTEIRO, 2005, p. 436). 

No século XIX na Alemanha, mas também na França se iniciou um debate para defender o estudo da História como sendo uma ciência, e não mas encarar a história como sendo uma vertente da literatura. O novo termo alemão Geschichte propunha-se a repensar a História como um campo do conhecimento que não se limitaria apenas a narrar o passado, mas a criticá-lo, analisá-lo e compreendê-lo, pois até então não havia essa preocupação pelos historiadores.

"A história [Geschichte] como acontecimento [Begebenheit] único ou como complexo de acontecimentos [Ereigniszusammnhang] não seria capaz de instruir da mesma forma que uma história [Historie] compreendida como relato exemplar. As fronteiras eruditas entre retórica, história e moral foram desconsideradas, e o uso alemão do termo 'Geschichte' extraiu, dessa maneira, novas qualidades de experiência a partir da velha fórmula". (KOSELLECK, 2006, p. 49). 

"Como Geschichte, desfez-se o velho tópos das lições de história. O passado, considerado superado, era substituído por um devir, 'singular coletivo, temporalizado e imanente, racional e universal, dotado de uma dinâmica própria e em processo de constante aceleração', expressão do progresso humano identificado ao processo histórico. Ação e seu conhecimento se confundem. A vivência da História é auto-instrutiva. Viver é conhecer. Conhecer o processo histórico para vivê-lo e redirecioná-lo, é pedagógico". (MONTEIRO, 2005, p. 435). 

No século XIX o historiador alemão Leopold von Ranke (1795-1886) foi um dos principais defensores de que o estudo da História tivesse uma metodologia e uma teoria, como forma de respaldar seu caráter profissionalizante, sério e ao mesmo tempo uma tendência ao cientificidade. Ranke dizia que a História não seria uma mera narrativa de exemplos, especialmente exemplos provenientes dos grandes homens e dos grandes feitos, mas a História deveria ser vista como um conhecimento sobre o passado passivo de interpretação, análise e avaliação, pois embora o estudo de história trate de informações, nem todas as informações são úteis ou de significância relevante. Ranke foi um dos principais representantes da chamada "Escola Metódica" onde procuravam desenvolver o "método histórico" para se estudar a História. 


"A escola metódica é criada “em torno de um axioma, o da história como “ciência positiva” (DOSSE, 2003ª, p. 39-40), fugindo do subjetivismo em nome da ciência e do respeito à verdade. Estes historiadores metódicos afirmavam, através de suas revistas não serem defensores de nenhum credo dogmático e que apenas buscavam o máximo possível de exatidão para com as fontes". (FARIAS;FONSECA;ROIZ, 2006, p. 121).

"O primeiro objetivo, deste movimento, era o de delinear maneiras claras na abordagem documental (métodos), para os historiadores profissionais. O historiador deveria estar ciente de que pertencia a uma comunidade de profissionais que zela pela objetividade, e que seu papel era apresentar seus escritos sem qualquer traço da estética literária; um discurso frio, duro e sem qualquer resquício das “paixões” pessoais do historiador; ele deveria somente descrever o que está objetivamente contido na fonte, deixando o que há de subjetivo nela. O historiador deveria rechaçar qualquer precipitação imaginativa: “o ponto de partida do ofício de historiador envolvia pesquisar documentos, reuni-los, classificá-los e, com o amparo das chamadas ‘ciências auxiliares’ da história, proceder à crítica externa, especialmente sobre a origem das fontes; em seguida passar à crítica interna visando à determinação dos fatos para, finalmente, coroar com a construção narrativa, agrupando e ordenando os fatos numa seqüência de causalidades” (SILVA, 2001, p. 196)". (FARIAS;FONSECA;ROIZ, 2006, p. 121-122).

Considerações finais:

Desde o final do século XIX a história magistra vitae perdeu seu valor pelo menos historiográfico, embora que ainda hoje sua conotação pedagógica ainda exista, contudo, não se pode confundir os dois. Do ponto de vista da historiografia, a magistra vitae não possui mais validade e serventia, escrever história não é mas apenas narrar o que aconteceu e deixar isso por acabado, hoje existem metodologias e teorias que devem embasar o estudo da História, sua pesquisa e sua escrita. A história magistra vitae era escrita quase como se fosse uma literatura, com a diferença de não haver diálogos entre os personagens, e não ser escrito em primeira pessoa (nesse caso as autobiografias ainda hoje são escritas em primeira pessoa). 

Se por esse viés historiográfico a magistra vitae não possui mas utilidade para o contexto atual dos estudos históricos, no campo da cultura histórica (entenda-se cultura histórica como a consciência que um povo ou uma cultura tem acerca da História, assim como, também refere-se a capacidade de se escrever e contar a História), a magistra vitae ainda se faz presente como foi dito, em seu sentido pedagógico, ou filosófico moral como Koselleck também se referia.

Se perguntarmos para algumas pessoas o que elas pensam sobre a utilidade da História, algumas das respostas remeterão ao significado da magistra vitae, contudo é importante lembrar que não podemos encarar a História como um mero repositório de exemplos, essa tendência ficou para trás ainda no século XIX, contudo, isso não significa que a História tenha perdido uma das suas funções que é a de informar e legitimar. 

O historiador e filósofo alemão Jörn Rüsen desde os anos 80 vem estudando teoria da história e publicando livros, artigos e trabalhos para compreender o desenvolvimento da ciência histórica e ao mesmo tempo como transformar o conhecimento produzido nas universidades e academias em um conhecimento que possa ser transmitido nas escolas e nas próprias universidades. Rüsen chama a atenção de que não basta apenas escrever sobre história, mas é necessário pensar no ensino de história, na didática, no uso do conhecimento histórico para a vida prática, algo que Rüsen [2007] chama de práxis

“A consciência histórica tem por objetivo, pois, extrair do lastro do passado pontos de vista e perspectivas para a orientação de agir, nos quais tenham espaço a subjetividade dos agentes em sua busca de uma relação livre consigo mesmo e com o seu mundo". (RÜSEN, 2007, p. 33-34). 

Rüsen [2007] aponta algumas funções do conhecimento histórico: 

  • capacidade de reconhecer as mudanças temporais, que a História e as sociedades não são imóveis, e que as nações e povos progridem de formas diferentes e em diferentes velocidades; 
  • capacidade de reconhecer diferentes tipos de políticas, leis, culturas, religiões, crenças, saberes, economias, línguas, etc;
  • capacidade de desenvolver senso crítico, especialmente para questões políticas e sociais, pois tendo conhecimento de acontecimentos parecidos ou não, o indivíduo terá ciência para se posicionar;
  • capacidade de desenvolver opinião própria ou poder de argumentação;
  • desenvolvimento de uma autocompreensão, auto-reconhecimento, ou seja, a condição da pessoa em se reconhecer como pertencente a um país, povo, lugar, grupo, ideologia, cultura, etnia, religião, classe, etc;
  • capacidade de usar o saber histórico na vida prática, seja no trabalho, no dia a dia, numa conversa, num curso, nos estudos, numa aula, numa entrevista, etc. 
  • desenvolver a capacidade de interpretação, crítica e reflexão. 
Embora Rüsen diga que a história magistra vitae não possua hoje mais serventia, pelo menos na historiografia, mas seu princípio educador ainda existe, mas não igual no passado, ele existe hoje com algumas diferenças. Se bem, que Rüsen e outros historiadores nem usam mais esse termos "mestra da vida", pois ele está carregado dos sentidos antigos, hoje se fala mais em uma utilidade do saber histórico, ou nas palavras de Rüsen "uma formação histórica"

“Quero tratar da ‘práxis’ como função específica e exclusiva do saber histórico da vida humana. Isso se dá quando, em sua vida em sociedade, os sujeitos têm de se orientar historicamente têm que formar sua identidade para viver – melhor: para poder agir intencionalmente. Orientação histórica para dentro (identidade) e para fora (práxis) – afinal é esse o interesse de qualquer pensamento histórico”. (RÜSEN, 2007, p. 87). 

Por mais que hoje o conceito de história magistra vitae não seja mais usado, seu principio pedagógico e filosófico moral ainda é válido. 

"Afinal... aprender História é aprender sobre nós mesmos. É aprender sobre a diversidade das experiências humanas através dos tempos e nos diferentes lugares. É aprender que o homem é o conjunto de suas práticas como sujeito, protagonista, e ao mesmo tempo sujeito à sua circunstância, no fazer da cultura. Aprender que o diferente nos homens de qualquer tempo e lugar nos é familiar porque a humanidade é uma, mas a cultura é plural". (MONTEIRO, 2005, p. 448). 

NOTA: Cícero foi o responsável por conceder o epíteto de "O Pai da História" para Heródoto de Halicarnasso (ca. 485 - ca. 425 a.C). 
NOTA 2: Embora não tenha escrito livros de história, Cícero em algumas de suas obras comenta a produção histórica romana.

Referências bibliográficas: 
BOURDÉ, Guy; MARTIN, Hervé. As Escolas Históricas. Lisboa, Publicações Europa-América, 1983. (Capítulos 1 e 2). 
CÍCERO. Oratory and Orators. Tradução de J. S. Watson. New York, Harper & Brothers Plubishers, 1860. 
FARIAS, M. N.; FONSECA, A. D.; ROIZ, D. S. A escola metódica e o movimento dos Annales: contribuições teórico-metodológicas à históriaAkrópolis, v. 14, n. 3 e 4, 2006, p. 121-126.
HARTOG, François. Evidência da história: o que os historiadores veem. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira e Jaime A. Clasen. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. (Coleção História e Historiografia - 5). 
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro, Contraponto/Ed. PUC-Rio, 2006. (Capítulo 2: Historia Magistra Vitae: sobre a dissolução do topos na história moderna em movimento). 
MONTEIRO, Ana Maria F. C. Ensino de História e história cultural: diálogos possíveis. In: Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Organizadoras Rachel Soihet, Maria Fernand B. Bicalho e Maria de Fátima S. Gouvêa. Rio de Janeiro, Mauad 2005. 
RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história: formas e funções do conhecimento histórico. Tradução de Estevão de Rezende Martins. Brasília, editora da UnB, 2007. 

Um comentário:

Unknown disse...

Excelente texto, amigo. Sugiro uma revisão da sintaxe e da pontuação. Fora isso, ficou muito bom. Parabéns pelo trabalho.